“Estado precisa investir em presídios, não pode deixar de ser punitivista”

Ampliar a transparência da Procuradoria-Geral da República e o diálogo da instituição com a sociedade, sem criminalizar a política. Esses são dois pontos que José Robalinho Cavalcanti sugere como alvo a ser perseguido pela PGR nos próximos anos. Ele é presidente da Associação Nacional dos Procuradores da República, entidade representativa da carreira que completa 45 anos em 2018.

O trabalho de combate à corrupção é um dos destaques que Robalinho elenca na trajetória do Ministério Público Federal. É este, também, um ponto que vem à tona quando se fala das disputas políticas em que o órgão se envolve. O incômodo causado pela atuação firme acaba por gerar ataques, como o da PEC 37, que tiraria o poder de investigação do MP, ou mesmo quanto às críticas recebidas pela posição sobre o auxílio-moradia e o reajuste salarial. O projeto de lei que tramita no Congresso Nacional e que pretende criminalizar o desrespeito às prerrogativas da advocacia seria outra dessas investidas, diz.

A ANPR foi criada no dia 22 de setembro de 1973, em assembleia na sede da Procuradoria-Geral da República no Distrito Federal, com a participação de 40 procuradores, após uma série de reuniões preparatórias. Hoje congrega cerca de mil procuradores de todo o país.

Em entrevista à ConJur, Robalinho falou sobre o processo de solidificação tanto do MPF e da PGR como da própria ANPR. A entidade de classe é a responsável, por exemplo, pela elaboração da lista tríplice, definida em eleição pelos integrantes do MPF para envio ao presidente da República escolher o nome do procurador-geral. A partir dos governos PT, os três presidentes do país respeitaram as sugestões dadas pela categoria.

Robalinho rebate também as críticas de que o MP e o Estado brasileiro seriam demasiadamente punitivistas. Para ele, o país não prende muito — a considerar o tamanho da população do país. As penas também não são duras demais, e o sistema está em prol de quem responde por crimes e delitos.

“É assim no mundo desenvolvido. Aqui se vende a tese de que nós estamos criando um sistema muito persecutório. Não. Agora é que estamos nos aproximando do que é razoável. Há um pouco da cultura de vender uma excepcionalidade quando, na verdade, excepcionalidade era o anterior. A jabuticaba que só tinha no Brasil era essa coisa de ficar até a quarta instância”, afirmou, referindo-se à discussão no Supremo Tribunal Federal acerca da execução antecipada de pena após decisão de 2ª instância.

Leia a entrevista:

ConJur — A respeito dos 45 anos, como é que o senhor vê o caminho que a entidade percorreu até aqui?
José Robalinho —
A ANPR forjou o caminho por circunstâncias muito interessantes. Sempre foi uma entidade voltada para fora. Então, embora seja a entidade representativa dos procuradores da República, ela forjou uma tradição de participar do debate público nacional. Isso começou quando a ANPR foi criada. Ela foi fundada em 1973, em pleno governo Médici, no auge da ditadura. Então, reunir grupos de procuradores não era bem-visto. Os nossos pioneiros o foram em uma época muito negra.

E, ainda na ditadura, sete anos depois, a ANPR teve que ter uma posição muito forte em um momento-chave para a transformação do Ministério Público, também em plena ditadura. Foi o assassinato do nosso colega Pedro Jorge, que foi morto por estar investigando, em razão da função, assassinado a mando de pessoas que ele estava investigando por corrupção em Pernambuco. Eu digo sempre que são marcos muito importantes, porque é o seguinte: a ANPR teve de tomar a frente, pressionar o procurador-geral, exigir o júri, ir até lá. Isso em plena ditadura e só lembrando que o assassino, que depois acabou preso e condenado, o major Ferreira, era um PM vinculado às forças mais negras da ditadura. Não foi um momento fácil. Eu sempre digo que essa atuação do Pedro Jorge transformou o Ministério Público brasileiro pelo seguinte: a marca do procurador Pedro Jorge assassinado foi uma das coisas que impressionou a Constituinte seis anos depois.

ConJur — Como era a estrutura até aquele momento?
José Robalinho —
O Ministério Público era um apêndice do Ministério da Justiça, que fazia acusação criminal. No final das contas, se você olhar, ele fazia a defesa da União. Isso é outra coisa que foi fundamental na Constituinte e que também nós fomos a favor: criar o órgão de Advocacia da União. Ou seja, retirar a defesa da União do Ministério Público e transformar o Ministério Público Federal em um ministério puro, de defesa da sociedade.

ConJur — A ANPR teve então papel de influência forte sobre a construção das leis acerca da instituição?
José Robalinho —
Tivemos participação na discussão da nossa lei complementar, em 1993. Nessa lei, criamos também de maneira pioneira — foi um dos primeiros Ministérios Públicos a ter isso — as câmaras de coordenação, que atuavam diretamente ajudando na tutelação coletiva. A ANPR participou dos debates de revisão constitucional, que vai culminar na nossa participação ativa nos debates da PEC 37, da reforma previdenciária, de matéria de discussão penal, que não são matérias corporativas no sentido estrito da palavra, que importem do ponto de vista de remuneração da carreira. Mas são matérias nas quais os procuradores da República, através da ANPR, veem como importante colocar posição no debate em favor do país.

ConJur — Essa atuação também ocorreu quando da instituição da lista tríplice para a escolha do procurador-Geral da República…
José Robalinho —
Em 2001, isso acabou consolidado em outra participação importante que a ANPR teve, que é a listra tríplice. O constituinte de 1988 decidiu, dentro do arcabouço que ele criou dentro do Ministério Público de magistrados, constitucionalizar a lista tríplice como método de escolha dos representantes dos chefes do Ministério Público. Os colegas escolhem uma lista tríplice. Isso significa que aquelas pessoas ganham respaldo de liderança técnica e pessoal diante de seus pares. Depois, ela segue para o chefe do Executivo e, no caso do Ministério Público Federal, também pelo Senado Federal. A dos corregedores-gerais de Justiça não precisa, indo direto para a nomeação do Executivo.

O fato é que o único chefe de União do Ministério Público que ficou fora dessa composição foi o procurador-geral da República. Isso tem uma explicação. A explicação maior é aquilo que eu falei: até 1993, o procurador-geral da República fazia também a defesa do presidente da República, do Estado, da União, porque não existia a figura da advocacia. Então se você, por acaso, já tivesse dito em 1988: ‘Então o procurador geral vai ser escolhido por lista tríplice’, você estaria retirando do presidente da República o poder de escolher seu advogado ou o advogado que vai representar a União. O que é, no mínimo, complicado. Então, em um primeiro momento, o procurador-geral ficou como escolha do presidente da República dentro da carreira, sem a listra tríplice. Como, a partir de 1993, deixou de existir essa razão, nós passamos a ser um Ministério Público como todos os outros.

Imediatamente encampou o seguinte: ‘Precisamos então transformar a Constituição para que isso seja implementado como matéria constitucional’. Foi feito um esforço durante a reforma do Judiciário. A reforma do Judiciário foi promovida pelo Congresso na época de Antônio Carlos Magalhães. Nessa época houve uma emenda a favor da inclusão da lista tríplice para o procurador-geral da República. Ela não foi aprovada. Mas também não foi rejeitada. Ficou perdida lá no meio, sem ser incorporada. Então aí nós já estávamos, a essa altura, no final dos anos 1990. Geraldo Brindeiro, que até hoje está conosco, estava sendo indicado pela terceira ou quarta vez pelo [ex-presidente da República] Fernando Henrique Cardoso sem passar por lista tríplice. Embora ele seja uma pessoa respeitada nesta casa, isso estava gerando um desgaste muito grande, porque liderança ele não tinha. Então a ANPR começou se dispor a fazer uma lista e propor para o presidente da República como uma contribuição — e não é obrigatório, por lei, até hoje, mas achamos importante, como foi para os demais membros do Ministério Público para garantir independência, garantir liderança do chefe da instituição.

ConJur — Quando fala em liderança o senhor está tratando da aceitação da categoria?
José Robalinho —
Mais do que isso. Temos independência funcional, como os juízes têm. O processo vai para o juiz por livre distribuição. O processo vai para a urna do Ministério Público também por livre distribuição. Isso significa o quê? Que não existe hierarquia, nem no Judiciário nem no Ministério Público, no sentido de comando de área-fim. Quer dizer, quando um determinado procurador vai representar a sociedade no processo, não cabe ser trocado por outro procurador. Não cabe uma ordem do procurador-geral, como não cabe no Judiciário. Só que tem um dado a mais. O Judiciário é um Poder da República. A Justiça dá a última palavra sobre a interpretação do Direito em todas as questões.

