MILTON CORRÊA Ed. 1156

Piratas saqueiam R$ 100 milhões por ano na Amazônia
Por: Karla Mendes*
Roubo de carga nos rios da região quadruplicou entre 2015 e 2016; combustível é o principal alvo dos bandidos. De acordo com a reportagem de O Estado de São Paulo, o alvo predileto são embarcações que transportam combustível e eletrônicos da Zona Franca de Manaus.
A era dos piratas não acabou. Ela apenas mudou de rota: da costa brasileira foi para os rios da Amazônia. Em vez de olho tapado e espadas, capuz, metralhadoras e fuzis AR 15. Para comunicação, sistema de rádio VHF. A nova “caça ao tesouro” agora é por combustível, que representa 70% do prejuízo de R$100 milhões por ano para as empresas que fazem transporte de carga pelos rios da floresta amazônica.
Também chamados de “ratos d’água”, os piratas atuam sempre em grupos. Eles ficam de tocaia e, usando rádios, articulam o ataque. O alvo predileto são embarcações que transportam combustível e eletrônicos da Zona Franca de Manaus.
Com barcos pequenos e rápidos, os piratas cercam as embarcações, amarram uma corda e sobem na balsa, encapuzados, com luvas pretas e armas pesadas, fazendo arruaça. A tripulação é presa na cabine e os piratas tomam o comando. Eles levam a carga roubada para um barco maior, ancorado próximo às balsas. Em quase todas as ocorrências há também roubo de combustível dos tanques das embarcações. Muitas vezes, os piratas levam ainda todos os pertences da tripulação.
Os rios da Amazônia têm sido alvo crescente de ataques de piratas. O número de assaltos nos trechos Manaus-Belém e Manaus-Porto Velho quadruplicou de 50 em 2015 para mais de 200 em 2016, segundo o Sindicato dos Trabalhadores em Transportes Aquaviários do Amazonas (Sintraqua). Os ataques são feitos quase sempre à noite. Durante o dia, as ações ocorrem com as embarcações em movimento, para chamar menos a atenção.
Nos pontos mais críticos, empresas de transporte de carga só navegam acompanhadas de escolta armada. O Estreito de Breves, canal fluvial de acesso ao Arquipélago do Marajó, no Pará, é um dos trechos mais perigosos. A região é estratégica para o escoamento de diversos produtos. Para atravessar o estreito, as embarcações precisam reduzir a velocidade. É quando os piratas, que estão em barcos mais rápidos, atacam. “Essa é a área vermelha. Nossa situação é horrorosa, pois a pirataria tem uma ligação muito forte com o tráfico internacional de drogas”, ressalta Eduardo Carvalho, presidente do Sindicato dos Armadores do Pará (Sindarpa).
Por dia, são registrados de dois a três ataques no Estreito de Breves, com roubo de 20 mil a 30 mil litros de combustível. “Sem falar de roubos de óleo de embarcações menores, que ocorrem toda hora”, afirma Carvalho. Ele estima que os prejuízos do setor ultrapassem R$ 100 milhões. “A situação piora a cada ano. O isolamento é completo.”
O comandante Enilson Antônio Sousa Miranda, de 59 anos, relatou ao Estado o terror dos ataques piratas no Estreito de Breves. Em uma noite de janeiro de 2015, ele foi feito refém próximo à Vila de Antônio Lemos, em uma viagem de Belém para Santarém, numa embarcação que transportava 30 carretas de cargas diversas. “Eu tinha acabado de jantar. Me pegaram pelo macacão e colocaram um revólver 38 na minha cabeça. Me bateram, pisaram no meu pescoço para eu deitar no chão e me levaram para a proa.”
Segundo Miranda, os piratas prenderam a tripulação nos camarotes e levaram tudo o que puderam em um barco maior: aparelho de rádio de comunicação da embarcação, celulares, óleo diesel, óleo combustível e até comida. Os bandidos estavam drogados. Traumatizado, Miranda teve de fazer tratamento psicológico e psiquiátrico. Meses depois, ele foi demitido. “Não tem segurança nenhuma ali.”
Depois de trabalhar por 20 anos no trecho Rio Paraguai-Paraná, o comandante Marcelo Conceição de Oliveira passou a navegar na Amazônia há três meses. Ao passar pelo trecho para Belém, ficou com medo de ataques de piratas, algo que, segundo ele, não existia na outra região. “Praticamente não dormi com a minha tripulação.”
Operação conjunta. Cientes dos ataques de piratas, autoridades do Pará passaram a atuar de forma conjunta, valendo-se de serviços de inteligência, principalmente no Estreito de Breves. “O pessoal invade e rouba toda a carga. O que pesa muito é a questão do roubo de carga da Zona Franca de Manaus”, afirma o delegado Ualame Fialho Machado, superintendente regional da Polícia Federal no Pará. Levantamento do Sindarpa aponta que 71% dos assaltos ocorrem em áreas onde não há nenhum sistema de comunicação disponível, o que dificulta que a polícia seja acionada. “Quando só roubam, digo que é lucro, pois é um grupo muito violento”, diz o delegado.
Um dos agravantes para a pirataria na Amazônia é o envolvimento da própria tripulação. Todas as investigações presididas pelo delegado Dilermando Dantas Júnior, diretor do Grupamento Fluvial de Segurança Pública no Pará (GFLU), constataram o envolvimento de pelo menos um tripulante nas ocorrências. “E tinha inquérito com toda a tripulação envolvida.”
As empresas de transporte reclamam da falta de mão de obra especializada. “Se não tivermos formação de aquaviários em grande escala e mais bem preparados, não vamos conseguir combater a pirataria”, ressalta Raimundo Holanda, presidente da Federação Nacional das Empresas de Navegação Aquaviária. Por meio de nota, a Marinha informou que não há relação entre o aumento de roubo e a possível “falta de aquaviários” na região.
Os trabalhadores se defendem. “O aquaviário é assaltado no meio do rio, faz o BO na delegacia mais próxima e, quando chega na cidade, ainda é preso. É humilhante”, reclama o capitão Rucimar Souza, presidente do Sintraqua.


