Artigo – Precisamos “achatar a curva” das desigualdades regionais

Por Ítalo Melo de Farias[1]

A crise sanitária mundial escancarou os graves problemas de desigualdade que assolam o nosso país. As imagens dos enterros coletivos realizados em Manaus circularam o mundo e trouxeram à tona os problemas sociais de uma região que vive o paradoxo de ser estratégica para o desenvolvimento nacional em relação à exportação de commodities minerais ou agrícolas, na produção de energia elétrica, e na conservação da floresta. Mas que por outro lado, tem que lidar com o abandono de políticas públicas ineficientes em relação à infraestrutura básica, educação e saúde.

Em diversos índices de desenvolvimento a região amazônica está atrás de outras regiões do país. Como exemplo basta citarmos a questão do saneamento básico. Em relação ao acesso à água encanada, o Brasil está muito próximo da universalização com 85,8% das casas tendo como principal fonte de água a rede geral de distribuição. Apesar disso, os dez estados com menor acesso estão no Norte e Nordeste, sendo o pior desempenho o do estado de Rondônia em que esse índice não chega a cinquenta por cento. Em relação à coleta de lixo temos outra grande disparidade, enquanto o índice nacional chega a 91%, no estado do Maranhão esse índice não chega a 70% (lembrando que esse Estado tem grande parte do seu território na Amazônia).

Outro grande drama está relacionado à coleta de esgoto em que a situação nacional é precária sendo apenas 66% das residências brasileiras atendidas por esse serviço. No estado do Piauí, entretanto, esse índice é de apenas 7%. Além disso, dois estados da região amazônica, Pará e Rondônia, tem índices que não chegam a vinte por cento nesse quesito[2].

De um ponto de vista prático se torna muito difícil o enfrentamento de uma crise sanitária, como essa ocasionada pelo coronavírus, em uma região em que a maioria das pessoas não tem sequer à sua disposição água potável. A situação se torna ainda mais absurda se levarmos em consideração que a região amazônica possui 70% dos recursos hídricos do país.

A agressividade com que a pandemia atingiu a região amazônica pode ser atribuída em grande parte a fatores estruturais. Na área da saúde essa disparidade também ficou evidente. Enquanto que os estados do Sudeste, onde vivem 87 milhões de pessoas, concentram 53,4% dos leitos de terapia intensiva. O que em termos proporcionais equivale a um leito para cada três pessoas. A região Norte, com uma população de 18 milhões, concentra apenas 5% dos leitos. Esse índice corresponde a um leito para cada oito indivíduos.[3]

O subdesenvolvimento ou o desenvolvimento de uma região é um tema complexo que envolve fatores históricos e culturais, como ideologias, questões éticas, morais, políticas, religiosas, que influenciam o comportamento de indivíduos e das instituições formando aquilo que a teoria institucionalista de Douglas North chamou de “dependência da trajetória”. Em linhas gerais, essa teoria busca demonstrar que as instituições são dependentes de trajetórias prévias, formatadas ao longo de um processo histórico, determinando uma relação entre o passado e o presente, que acaba por condicionar os eventos e processos sociais futuros.[4]

A compreensão desse mecanismo é fundamental para se entender o estado atual das coisas e na visão de North para romper essa trajetória, com o objetivo de promover o desenvolvimento. A mudança depende da formatação de uma nova cultural institucional. Lembrando que no pensamento do autor as instituições não são apenas formais, como o ente estatal, capazes de estabelecer restrições através de regras, leis, constituições, mas engloba um amplo leque de instituições informais capazes de delimitar aquilo que ele denomina de “regras do jogo”.

O fortalecimento dessas instituições, através dos valores adequados, é a chave para a alteração no estado atual das coisas, a fim de colocar as nações em uma nova rota de desenvolvimento.

Um movimento importante para essa mudança na trajetória de subdesenvolvimento se deu em 1988 com a promulgação do atual texto constitucional. O processo constituinte não é apenas o reflexo de uma vontade estatal, ao contrário, é o evento que do ponto de vista teórico inaugura e passa a dar sentido as instituições. No caso brasileiro, a Constituição Federal de 1988 foi o elemento representativo de uma pacificação social, em uma sociedade dividida por valores ideológicos antagônicos que marcaram profundamente o Século XX.

No momento em que a Constituição é aprovada em assembleia constituinte esses valores se cristalizaram, tomando corpo através de um esquema normativo e passando a influenciar as finalidades tanto das instituições formais, como a identificar os valores públicos das instituições informais (rules of the game).

Do ponto de vista do combate às desigualdades regionais a Constituição Federal de 1988 opta por uma tomada de posição clara em favor da mudança na trajetória de subdesenvolvimento. O texto constitucional elege o primeiro título, concernente aos princípios fundamentais, para erigir à condição de valor estruturante, o objetivo de “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais” (Art. 3º, III, da CF/88).

