MEU DIA NO SUPERMERCADO

Por Célio Simões*

 Chegamos do nosso giro de fim de ano, por sinal curto em relação aos anteriores, e nos demos conta de que os mantimentos caseiros estavam zerados. Minha esposa elegeu como prioridade dar um grau na limpeza do apartamento, embora eu não visse nele qualquer vestígio de sujeira.

Mas ela é assim mesmo e nesse quesito (e nos outros também) eu não dou pitaco – e talvez por isso mesmo vivamos numa boa, há quase meio século. Já me preparava para ganhar a rua a pretexto de solucionar outras pendências, quando ela surgiu da cozinha com um papelucho na mão e pediu:

– Se você passar no supermercado compre o que está nesta lista, pois precisamos nos reabastecer.

Num relance vislumbrei que em sua caligrafia miúda, rabiscara o rol de gêneros que fui aos poucos decifrando: banana, alface, pepino, tomate, cenoura, limão, maçã, pera, mamão, melancia, laranja, maracujá, ovos, alho e cebola.

Na mesma proporção que eu evito os shoppings, por acha-los impessoais e repetitivos em toda parte, gosto de ir aos supermercados (com ela, diga-se de passagem) porém tenho especial predileção pelas feiras livres, por nelas testemunhar um espontâneo local de congraçamento, de dinâmicas relações sociais e econômicas, verdadeira celebração da cultura popular de uma cidade, como sabidamente é o Ver-o-Peso, a feira da 25 de Setembro e outras, apesar despeito da conhecida insegurança ou eventuais desconfortos.

Escolhi um supermercado perto de casa. Empurrando o carrinho, olhos grudados na lista de compras, ocorreu-me natural dúvida. Por onde começar? Até que me saio bem com carnes e peixes, principalmente estes, que como pescador conheço de sobejo, mas com o resto a coisa complica muito.

É que no setor dos hortifruti vejo todo mundo apalpando sensualmente quase tudo antes de colocar nos sacos plásticos, mas até hoje ainda não descobri o ponto certo que distingue uma maçã boa de outra imprópria para o consumo.

Observo discretamente as pessoas sacudindo no ar lustrosos maracujás como se fossem chocalhos, uns são devolvidos, outros são aproveitados e por mais que eu me esforce, não ouço neles barulho algum que sirva de referência entre aquele que presta e aquele que não presta.

Em tais circunstâncias, pedindo mil desculpas para não ser mal interpretado, sempre apelo às experientes donas-de-casa, rogando que me ajudem nas escolhas e até que tenho encontrado desinteressada colaboração. Ainda bem!

Nesse dia, meu carrinho já estava sortido, mas ainda faltava a alface, que minha esposa pediu tanto da verde como da escura, esta última vista com desconfiança por mim, pois imaginava que aquela cor fuliginosa, arroxeada e esquisita decorria da sua natural deterioração, e assim destinada ao lixo.

De longe vi uma compradora elegante, trajada como se fosse para uma solenidade, esquadrinhando as alfaces contra a luz ofuscante do teto, praticamente escaneando com os olhos as dobras enrugadas do vegetal, em busca talvez de algum piolho-de-cobra oculto nas folhagens e pensei: essa entende do riscado, vou pedir sua ajuda.

E no que tomei o rumo da classuda freguesa, na minha ilharga surgiu a voz alegre, amistosa, acolhedora e prazerosa de uma querida amiga, dessas que fizeram parte do feliz e já distante universo da meninice:

– Nossa, olha quem está aqui no supermercado! Quanto tempo meu amigo. Estou muito feliz em reencontrá-lo, em especial neste início de ano. Leio sempre seus textos, aplaudo suas crônicas, acompanho suas postagens nas redes sociais, vibro com as fotos das suas viagens. E você?…

Corações em festa, trocamos um caloroso abraço, ao tempo em que resumi as atividades que tenho nessa fase da vida que eufemisticamente rotulam de “melhor idade”, dizendo-lhe honestamente que ainda não me sinto velho – no máximo seminovo – para utilizar a linguagem do mercado automotivo.

Entretanto, apesar do afeto surgido naquele inesperado colóquio, abusei da amizade, apelei, e dela recebi eficaz assessoria para a compra dos pepinos e cenouras, conquanto sem minimamente entender como ela sabe que um está bom e o outro não. Despedimo-nos, depois de trocarmos notícias sobre nossos familiares, espalhados e vivendo suas vidas por essa aba de mundo.

Tudo OK? Não, reparei que ainda faltava o limão! Mas esse eu tiro de letra, pensei… Imagina se eu ia errar na compra daquilo que abundava em nosso vasto quintal, no dos vizinhos, na nossa fazenda de várzea, no Bar do Plácido, onde a caipirinha nos permitia vencer a inibição e dançar tipo Carlinhos de Jesus nos salões iluminados dos bailes de então, quando éramos todos jovens, livres e descompromissados.