Mas a Justiça é um órgão inerte no sentido de que ela não decide o que é levado a ela. O Ministério Público, não. É uma magistratura que propõe, que é parte. Não adianta você nomear o procurador-geral da preferência do presidente de plantão, hipoteticamente, e achar que ele vai mandar no Ministério Público. Ele não manda. Na administração ele manda. Mas ele não manda nas atividades ministeriais propriamente ditas. Então, para você tem de ter um mínimo de unidade, já que não existe o comando hierárquico. Você tem que ter liderança e representatividade técnica. É isso que faltava na época de Brindeiro. Ele é um colega para lá de respeitável, mas, como ele não tinha esse respaldo, não foi um bom período para o Ministério Público brasileiro, com choques e contrachoques e tal. Sem contar dúvidas sobre a independência, nem sempre justas. Eu sou um dos que acha que o dr. Brindeiro foi injustiçado em algumas declarações que foram dadas por aí. Mas o fato é que gerava dúvidas porque, se você é escolhido diretamente pelo presidente da República e toma tal ou qual atitude que o presidente acharia adequada, você quebra, pelo menos na visibilidade, a independência da situação ministerial.

A primeira vez que a ANPR apresentou a lista ainda era improvisada, não havia candidaturas. Ela acabou não sendo acatada e aquela foi a última nomeação do dr. Brindeiro. Mas, a partir de 2003, todas as vezes que foi apresentada ela foi acatada pelo presidente da República: o presidente Lula, a presidente Dilma e o presidente Temer.

ConJur — Depois que se constituiu a lista tríplice, o tom das críticas, como as que Geraldo Brindeiro recebia, mudou? A lista teve esse efeito?
José Robalinho —
A lista tríplice tem uma composição constitucional, uma construção de marco complexo que eu acho que é a mais eficiente. Aí eu vou até para a outra ponta, para dizer a você o seguinte: ao contrário dos Ministérios Públicos Estaduais, que é uma posição histórica que a Anape tem, nós não achamos que tem que ser designado o mais votado, necessariamente. Para um chefe de uma instituição tão importante e independente como o Ministério Público, o crivo verdadeiro, ou seja, a possibilidade de escolha por parte de um órgão político que foi eleito — no caso, o presidente da República — é muito importante também para dar legitimidade. Então a gente tem um mix das duas coisas.

Na última, do ano passado, nós fizemos seis debates no Brasil inteiro, transmitidos para todo mundo. Eram colegas do mais alto nível. Significa que aqueles três têm respaldo suficiente na carreira, respaldo de liderança. O presidente pode escolher qualquer um dos três. Essa liberdade de escolha do presidente da República, para nós, é democrática.

ConJur — O método da formação da lista tríplice é criticado por quem está de fora do MPF, por não levar em conta os MPs Militar, do Trabalho, do DF.
José Robalinho —
Mas não tem que levar. Não tem que levar mesmo e os colegas todos sabem disso. O Ministério Público é composto de quatro ramos. Nós somos o maior ramo, mas os outros três ramos, juntos, são maioria. Então seria exótico, porque seria o único Ministério Público do país a não ter direito de participar do crivo de seu chefe, porque seria minoria. O Ministério Público da União seria o que poderia respaldar essa ideia de que todo ministério da União pudesse participar do processo de escolha do procurador-geral da República. Mas o MPU é basicamente uma figura orçamentária, administrativa. Por exemplo, agora, na definição do orçamento, cada um dos ramos faz seu orçamento. Depois as propostas são centralizadas em um orçamento único pelo procurador-geral e encaminhado para a Presidência da República. A mesma coisa para leis de criação de cargos. Vem dos ramos para cá e tem que passar pela Presidência. Nesse sentido é que é a chefia do Ministério Público Federal, e só. O procurador-geral não nomeia ninguém nos outros ramos. Não é ele que designa assessoria ou diz como vão ser estruturadas. Cada ramo tem sua autonomia. E, muito menos, o procurador-geral da República atua na área-fim. É uma liderança. Eu não vejo por que falar que os demais ramos do Ministério Público da União teriam que ter participação na Procuradoria-Geral, apenas pelo fato de que algumas matérias orçamentárias e administrativas passam pela Procuradoria-Geral.