Garimpo consome combustível roubado
O combustível é a mercadoria mais cobiçada pelos piratas na Amazônia. A principal rota de ataque é o Rio Madeira, cerca de 400 embarcações trafegam por mês no trecho entre Porto Velho e Manaus, onde ocorrem 50% dos roubos de combustível da Região Amazônica. “É uma carga fácil de desviar e vender, pois em todo local da Amazônia se consome combustível”, afirma Claudomiro Carvalho Filho, vice-presidente do Sindicato das Empresas de Navegação Fluvial do Estado do Amazonas (Sindarma).
O Madeira é o rio mais importante da região para o escoamento da produção, por onde passam cerca de 15 bilhões de toneladas de carga por ano. O transporte de grãos representa 6 bilhões de toneladas, enquanto o de combustível soma 3 bilhões de derivados de petróleo e diesel. Os piratas atacam não só as balsas de transporte de combustível, mas saqueiam até mesmo o óleo dos tanques das embarcações.
Próximo à cidade de Porto Velho, o roubo de combustível no Madeira alimenta sobretudo o garimpo ilegal, segundo representantes do setor e autoridades. Estocado em tambores e galões, o combustível é vendido a garimpeiros ao longo do rio, que chegam a ocupar cerca de 2 mil dragas e balsas de garimpo na época de seca do Madeira. Outro destino são postos de combustível ilegais ao longo dos rios.
De olho no aumento das ocorrências de roubo de combustível, a Secretaria de Segurança Pública do Amazonas lançou a Operação Ratos D’Água, em parceria com o Sindarma. Na primeira fase, um software , que entrará em operação em breve, vai registrar todas as embarcações e o volume de combustível que sai de Manaus e comparar com o que chega em Porto Velho, para rastrear o que foi roubado, revelou ao Estado Mauro Sposito, delegado de Polícia Federal aposentado, especializado em crime organizado, e assessor da Secretaria de Segurança. “Queremos descobrir por que some tanto combustível. O combustível vai para o garimpo no Madeira e para a orla de Manaus.”
Na segunda fase da operação, será feito o levantamento de todos os pontos de venda de combustível e de balsas e dragas de garimpo no Madeira. “Vamos prender tudo que estiver irregular”, anuncia Sposito. “Um senhor relatou que lhe roubaram 140 mil litros de gasolina. Como fazem? Colocam no bolso?”, questiona.
Segundo Sposito, a “base do problema” é a refinaria da Petrobrás em Manaus (Reman), de onde são transportados gasolina e óleo diesel para toda a região por caminhos fluviais, incluindo cidades do interior, onde a maior parte da geração de energia é feita por termoelétricas a diesel. Procurados pelo Estado, a Cooperativa dos Garimpeiros da Amazônia e o Sindicato Nacional das Empresas Distribuidoras de Combustíveis e de Lubrificantes não quiseram comentar a questão.
Aquaviários. Amedrontados pela violência dos piratas, aquaviários estão usando grupos de WhatsApp para comunicar assaltos e facilitar pedidos de socorro.
“Tenho oito grupos de marítimos da região. Durmo com o celular ligado”, conta o comandante Rodolfo Nóbrega, presidente da Federação dos Trabalhadores em Transportes Marítimos e Fluviais dos Estados do Pará e Amapá. “Os piratas usam arma de grosso calibre. A gente não anda nem com segurança nas embarcações. ”

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