QUANDO A DIVERGÊNCIA VIRA CRIME: O PERIGOSO PRECEDENTE DO IMPEACHMENT IDEOLÓGICO
O pedido de impeachment contra o Vereador Malaquias Mottin não é sobre ele – é sobre o direito de 1.591 santarenos terem voz na Câmara Municipal
Por Fábio Maia
A Câmara Municipal de Santarém analisará se aceita um pedido de impeachment contra o Vereador Malaquias Mottin. Não venho aqui defender o que ele diz ou deixa de dizer – venho defender algo muito mais fundamental: o direito dele de falar e representar a parcela da população que acreditou nele.
Mil quinhentos e noventa e um votos. Mil quinhentos e noventa e um cidadãos que, nas urnas, concederam a esse vereador uma procuração para falar em seu nome. E agora querem cassar esse mandato não por crime, não por improbidade, mas por divergência ideológica.
Se isso prosperar, não será apenas um vereador cassado. Serão mil quinhentos e noventa e um santarenos silenciados.
A NATUREZA DA REPRESENTAÇÃO PROPORCIONAL
Nosso sistema eleitoral não foi desenhado para eleger apenas quem pensa igual. Foi desenhado justamente para garantir que cada proporção da sociedade, por menor que seja, tenha representação no Legislativo.
O voto proporcional existe para evitar a tirania da maioria. Para assegurar que minorias políticas – e aqui falamos de minorias numéricas, não de grupos específicos – tenham cadeira na mesa onde as decisões são tomadas. Essa é a essência da democracia representativa: a pluralidade.
Quando mil quinhentos e noventa e um eleitores votam em um candidato, não estão apenas escolhendo uma pessoa. Estão escolhendo uma voz, uma perspectiva, um conjunto de valores que querem ver defendido na Câmara. E a legislação eleitoral brasileira garante que essa voz chegue lá, mesmo que não seja majoritária.
Cassar esse mandato por discordância de pensamento é invalidar esses votos. É dizer a esses cidadãos: vocês votaram errado, suas ideias não podem ser representadas, seu pensamento não é bem-vindo.
A IMUNIDADE PARLAMENTAR NÃO É PRIVILÉGIO – É GARANTIA DEMOCRÁTICA
A Constituição Federal, em seu artigo 53, e as Leis Orgânicas municipais estabelecem a imunidade material dos parlamentares. Não é um privilégio pessoal do vereador – é uma garantia para que ele possa exercer seu mandato sem medo de perseguição.
A imunidade parlamentar protege opiniões, palavras e votos relacionados ao exercício do mandato. Por quê? Porque o Legislativo precisa ser o lugar onde todas as ideias podem ser debatidas, onde todas as críticas podem ser feitas, onde todas as propostas podem ser apresentadas – mesmo as impopulares, mesmo as que incomodam.
Se um vereador não pode criticar políticas públicas, questionar instituições, propor mudanças que contrariam consensos estabelecidos, para que serve o Legislativo? Vira apenas um espaço de chancelamento, não de debate.
A imunidade parlamentar existe para proteger a democracia, não o parlamentar. Protege o direito de seus eleitores serem representados sem censura.
O PRECEDENTE PERIGOSO
Imaginem o que acontece se criminalizar pensamento político vira prática aceita:
Hoje cassam um vereador crítico do ambientalismo. Amanhã cassam um vereador defensor de causas ambientais por “radicalismo”. Depois cassam um vereador de esquerda por “comunismo”. Então cassam um vereador de direita por “fascismo”. E assim sucessivamente, até que reste apenas o pensamento único, aquele que agrada à maioria circunstancial.
O impeachment é instrumento para crimes graves: peculato, corrupção, quebra de decoro parlamentar. Não é ferramenta para silenciar divergência. Se posições políticas justificassem cassação, toda a Câmara estaria em risco permanente, dependendo apenas de quem tem maioria naquele momento.
Esse precedente é perigoso não apenas para este vereador, mas para a própria instituição legislativa. Destrói a base sobre a qual o Legislativo se sustenta: a pluralidade protegida de pensamento.