ConJur — O senhor mencionou que entre essas discussões que a ANPR participou tem a PEC 37, muito falada em 2013, durante as manifestações. Existe um receio de que aquela demanda volte a tomar corpo?
José Robalinho —
Eu acho que sim. A PEC 37 surge em um momento em que o Ministério Público, por seus méritos, por sua atuação firme, principalmente em relação ao mensalão, crítica à classe política. Então, e eu me dou muito bem do ponto de vista profissional e institucional com os delegados de polícia, mas eles tentaram, naquela época, se aproveitar do mau humor da classe política com o Ministério Público. Ela não surgiu em 2013. Em 2013 foi o enterro dela. Essa luta começou no fim de 2011. E, quando começou, foi basicamente como uma emenda sem grandes pretensões no Congresso. Só quem estava prestando atenção e lutou contra foram as duas entidades nacionais do Ministério Público, o Conamp e a ANPR. Durante meses nós estávamos lá sozinhos brigando contra. Nós conseguimos demonstrar para o Congresso paulatinamente que aquilo era uma proposta profundamente equivocada. Uma proposta que diminuía a capacidade do Estado de investigar e que não era só contra o Ministério Público, embora fosse o alvo principal. Quando se falava que era uma atividade de exclusividade da polícia, estava se afastando Receita, TCU, quem pudesse colaborar, o que era um erro grave.

Durante o curso de 2012, nós criamos a campanha da PEC da Impunidade. É dito muito que a Emenda Nacional 37 teria passado não fossem as manifestações do público. Eu discordo dessa avaliação. Eu acho que foi muito importante a manifestação do público. Mas os adversários ou os proponentes da PEC 37 nunca estiveram nem perto de ter um quinto dos votos, os famosos 308 votos, para aprová-la. E aí vieram as manifestações de 2013. Mas é o seguinte: se nós não tivéssemos lançado essa campanha, um assunto técnico como esse, complexo, não ia ser alcançado pela população em geral. O que a sociedade conseguiu entender foi o seguinte: olha, é uma proposta que diminui a capacidade do Estado de perseguir o crime e nós não podemos admitir isso. E aí deu aquele resultado que foi importantíssimo para nós, 430 votos a 9.

Nós hoje estamos novamente em um momento semelhante. O Ministério Público brasileiro, em geral, e o MPF, em particular, por uma série de circunstâncias da “lava jato”, do petrolão, tomaram uma série de medidas nas quais foram obrigados a incomodar forças políticas poderosas. E novamente você tem um mau humor difuso com a ação do Ministério Público. Da esquerda à direita, há gente querendo de alguma forma diminuir o ímpeto do combate à corrupção e dos trabalhos que têm sido feitos nesses últimos anos. Existem propostas de lei de abuso autoridade. A lei de abuso de autoridade, por exemplo, é perigosa exatamente porque ela tem uma capa de boa intenção.

ConJur — Como avalia a proposta de criminalizar a violação de prerrogativas da advocacia?
José Robalinho —
É a bandeira da OAB. Tenho muito respeito, tive contato e tenho muito respeito pessoal e até amizade não apenas com o presidente do Conselho Federal da Ordem hoje, Claudio Lamachia, mas também pelos antecessores dele. Marcus Vinicius Furtado Coêlho é meu amigo. Ophir Cavalcante é uma pessoa extremamente respeitada por todos nós. Mas essa bandeira da OAB destoa. Em um primeiro momento pode pensar o seguinte: quem é que pode ser contra prerrogativa dos advogados? Ninguém. Mas em nenhum lugar do mundo se transforma em crime o desrespeito a um prerrogativa do advogado. Eu tenho prerrogativas, como membro do Ministério Público, assim como o juiz tem também. Se uma prerrogativa dessas for desrespeitada, pode ser um ilícito administrativo ou até um problema processual. Não é um crime desrespeitar minha prerrogativa. Não é crime desrespeitar a prerrogativa do presidente da República. Não é crime desrespeitar a prerrogativa de qualquer autoridade.

ConJur — O senhor falou também dessa participação desde a redemocratização, com atuação na Constituinte. De lá para cá, vimos a criação de novas leis, interpretações de delitos criminais e mesmo de interpretações que colocam o Ministério Público no papel de protagonista dentro do sistema Judiciário. O senhor avalia esse processo como uma fase ou algo permanente, que vem se consolidando?
José Robalinho —
O protagonismo dentro do sistema é normal. Não é uma fase, não. É uma questão e, aliás, sempre existiu. Eu não falo em hierarquia. Existem outros sistemas jurídicos penais nos quais a polícia, por exemplo, está subordinada ao Ministério Público. Por uma série de motivos nós nunca demandamos isso aqui. Não existe hierarquia entre o Ministério Público e a polícia, cada um tem o seu papel para trabalhar. É ótimo quando trabalham em conjunto. É bom lembrar que no Ministério Público é só a caneta. Quem anda armado de verdade é a polícia. E assim tem que ser. Do ponto de vista do processo penal, se você quiser chamar de protagonismo, não tem porque não chamar. A parte do processo penal é do Ministério Público. Então é inerente do sistema que passe pelo Ministério Público, porque ele é o órgão do Estado que vai receber provas ou trabalhar as provas junto com a polícia para levar à juízo. Tem um papel fundamental nisso do ponto de vista penal. O que talvez seja uma fase, e aí eu acho que sim, é o protagonismo do ponto de vista da população, da atenção da população no combate ao crime.

