CÍRIO DE NAZARÉ – A FÉ MAXIMALISTA: QUAIS SEUS LIMITES?

Por Carlos Augusto Mota Lima – Advogado Criminalista

Nasci e fui criado em Belém do Pará. Minha infância e juventude foram vividas nas periferias. A luta foi grande para galgar melhor posição na pirâmide social. Ainda assim, venci — sem bolsa social, sem vale-gás, sem pé de meia, sem ProUni. Tudo fruto da resiliência e da crença de que é possível vencer, mesmo quando estamos do lado descompensado da balança.

Desde garoto, tive a oportunidade de presenciar, por várias décadas, a festa do Círio de Nazaré. Esse transbordamento de fé, que move corações e transforma a cidade num palco iluminado, é um fenômeno inexplicável.

Naquele tempo de menino, sonhava o sonho impossível: ir ao arraial de Nazaré, brincar no parque de diversões e, quem sabe, ganhar um brinquedo, ainda que de miriti. Ledo engano. A prioridade, naquele tempo, era a sobrevivência. Quantas crianças ainda sonham com isso?

Assim como uma obra literária relida em diferentes fases da vida revela novos sentidos, também o Círio, vivido por décadas, se transforma aos nossos olhos conforme amadurecemos.

Na infância, caminhava entre a multidão, arrastado por mãos seguras, fruto de uma fé simples, ingênua e inabalável, sem compreender o significado daquilo. Era como se fôssemos movidos por uma força invisível que gerava o “efeito rebanho”. Caminhávamos cegos, mas cheios de fé. Mas, afinal, que fé é essa? Quais seus limites? Qual seu verdadeiro sentido?

A multidão parece energizada pela força solar escaldante dos trópicos. A massa humana caminha como se obedecesse a um comando remoto e, entre lágrimas, cânticos, aplausos e chuva de papel picado, ao som dos fogos que ecoam como um hino coletivo, segue com passos firmes animada pela fé. Perguntava-me: por que nos submetemos a esses sacrifícios? Que sentimentos nos levam a essas práticas doloridas?

O filósofo Immanuel Kant dizia que só conhecemos o mundo como ele nos aparece, e não como ele realmente é. Chamava isso de “fenômeno”. Enquanto a realidade em si, é tudo aquilo que está além da nossa percepção — que ele denominava “coisa em si”.

A fé talvez pertença a esse campo misterioso da “coisa em si”: algo que não se explica, mas se sente segundo nossas convicções e percepções. Para alguns, ela é maximalista — um impulso absoluto que tudo move; para outros, minimalista — um gesto racional e contido.

De um modo ou de outro, todo segundo domingo de outubro a cena se repete: o espetáculo da alma paraense se renova. Uns caminham com fervor, outros por tradição, e muitos apenas seguem o fluxo: os “Marias vão com as outras”. E, ainda assim, todos convergem para a mesma essência: a fé, sempre à espera de um milagre.

Na adolescência, a data significava alegria e mesa farta, um dia diferente, de comida simples, mas abundante. Para alguém pobre da periferia, isso já era o bastante. Na juventude, o encanto persistia, mas o olhar se tornava mais crítico.

Vi o Círio crescer na mesma proporção das mazelas e dos sofrimentos das almas humanas. Muitos buscam, na fé, alívio para as agruras e intempéries da vida. Hoje, adulto, já passando dos sessenta anos, percebo que a fé continua viva e inabalável em cada coração. A fé não tem explicação — e talvez seja essa a sua beleza.

É um sentimento que habita a alma humana, resiste ao tempo e se renova a cada geração. Ainda que vivamos, hoje, suspensos por fios tecnológicos, com informações instantâneas na palma das mãos, num mundo globalizado, aínda assim, a fé continua intrínseca à nossa essência interior.

Quantas pessoas, entre as milhares que caminham nessa romaria de fé, têm noção do funcionamento do Universo? Têm noção de que estamos todos flutuando, sustentados por forças invisíveis, em um pequeno ponto azul na imensidão cósmica?

Seja como for, de uma coisa tenho certeza: a fé não tem explicação: ponto final. Muito menos as diversas manifestações de um povo. Assim é o Círio de Nazaré: um fenômeno inexplicável, tanto quanto a própria existência de Deus.

É hora de reflexão, de solidariedade. O Círio, antes de tudo, retrata a maior expressão de diversidade. Simplesmente mágico, encantador. É de arrepiar em todos os momentos da caminhada. Além de trazer paz espiritual, aquece a economia, estimula o turismo e gera renda no campo da informalidade.

No próximo domingo, 12 de outubro de 2025, estaremos prestes a assistir novamente a esse espetáculo de fé e devoção cristã. São milhares de mãos e pés desconhecidos, entrelaçados, solidariamente. Um fenômeno simplesmente magnífico, de emocionar os fiéis em todo o seu percurso.

Neste próximo domingo, essas imagens habitarão meus sentimentos adormecidos de décadas, reavivando lembranças das várias fases em que me deparei com essa festa de devoção e fé. É o Círio. Feliz domingo.

Sobre o autor 

Advogado criminalista, inscrito na OAB/PA sob o nº 4725. Ex-professor de Direito Penal da Universidade da Amazônia (UNAMA) e da Universidade Luterana do Brasil (Ulbra), em Santarém. Pós-graduado em Ciências Penais, Direito Constitucional e Segurança Pública. Ex-delegado de Polícia Civil, tendo exercido as funções de Delegado Regional e Corregedor Regional do Oeste do Pará, além de ex-Defensor Público do Estado.

 Referência para citação

KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. Tradução de Valério Rohden e Udo Baldur Moosburger. São Paulo: Nova Cultural, 1999. (Coleção Os Pensadores).

 

O Impacto

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *