Impeachment não é golpe, diz ex-ministro do STF Carlos Ayres Britto

Carlos Ayres de Brito
Carlos Ayres de Brito

Ao comentar a decisão do ministro Teori Zavascki de que as investigações sobre o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva sejam enviadas ao Supremo Tribunal Federal por envolverem autoridades com foro privilegiado, o jurista Carlos Ayres Britto, 73, avalia que os fatos contidos nas conversas “ao que tudo indica são delituosos”.

Ayres Britto integrou a mais alta corte do país de 2003 a 2012, nomeado por Lula em seu primeiro ano de governo. Mestre e doutor em direito pela PUC-SP, o advogado em 1981 foi também professor de direito constitucional como assistente do atual vice-presidente da República, Michel Temer (PMDB).

Na interpretação constitucional de Ayres Britto, a voz das urnas não é suficiente para legitimar um governo. “É investidura e exercício, a presidente tem que se legitimar o tempo todo”, afirma. Para o jurista, não há que se falar em golpe caso o processo de impeachment avance, desde que respeitadas as garantias para a defesa da presidente.

Leia abaixo os principais trechos da entrevista, concedida por telefone na tarde de quarta-feira (23).

Folha – Como o senhor avalia o atual momento do país?

Ayres Britto – Nós vivemos um clima de faca nos dentes. Parece-me a música “Carcará”, de Maria Bethânia: pega, mata e come. A gente se lembra de outros processos complicados, e é preciso esclarecer que a saída está no Direito, não se pode sair dele. No julgamento de controvérsias, a Justiça dá a última palavra.

Qual sua opinião sobre a decisão desta semana do ministro Teori Zavascki, em processo que questionava a divulgação de diálogos do ex-presidente Lula com autoridades como a presidente Dilma?

Teori decidiu, conforme a jurisprudência dele no tribunal, que cabe ao STF, naqueles fatos –ao que tudo indica delituosos–, decidir se houve ou não usurpação de competência.

Quando há fatos praticados em conjunto por autoridades com foro especial por prerrogativa de função e outros cidadãos, é o Supremo quem decide se separa os julgamentos ou se concentra tudo na corte –como no mensalão. Não é o juiz de primeiro grau que deve fazer isso. Será o plenário do STF.

Muitas decisões do Judiciário, tanto de primeira instância como de tribunais, têm sido questionadas durante a Operação Lava Jato…

É preciso respeitar o Judiciário. Pode-se acompanhá-lo criticamente, mas chega de contestar decisões com agressões. Assim como não se pode impedir a imprensa de falar primeiro, não se pode impedir o Judiciário de falar por último.

Se não ele, que instância vai sobrar? Vamos praticar o jogo constitucional. Se o juiz se equivoca aqui ou ali, se profere uma decisão monocraticamente, o esquadro é prosseguir. O Brasil tem quatro instâncias judiciais para corrigir isso: a Justiça Federal de primeiro grau, o Tribunal Regional Federal, o Superior Tribunal de Justiça e o STF, que é o guardião-mor da nossa Constituição.

O processo de impeachment está previsto na Constituição. É possível falar em golpe caso isso ocorra?

Toda previsão constitucional pré-exclui a possibilidade de golpe. Golpe é fratura da Constituição, é querer empurrar uma solução goela abaixo da população.

A democracia brasileira não conhece o “recall”, que é o arrependimento eficaz do eleitor, também não temos o parlamentarismo, que permite a substituição de governo, então é preciso prever casos de destituição do chefe de Estado.

Em quais casos essa destituição do chefe de Estado pode ocorrer?

A presidente pode perder o cargo, por exemplo, em processo de impeachment, em ação penal comum, em ação de improbidade administrativa. Nada disso é golpe.

Segundo a Constituição, a legitimidade de um presidente depende de dois fatores: da sua investidura e do exercício do cargo. A investidura é a voz das urnas, mas ela não é suficiente. Há também o exercício, a presidente tem que se legitimar o tempo todo. Se se deslegitima, perde o cargo, nos casos dos artigos 85 e 86 da Constituição.

Mas é fundamental não preterir o contraditório, a ampla defesa –que não é curta–, o devido processo legal. A pureza dos fins e a pureza dos meios estão enlaçados umbilicalmente, não se pode romper o cordão umbilical nesses casos.

O senhor acha que “pedaladas fiscais” cometidas no primeiro mandato são válidas para que a presidente perca o segundo mandato?

Esse é um tema polêmico. Quando a Constituição Federal foi escrita, não havia reeleição. Seu pressuposto é um crime de responsabilidade, o artigo 85 tem o verbo no presente: “que atentem contra”, não que atentaram. Ele visa a destituição do cargo. Se Dilma não fosse reeleita, seria processada por crime de responsabilidade? Não, ele se refere ao mandato atual, fluente, corrente.

Como o senhor avalia a atuação de Sergio Moro nos julgamentos da Lava Jato?

Chegamos a uma centena de processos ligados a essa operação. É preciso separar o todo de cada um deles. Acompanho à distância e não vou falar sobre casos específicos, pois as informações mudam e nos levam a equívocos.

Pode ser que, em um processo, Moro haja incorrido em alguma inobservância de garantia constitucional, é possível. O conjunto da obra, porém, objetivamente, continua íntegro, hígido.

Segundo me consta, 96% dos recursos atacando suas decisões foram mantidos pelos tribunais superiores. Esse altíssimo percentual confere integridade ao todo.

Fonte: Folha de São Paulo

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