ConJur — Existem críticas de que hoje o Ministério Público tem poder demais. O senhor acha que o MP aumentou seu poder?
José Robalinho —
Não. Sinceramente. Eu acho que boa parte dessas críticas vem dos que estão machucados pela atuação do Ministério Público, pelos seus méritos. Ou de quem está incomodado com a organização do Estado, que agora é eficiente em atingir pessoas que antes não eram atingidas. Essas críticas vêm muito mais dessas pessoas que estão desacostumadas com isso. Do ponto de vista criminal, o papel do Ministério Público não difere muito do Ministério Público em qualquer outro lugar do mundo. Não existe esse poder excessivo.

ConJur — E quanto à crítica de que estamos nos tornando muito punitivistas, estando aí o MP incluído com um papel importante?
José Robalinho —
Existem colocações, como por exemplo, “no Brasil a prisão preventiva está muito ampla”. Isso é uma inverdade. Se você olha do ponto de vista jurídico para o Direito Comparado, as nossas hipóteses de prisão preventiva são muito menores do que em outros países. O cumprimento de pena a partir da segunda instância é um absurdo jurídico. Primeiro, durante só sete anos é que foi diferente, até 2009 era assim e ninguém reclamava. Segundo, em nenhum lugar do mundo se espera quarto grau de jurisdição para cumprir a pena criminal. Na maior parte dos países, inclusive os mais garantistas no sentido estrito da palavra, com preocupação com direitos humanos e etc., o cumprimento da pena se dá a partir da condenação em primeira instância. O recurso puro e simples de apelação já tem que ser feito — que é um direito, o duplo grau de jurisdição —, com o réu preso.

Aqui se vende a tese de que nós estamos criando um sistema muito persecutório. Não. Agora é que estamos nos aproximando do que é razoável. Há um pouco a cultura de vender uma excepcionalidade quando, na verdade, excepcionalidade era o anterior. A jabuticaba que só tinha no Brasil era essa coisa de ficar até a quarta instância.

ConJur — Ainda que entendendo o Brasil como um país com tradição garantista, temos um número elevado de pessoas encarceradas…
José Robalinho —
Sim, sim. Cerca de 800 mil, por aí. A última vez que eu vi essa estatística, dizia-se que o Brasil era o quinto, caminhando para ser o quarto país que mais encarcera no mundo. Direito foi meu segundo curso. Eu me formei em Direito com 30 anos. Durante 30 anos da minha vida eu fui economista. Economista está acostumado a lidar com números e a criticar os números que muitas vezes são escolhidos de forma parcial. Então, ótimo, nós somos a quinta ou quarta maior população carcerária do mundo. Nós somos a quinta maior população do mundo, ponto. Esse primeiro dado é que é esquecido. Acima de nós, em população, só tem a Indonésia, e mesmo assim é pouco, Estados Unidos, Índia e China. O Brasil é extremamente populoso. O primeiro embargo é esse. Se você for olhar para o dado de que o Brasil é a quinta população carcerária do mundo, mas que é a quinta população do mundo, estamos na média.

Mas tem mais. Todos os países mais populosos que o Brasil — novamente, Indonésia, Estados Unidos, Índia e China, na ordem — são muito menos violentos do que o Brasil. O Brasil tem índice de crimes violentos de zona de guerra. Se o Brasil é a quinta maior população do mundo e o Brasil tem um índice de crimes violentos enorme, quem é que pode, com base nessas duas informações, defender que a massa carcerária do Brasil tem que ser pequena? Porque crime violento, em qualquer lugar do mundo, se vai punir com pena de restrição de liberdade. Sobre isso, nenhuma dúvida. Você pergunta: e os que estão presos são os autores de crimes violentos? Não. Nós temos uma massa carcerária de 40%, 50% de pessoas pegas por pequeno tráfico de drogas e crimes sem violência. Isso está errado. Nós podemos e prevemos pegar essa massa de pequenos traficantes e tratar de forma diferente. Eu sou um entusiasta de penas alternativas. Mas, em compensação, nós temos que melhorar nossa eficiência, que é desastrosa, de inquéritos policiais e de investigações policiais para que os crimes violentos tenham solução e aí esses criminosos violentos sejam presos. Esse é um primeiro dado. Então eu discordo frontalmente que a gente prenda muito, mas concordo que a gente prende mal. Tem que fazer a mudança de perfil.

ConJur — Mas diante de tamanha população carcerária e das condições dos estabelecimentos prisionais, não estaríamos alimentando o próprio crime?
José Robalinho —
Isso é inumano. Aquelas pessoas são pessoas. Podem ter cometido um crime, mas são pessoas com todos os direitos, mas tratadas como nós nos recusamos a tratar animais. E aí eu boto a culpa para todos os lados. O governo federal foi de uma irresponsabilidade aguda, inclusive o governo passado. A equipe que o ex-ministro da Justiça José Eduardo Cardozo colocou era tão idealista, tão excessivamente garantista que segurava o dinheiro para construir presídio porque dizia que para ser construído tinha que atender tais e tais circunstâncias. Aí o Estado, que é quem construía, dizia o seguinte: ‘Olha, eu não posso construir desse jeito que o senhor está falando porque isso demandaria muito mais mão de obra, professores etc. que eu não tenho’. Então ficava um impasse e não construíam. Deixavam as pessoas feito animais. Mas não foram apenas eles os culpados. Os estados também.

No país você tem uma parte da população que tem a ideia profundamente equivocada de que gastar dinheiro com penitenciária é gastar dinheiro com vagabundos. Por que não fazer escolas? Porque aquele vagabundo é um ser humano que depois de cumprir pena vai voltar escolado em crime, sem contar que ele tem os seus direitos humanos. Então a população cobra que não se gaste dinheiro em presídio. É preciso construir presídios. O sistema penitenciário tem um déficit de vagas brutal, de investimento de décadas. Não se resolverá de uma hora para a outra, ainda que amanhã assuma um presidente que priorize de fato isso ou que os governadores se conscientizem. Presídio não é uma obra que se faça de um dia para outro. Vamos levar anos para melhorar. E temos que melhorar.

Hoje os presídios se tornaram território do crime no qual as quadrilhas mais organizadas e mais perigosas organizam e comandam o crime aqui fora. O Estado perdeu o controle dos presídios. Então nós precisamos de investimento, precisamos de melhores leis, leis mais duras com esses criminosos que comandam lá dentro. A possibilidade de sistemas penitenciários menores, retomar o controle do Estado e fazer um sistema penitenciário que preste. Isso não significa que a gente prenda demais. Há um grande erro. Eu sou membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Eu já ouvi muito lá do pessoal acadêmico esse comentário. Tem muita força esse comentário despunitivista: ‘o Estado tem que deixar de ser punitivista’. O Estado não pode deixar de ser punitivista com tanto crime violento. A solução não é tirar bandido violento da cadeia ou diminuir pena. Favorecer um sujeito que se comporta bem para que ele chegue mais rápido ao final de pena é justificável em qualquer lugar do mundo e deve ser mantido. Mas daí, em um sexto de pena, o sujeito já entrar para o semiaberto, e o semiaberto no Brasil, como não tem investimento no sistema penitenciário, a Justiça definiu como ‘não tem dinheiro então manda ele para casa’. A população não entende e não tem que entender mesmo. Porque dá uma sensação imensa de impunidade.

ConJur — Falando em “lava jato”, é uma operação que ganhou destaque de 2014 para 2015. O senhor acha que é um mérito da gestão do Janot?
José Robalinho —
A ‘lava jato’ foi e está sendo bem-sucedida porque mudou a lei. Novos instrumentos legais, como a colaboração premiada, mas não apenas ela, foram apresentados aos órgãos do Estado e isso não foi por acaso. Nós lutamos pela lei de organizações criminosas. E também a ideia de que precisávamos trazer instrumentos de investigação mais modernos para dentro do nosso sistema jurídico. Foi uma lei muito discutida, que acabou sendo muito benfeita, inclusive com o apoio do governo.

Eu avalio muito bem a gestão de Rodrigo, mas não vejo a ‘lava jato’ como um mérito, necessariamente, da gestão de Rodrigo. Ele deu toda a força a ela. Mas o que acontece é o seguinte: o Brasil ganhou instrumentos jurídicos. A cooperação jurídica internacional é a outra perna.