É comigo mesmo, imaginei. Olhei o tal papel e lá constava, tipo uma ordem do dia na caserna, assinada pelo oficial: traga somente 12, de casca fina! No que eu estava me preparando para visualmente avaliar a milimétrica espessura da casca do primeiro limão que peguei, tive outra enorme surpresa:

– Não acredito! Cara, quanto tempo! Só pode ser presente de Ano Novo…

Refeito do susto, vi que na minha frente estava um sujeito risonho, baixo, físico minguado, trajando bermuda “jeans” e camisa polo verde berrante tipo lagarta de tomateiro, pilotando outro carrinho, que sinceramente nunca eu vira antes em qualquer lugar. Apertou com força minha mão e desandou a falar:

– Cara, eu estou muito feliz! Adoro encontrar meus colegas de turma brilhando em suas atividades. Estou aposentado, aproveitando a vida, meus filhos já casaram e venho sempre neste supermercado comprar as coisas, porque moramos bem aqui perto – falou e fez um biquinho com a boca indicando o rumo da sua morada – que eu continuei sem saber aonde era.

De soslaio, notei que o carrinho dele, contrastando com o meu, regurgitava de carne, peixe, frango, frutas, folhagens, enlatados, compotas, temperos, pães, bolos e material de limpeza. Sorte que a aposentadoria dele não foi pelo INSS, conjeturei, caso contrário, mal daria para os pães e ainda seria afanado pelos ladrões das “associações”. E dominei o ímpeto de pedir àquele desconhecido seu cronograma de compras, visando fazer com ele uma dobradinha, a fim de cumprir sem sobressaltos aquela espinhosa desobriga doméstica.

Mas ele não me dava chance falar, empolgado em sua catadupa discursiva sobre os bons tempos da faculdade. Até que indagou: Soubeste do Fulano? Agora ele é figurão nacional. Foi eleito diretor do Conselho Federal de Química, é pouco? Na nossa turma ele nem abria a boca, parecia uma mosca morta e agora manda e desmanda lá em Brasília. Dá para imaginar irmão?

Por Deus que está no Céu, será que esse tipo de coisa só acontece comigo, pensei quase em oração? De química, a única experiência que eu tive na vida, na meninice, foi preparar cerol de papagaio com o azulado vidro moído de leite de magnésia e goma arábica para empinar e tornar imbatíveis as minhas pipas, por isso vi logo que se tratava de um engano sobre a minha pessoa. Com toda a habilidade para não melindrá-lo, disse-lhe do equívoco que ele estava cometendo e a sua reação foi mais surpreendente ainda:

– Pôxa vida, me desculpa, mas tu és a cara do nosso colega da Faculdade de Química que foi também o orador da turma, juro que pensei que fosse ele…

Considerando que eu nunca fui contemplado pela beleza, fiquei com uma pena danada do tal colega dele… Mas, falando sério, era chegada a hora de tirar o meu interlocutor daquela saia justa, e foi ele mesmo que se incumbiu disso. Com a expressão iluminada por um largo sorriso, não se deu por achado:

– Pois é parceiro, mas mesmo não sendo tu, já que estamos nesse papo, vamos celebrar e desejar que todos os nossos amigos sejam felizes e tenham muita saúde em 2024. Ato contínuo, simulando um brinde, me fez repetir o gesto de tocar duas taças imaginárias, no clássico “tim tim” das comemorações de fim de ano. Roxo de vexame, notei a perplexidade dos que nos observavam, achando com razão que éramos dois coroas meio pancadas, o que me fez pedir com fervor à “Nazinha” que me livrasse daquele sujeito espalhafatoso, jurando que eu sairia no Círio grudado na corda, com uma vela em cada mão…

Esforcei-me na reciprocidade e finalmente nos despedimos. Saí dali com a sensação de enorme bem estar por ter me liberado da incômoda figura e ao mesmo tempo, realizado o ideal da fraternidade humana, mesmo com pessoa desconhecida e sem sombra de dúvida, meio abilolado das ideias.

Acho que valeu a encenação que fiz para não magoá-lo. A magia do Natal, que se estende até o Ano Novo, me fez descobrir que a resiliência (palavra da moda), faz toda a diferença. É questão apenas de disposição e que a gente incorpora com a prática, a mesma prática que faz as donas de casa darem show de competência nas suas costumeiras compras nos supermercados.

(*) CÉLIO SIMÕES DE SOUZA é paraense, advogado, pós-graduado em Direito e Processo do Trabalho, escritor, professor, palestrante, poeta e memorialista. É membro da Academia Paraense de Letras, membro e ex-presidente da Academia Paraense de Letras Jurídicas, fundador e ex-vice-presidente da Academia Paraense de Jornalismo, fundador e ex-presidente da Academia Artística e Literária de Óbidos, membro da Academia Paraense Literária Interiorana e da Confraria Brasileira de Letras em Maringá (PR). Foi juiz do TRE-PA, é sócio efetivo do Instituto Histórico e Geográfico do Pará, sócio correspondente do Instituto Histórico e Geográfico do Tapajós, fundador e membro da União dos Juristas Católicos de Belém e membro titular do Instituto dos Advogados do Pará. Tem seis livros publicados, recebeu várias menções honrosas e três prêmios literários.

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