A CÂMARA NÃO É LUGAR DE PENSAMENTO ÚNICO
A Câmara Municipal, assim como as Assembleias Legislativas e o Congresso Nacional, não foi criada para ser lugar de consenso permanente. Foi criada para ser arena de debate, confronto de ideias, discussão de divergências.
Se todos pensassem igual, bastaria um prefeito mandando e pronto. A existência do Legislativo pressupõe discordância. Pressupõe que haverá quem defenda A enquanto outros defendem B. Que haverá quem critique C enquanto outros o apoiam.
Essa é a força da democracia representativa: obrigar posições opostas a dialogarem, negociarem, encontrarem sínteses. Mas esse processo só funciona se todas as posições puderem se expressar livremente.
Quando silenciamos uma voz porque ela incomoda, porque ela questiona o que consideramos sagrado, porque ela propõe o que julgamos inaceitável – destruímos a própria razão de existir do Legislativo.
A sociedade é plural em pensamentos, costumes, culturas, ideias e ideais. Essa diversidade não é defeito a ser corrigido – é virtude a ser preservada. É o que nos protege de excessos, de qualquer vertente ideológica que seja.
CALAR O VEREADOR É CALAR SEUS ELEITORES
Mil quinhentos e noventa e um santarenos votaram nesse vereador porque se identificam com suas posições. Concordam com suas críticas. Apoiam suas propostas. Querem que essas ideias sejam defendidas na Câmara.
Cassar o mandato desse vereador não é apenas tirar uma cadeira do plenário. É dizer a esses mil quinhentos e noventa e um cidadãos que seu pensamento é criminoso, que suas ideias não merecem representação, que sua voz não importa.
E quem tem autoridade para fazer esse julgamento? Outros vereadores? O Ministério Público? Movimentos sociais?
Não. A Constituição é clara: quem julga parlamentar são seus eleitores. Nas urnas. A cada quatro anos. Esse é o único tribunal competente para decidir se um vereador deve ou não continuar representando sua base eleitoral.
Se os mil quinhentos e noventa e um eleitores desse vereador considerarem que ele não os representa mais, que traiu seus votos, que desviou de suas propostas – eles o punirão na próxima eleição. Não o reelegerão. Escolherão outro representante.
Mas enquanto durar o mandato popular conferido nas urnas, enquanto esses eleitores não retirarem seu apoio no momento constitucionalmente previsto para isso, ninguém mais tem autoridade para silenciar essa voz.
DIVERGIR NÃO É CRIME
O vereador em questão critica o modelo ambientalismo vigente. Questiona atuação de ONGs. Denuncia políticas que considera restritivas ao desenvolvimento. Propõe mudanças que contrariam consensos estabelecidos.
Você pode discordar dele. Pode considerar suas posições equivocadas, perigosas, irresponsáveis. Pode combatê-las politicamente, refutá-las argumentativamente, derrotá-las democraticamente.
Mas transformar divergência política em crime de responsabilidade é destruir a democracia por dentro. É usar instrumentos institucionais para eliminar oposição. É instalar ditadura do pensamento único sob verniz de legalidade.
Se as posições desse vereador são tão absurdas quanto dizem, derrotem-nas no debate. Apresentem dados melhores, argumentos superiores, propostas mais convincentes. Conquistem a opinião pública. Vençam nas urnas.
Mas não tentem vencer por nocaute técnico, calando o adversário, impedindo que suas ideias sejam ouvidas. Isso não é vitória democrática – é derrota da democracia.
O QUE REALMENTE ESTÁ EM JOGO
Este pedido de impeachment não é sobre corrupção. Não é sobre abuso de poder. Não é sobre quebra de decoro. É sobre silenciar pensamento crítico a determinadas políticas.
Se prosperar, estabelece precedente gravíssimo: qualquer vereador que questionar consensos, criticar instituições poderosas, propor mudanças que incomodem grupos organizados – estará sob risco de cassação.