ConJur — O senhor mencionou a colaboração premiada, que ganhou força também com a “lava jato”. Houve decisões antes do recesso do Supremo, nas turmas, de ministros diferentes, que costumam ter posições diversas em relação aos processos da operação, pelo arquivamento de inquéritos oriundos da delações da Odebrecht, especialmente, por lentidão do Ministério Público em apresentar novos fundamentos e afirmando que o MP estaria se desincumbindo do ônus da prova. Que faltam elementos mais sólidos para comprovar aquilo que está colocado no inquérito. O senhor acha que o MP precisa avançar mais nesse instituto para que realmente tenha eficácia?
José Robalinho —
Eu achei muito grave essas decisões que o Supremo tomou. Eu não conheço os autos, a maior parte deles estão sob sigilo, mas tenho informação do gabinete da procuradora-geral que se tratam de inquéritos que tinham cerca de um ano e meio. Não tinham completado sequer dois anos. Dois anos é o marco que internacionalmente se considera o mínimo razoável para uma investigação. No Código do Processo Penal que está em debate no Congresso se trabalha com esse prazo de 720 dias, ou seja, dois anos. Mas lá se coloca de maneira muito clara: ‘se comprovado que a investigação precisa continuar, se por acaso demonstrado que não se tratou de inércia e sim de que os fatos são complexos, pode ser prorrogado’.

Segundo fato que eu gostaria de levantar para que a opinião pública toda percebesse é o seguinte: vou falar da Odebrecht. Depois a JBS teve a mesma situação. Quando você tem colaboração premiada com esse grau de importância… No caso da Odebrecht, 77 pessoas que assinaram colaboração premiada. É uma massa enorme de informações. É absolutamente normal que o Estado — e aí o Ministério Público, mas também polícia — não consiga enfrentar todas as ramificações daquelas provas que foram entregues em pacote ao mesmo tempo. Então, portanto, há um equívoco fático ao dizer que houve atraso do Ministério Público. Mas o mais grave não é isso, e aí eu falo na maior tranquilidade. Eu pego o exemplo do ministro Barroso pelo lado bom. Constitucionalista de escola, está exercendo sua função no Supremo com o mais alto nível. Por isso que tenho certeza que o ministro Barroso não refletiu em toda extensão com a decisão que ele tomou ao arquivar o inquérito do qual a procuradora-geral está pedindo continuidade. O que está por trás disso? Há mais de 100 anos que o Direito Penal separou as funções estatais de investigação e de julgamento. É o chamado princípio acusatório. Porque o juiz que comanda a investigação, por mais isento que ele tente ser, está influenciado pelas provas que ele produziu, na hora de fazer o julgamento. Pois bem. Se o juiz — e o ministro do Supremo nesse caso é um juiz que dá sinalização como outro qualquer — acha que tem direito — e o Supremo está dizendo que tem direito — de, sem provocação da parte, que é o Ministério Público, fazer considerações de mérito sobre a prova, porque foi isso que foi feito, para dizer que a investigação não é viável… Quando chega um pedido de investigação e ele prorroga, esse ato de prorrogar, ele também está avaliando, implicitamente, o mérito da acusação, dizendo que tem que continuar. Isso significa com todas as letras que o comando da investigação está nas mãos do juiz. Não é controle, é comando.

ConJur — No acompanhamento da tramitação dos processos da ‘lava jato’, os advogados comentam que há uma inversão, no sentido de que agora a defesa que tem que provar a inocência do réu, não a acusação que tem que mostrar prova. Como o senhor entende essa colocação?
José Robalinho —
Com todo respeito, é vazia. E se você observar, esses argumentos estão desaparecendo. Eram muito mais fortes em 2016, meses antes do impeachment. Teve o famoso manifesto dos advogados de defesa contra a ‘lava jato’. Na época era muito comum se falar isso, e aí foi caindo no vazio. Primeiro vamos lá, falar de delação premiada. A delação premiada é uma arma de defesa. É claro que é um instrumento de investigação. O Estado favorece aquela pessoa que deveria pegar uma pena muito maior porque não tem outros mecanismos de alcançar um crime mais grave. E assim é na nossa lei: tem que partir da defesa. Segundo, e isso está se tornando claro até em algumas derrotas do Ministério Público, não basta só a colaboração. Está na lei, tem que ter provas que corroborem. Em momento nenhum no Direito Penal brasileiro houve essa inversão que está se colocando. O que tem é o seguinte: uma vez que você tem provas testemunhais e materiais contra a pessoa e há uma alegação da defesa, e a defesa alega alguma coisa que desconstitui aquela prova, o ônus é dela mesma de provar. O ônus é de quem alega. Eu alego sua culpa, tenho que provar sua culpa. Agora, eles reclamam muito.