A concepção ideológica presente no texto constitucional e, que tomou contornos normativos, envolve uma noção de “socialidade” do ente estatal. Ou seja, ao mesmo tempo em que o sistema constitucional protege os valores da “livre iniciativa” (Art. 1º, IV da CF/88) e o “direito de propriedade” como direito fundamental (Art. 5º, XXII). O constituinte atribuiu ao Estado o papel de desenvolver políticas públicas de caráter positivo (prestações fáticas) capazes de reduzir as desigualdades, com o objetivo de construir uma sociedade mais justa e igualitária.

A mudança que o texto constitucional é capaz de produzir depende da capacidade das instituições de assimilar esses valores e reproduzi-los em suas relações com as organizações sociais e indivíduos.

Uma importante decisão nesse sentido foi tomada recentemente em meio à crise sanitária, com a homologação no dia 20 de maio, pelo plenário do Supremo Tribunal Federal da ADO 25 (Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão). Essa ação de controle concentrado foi proposta pelo Estado do Pará, em novembro de 2016, contra a União, com o objetivo de regulamentar a compensação de perdas de arrecadação em decorrência da desoneração das exportações do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS).

A questão é objeto de controvérsia desde a promulgação de Lei Kandir (Lei Complementar 87/1996) que passou a prever a não incidência do imposto nas operações que destinem ao exterior produtos primários e produtos industrializados semielaborados. Os produtos dessa natureza são os principais componentes na exportação nacional e intimamente relacionados com o setor produtivo dos estados da região amazônica, em especial o estado do Pará.

Dados da Fundação Amazônia de Amparo a Estudos e Pesquisas (Fapespa) de 2016, por exemplo, demonstram que o estado do Pará foi o terceiro ente da federação que mais contribuiu com o saldo positivo da balança comercial naquele ano. Em relação aos produtos minerais, o estado do Pará participou com 85,73% das exportações nacionais. O mesmo estudo deixa claro ainda que, no período de 2011 a 2016, o saldo comercial positivo do estado do Pará (terceiro colocado entre todos os entes da federação) foi fundamental para o equilíbrio da balança comercial brasileira.[5]

Apesar disso, ante a falta de regulamentação dos créditos compensatórios previstos na Lei Complementar 87/1996, o estado do Pará nada pode arrecadar sobre a cadeia de produção das commodities minerais.

O acordo celebrado estabelece que a União deverá repassar aos entes federados, pelo menos R$ 65 bilhões entre 2020 e 2037. O estado do Pará, por exemplo, receberá algo em torno de 4,5 bilhões, como compensação pelo período de 25 anos em que deixou de arrecadar com a exportação de produtos primários e produtos industrializados semielaborados.

O reconhecimento da existência do crédito e o valor atribuído ao estado do Pará não deixam de figurar como uma “vitória de Pirro”, pois o período em que o estado deixou de arrecadar com a exportação do seu principal produto, quase que coincidente com o da vigência do atual texto constitucional, dão conta de houve uma desoneração tributária superior a ordem dos 35,72 bilhões de reais.[6]

O caso da Lei Kandir é apenas um dos exemplos do enorme desequilíbrio que tem marcado o nosso Federalismo. A resolução judicial do problema dos créditos decorrentes da não incidência de tributos na exportação dos produtos primários e semielaborados não nos parece ser o evento que colocará um ponto final à questão.

Nossa expectativa é de que no pós-pandemia as discussões sobre a importância social do ente estatal, envolvendo uma possível reforma fiscal e administrativa, possam incluir o tema da redução das desigualdades regionais de maneira mais incisiva, a fim de corrigir as injustiças históricas que tem reproduzido uma trajetória de subdesenvolvimento para a região Amazônica, tendo como pauta necessária o fortalecimento das instituições.

italo@melodefarias.com

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[1] Doutorando do Programa “Administración, hacienda y justicia en el Estado Social” da Universidade de Salamanca, Mestre em Direito Constitucional pela Universidade de Coimbra, Conselheiro Estadual da OAB/PA, Professor do Centro Universitário Luterano de Santarém (CEULS/ULBRA), Membro do Grupo de pesquisa “Gestão Pública e Desenvolvimento na Amazônia”, vinculado ao Núcleo de Altos Estudos da Amazônia (NAEA) da Universidade Federal do Pará (UFPA).

[2] Essas informações foram obtidas em consulta ao site: https://www.saneamentobasico.com.br/saneamento-basico-brasil-graficos/. Acesso em 22/06/2020

[3] https://www.secad.com.br/blog/medicina/transporte-hospitalar-de-pacientes/. Acesso em 22/06/2020.

[4] COSTA, Eduardo José Monteiro. A cultura como chave para a dependência na teoria institucionalista de Douglas North. Rev. Nova Economia: Belo Horizonte, v. 29, 2020 p. 1359-1385.

[5] http://www.fapespa.pa.gov.br/upload/Arquivo/anexo/1330.pdf?id=1536665440. Acesso em 22/06/2020.

[6]http://www.fapespa.pa.gov.br/noticia/1446#:~:text=De%20acordo%20com%20os%20estudos,de%20educa%C3%A7%C3%A3o%20utilizado%20no%20Par%C3%A1. Acesso em 22/06/2020.

RG 15 / O Impacto

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