Transformaremos a Câmara Municipal em espaço de autocensura, onde vereadores pesarão cada palavra antes de falar, temerosos de que uma crítica mais contundente vire processo de impeachment.
É isso que queremos? Um Legislativo amordaçado? Vereadores que só falam o que é politicamente seguro? Representação popular limitada ao que agrada aos detentores de poder institucional?
Ou queremos um Legislativo vivo, vibrante, plural, onde todas as ideias podem ser debatidas e a população decide, nas urnas, quais prevalecem?
A DEMOCRACIA SE FORTALECE NO DEBATE, NÃO NO SILENCIAMENTO
A democracia não se protege silenciando vozes discordantes. Se protege permitindo que todas as vozes se expressem e confiando na capacidade da sociedade de distinguir, debater e decidir.
Ideias ruins não são derrotadas com censura – são derrotadas com ideias melhores. Propostas equivocadas não são combatidas com cassação – são combatidas com propostas superiores.
Quando impedimos que uma posição seja defendida, não a destruímos – apenas a empurramos para fora do debate institucional, onde ela continuará existindo, talvez crescendo, mas sem possibilidade de confronto argumentativo.
O lugar correto para julgar se um vereador deve continuar no cargo não é um processo de impeachment por divergência ideológica. É a urna. Sempre foi, sempre será.
O RECADO PARA A CÂMARA MUNICIPAL
Senhores vereadores, que analisarão este pedido de impeachment:
Vocês não estão julgando apenas um colega de plenário. Estão julgando a natureza da própria instituição que integram.
Estão decidindo se a Câmara Municipal de Santarém será espaço de pluralidade ou de pensamento único. Se será arena de debate ou câmara de eco. Se representará toda a sociedade ou apenas os grupos que detêm poder de pressão institucional.
Estão decidindo se mil quinhentos e noventa e um santarenos têm ou não direito a representação. Se o voto deles vale ou se pode ser invalidado por discordância política de outros.
E estão criando precedente que, amanhã, pode ser usado contra qualquer um de vocês que ousar discordar de consensos estabelecidos, questionar instituições poderosas, propor mudanças que incomodem.
O voto de vocês não será apenas sobre este vereador. Será sobre que tipo de democracia queremos em Santarém.
CONCLUSÃO
Não defendo aqui as posições específicas do vereador em questão. Não digo que ele está certo ou errado em suas críticas, propostas ou análises.
Defendo algo anterior e mais fundamental: o direito dele de estar naquela cadeira, representando quem votou nele, expressando as posições que o elegeram, cumprindo o mandato popular que recebeu.
Defendo o princípio de que divergência política não pode ser criminalizada. Que pluralidade precisa ser protegida. Que a Câmara deve ser lugar onde todas as ideias podem ser debatidas.
Defendo, em última instância, a democracia. Aquela democracia imperfeita, barulhenta, incômoda às vezes, onde pessoas com quem discordamos profundamente têm o mesmo direito que nós de serem representadas.
Mil quinhentos e noventa e um santarenos confiaram seu voto a esse vereador. Somente eles – nas próximas eleições – têm autoridade para retirar essa confiança.
Qualquer outra forma de silenciamento não é vitória política. É derrota democrática.
A Câmara Municipal precisa escolher: será parlamento ou tribunal de inquisição ideológica?
Santarém precisa escolher: defenderá a democracia plural ou abraçará o pensamento único?
Mil quinhentos e noventa e um eleitores aguardam a resposta.
A democracia só existe quando protegemos o direito de quem pensa diferente de nós. Quando começamos a cassar mandatos por divergência ideológica, deixamos de ser democracia.
Não se trata de defender o que ele diz. Trata-se de defender o direito dele de dizê-lo. E principalmente, de defender o direito de 1.591 cidadãos de terem sua voz representada na Câmara Municipal.
Também é autor do livro “O Ambientalismo como Nova Forma de Colonialismo na Amazônia”, que você pode adquirir a versão impressa clicando aqui ou na imagem abaixo:
O Impacto