ConJur — Mas já teve caso em que o próprio Ministério Público pediu arquivamento por falta de fundamento.
José Robalinho —
Claro, e vai continuar tendo. Porque o seguinte: o Ministério Público no Brasil, com a configuração do magistrado, não tem que ter taxa de condenação nem nada como nos modelos de eleição. O Ministério Público tem, na configuração brasileira, não apenas o direito como a obrigação de pedir a absolvição todas as vezes, ou de não denunciar, se não houver o mínimo de provas e, mesmo depois de denunciado, se durante o processo não aparecerem provas suficientes ou se chegar ao final e não houver certeza, de pedir a absolvição. Isso não é tão comum porque, geralmente, se o Ministério Público fez a denúncia lá atrás, é porque já tinha convicção e já tinha provas suficientes para a condenação. Agora, não denunciar é normal, é uma avaliação de que não tem elementos suficientes…

ConJur — Daqui para frente, no que a atuação no Ministério Público tem ainda que melhorar?
José Robalinho —
Abrir para a sociedade, isso é uma coisa que nos últimos anos a gente está tentando mais. O diálogo é sempre importante. O Ministério Público — leia-se um promotor de Justiça, um procurador aqui e ali — às vezes se coloca em um pedestal e não vai conversar com a classe política. Isso é um erro. Nós já falamos várias vezes. Nós temos nosso trabalho para fazer, mas quem tem a representatividade são eles.

ConJur — Aí que entra a discussão do auxílio-moradia?
José Robalinho —
É, o auxílio-moradia, que existe há 20 anos. Mais de 20 anos conosco, 25 anos. Não chego a falar do auxílio-moradia, mas um reajuste. Nós somos a única categoria que não tem reajuste desde 2015. Esse reajuste de 2015 só repôs a inflação, é fato, é só olhar os números, de dezembro de 2013. Nós vamos para cinco anos sem nenhum tipo de reajuste. Eu não conheço nenhuma categoria pública ou privada que esteja nessa situação. Só o Ministério Público e os juízes.

Isso faz parte de defender a instituição, porque nós estamos perdendo quadros. Nós temos vagas, mas não conseguimos cobrir nossos concursos. Nós vamos perder qualidade. A população quer que nós sejamos qualificados para enfrentar toda essa matéria que a gente discutiu e acha ‘o Supremo ganha R$ 33 mil e isso é dinheiro demais’. Primeiro, R$ 33 mil bruto. Líquido isso dá R$ 25 mil. Parece muito dinheiro para a população, mas é um salário menor do que o de um gerente jurídico em uma empresa média, para não falar dos advogados. Então é uma questão complicada, que eu acho que a gente ainda está precisando aperfeiçoar para passar para a população. Outro aperfeiçoamento que é a área do Ministério Público Federal é termos mais transparência, como hoje nós temos, e prestação de contas. Nós temos que prestar um bom serviço. Mostrar o que a gente está fazendo. Na área penal, por exemplo, a gente está falando muito nos grandes casos, mas a verdade, é uma crítica que aí não passa pelo Ministério Público só, mas passa por leis, por Ministério Público, por juízes, passa pelo Código de Processos, passa pela Polícia, a área é muito ineficiente. Não há dúvida.

ConJur — É ineficiente?
José Robalinho —
 Só 8% dos crimes são solucionados. Isso é um escândalo. Se você olhar o sistema como um todo, que é como funciona internacionalmente, todos nós somos parte de um sistema. Polícia, Ministério Público, Judiciário, somos todos parte do sistema que não está conseguindo resolver mais do que 8% dos crimes de homicídio. E crime de homicídio não é só o crime mais grave, mas é um crime, digamos assim, bom para você cometer, porque não existe a cifra negra. A cifra negra é uma expressão de direito que se fala sobre o crime que não entra sequer no sistema porque ele não é denunciado. Como no homicídio uma pessoa deixou de existir, tem um corpo ali no meio da rua, aí a gente vê como é um horror. Tem muito latrocínio que não é comunicado, roubo que não é comunicado. Mas homicídios estão todos lá e a gente mostra a ineficiência do nosso sistema. Temos muito que melhorar na segurança pública e na tutela. E o Ministério Público eu tenho certeza de que está aberto a isso.

Fonte: Conjur

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