DA FARTURA À FOME: COMO A AMAZÔNIA DEIXOU DE ALIMENTAR-SE COM MANDIOCA
Por Fábio Maia
A mandioca não é apenas um alimento na Amazônia – é um símbolo cultural, uma tradição ancestral e, historicamente, a base da segurança alimentar de nosso povo. Ou melhor: era. Porque a história que os números contam é de uma transformação trágica: de região exportadora para importadora, de autossuficiente para dependente.
O TEMPO DA FARTURA: QUANDO A MANDIOCA ALIMENTAVA A AMAZÔNIA
Entre as décadas de 1960 e 1980, a produção de mandioca na Amazônia representava não apenas sustento, mas prosperidade. Cada comunidade ribeirinha, cada vila, cada assentamento tinha suas roças de mandioca. As casas de farinha funcionavam em ritmo acelerado, o cheiro característico da farinha sendo torrada marcava o cotidiano das comunidades, e o produto amazônico era referência de qualidade.
Os dados históricos revelam uma região onde a agricultura familiar prosperava. O Pará era um dos maiores produtores nacionais de mandioca, e a farinha paraense abastecia não apenas o mercado local, mas era exportada para outros estados. Nossas comunidades tradicionais viviam da terra, com dignidade e autonomia econômica.
A produção era transmitida de geração em geração. Pais ensinavam filhos, que ensinavam netos. A tradição do cultivo da mandioca era mais que atividade econômica – era identidade cultural, era herança familiar, era forma de vida.
O INÍCIO DO DECLÍNIO: QUANDO AS TERRAS COMEÇARAM A DESAPARECER
A partir da década de 1970, algo começou a mudar. E não foram as condições climáticas, a fertilidade do solo ou a capacidade técnica dos agricultores. O que mudou foi a disponibilidade de terra para plantar.
A criação sistemática de unidades de conservação, que hoje representam 45,3% do território de municípios como Santarém, iniciou um processo de restrição progressiva às áreas produtivas. A FLONA Tapajós (1974), a RESEX Tapajós-Arapiuns (1998) e dezenas de outras unidades foram gradualmente retirando das mãos dos agricultores familiares o bem mais essencial para produzir: a terra.
Mas o problema não parou nas áreas oficialmente restringidas. A insegurança fundiária – essa burocracia proposital que impede a regularização de propriedades – criou um ambiente de incerteza devastador para o agricultor familiar. Por que investir em melhorar a roça se amanhã pode chegar uma ordem de despejo? Por que os filhos permaneceriam na terra sem garantia de que ela continuará sendo deles?
O AMBIENTALISMO DESTRUTIVO E SUAS VÍTIMAS REAIS
Há uma contradição brutal que precisa ser nomeada: o mesmo ambientalismo que diz defender a agricultura familiar é o principal responsável por sua destruição.
Como? Retirando sistematicamente as terras onde essas famílias produzem. Criando restrições que inviabilizam o cultivo tradicional. Burocratizando processos de regularização a ponto de torná-los impossíveis para pequenos agricultores. Criminalizando práticas ancestrais de manejo da terra.
O resultado está nos números: dados recentes indicam que a produção de mandioca caiu mais de 53% em alguns estados amazônicos em apenas 6 anos. Não foi praga. Não foi seca. Foi política.
As casas de farinha, que eram centros de atividade econômica e social nas comunidades, estão fechando. Os jovens fogem do campo porque não veem futuro na agricultura. As roças diminuem ano após ano. E a Amazônia, berço da mandioca, passa a importar o produto que sempre foi seu.
A LIÇÃO IGNORADA: QUANDO O INCENTIVO GERA PROSPERIDADE
Enquanto a Amazônia destrói sua agricultura, outras regiões mostram o caminho oposto. Estados que incentivaram o setor produtivo, que regularizaram terras, que investiram em infraestrutura e assistência técnica, viram sua agricultura prosperar.
Não é coincidência que regiões com menos restrições territoriais apresentem indicadores socioeconômicos superiores. Sinop, no Mato Grosso, tem PIB per capita de R$ 47.892 – mais que o dobro dos R$ 18.197 de Santarém. A diferença não está no clima ou no solo. Está na liberdade de produzir.
A fórmula é simples e testada em todo o mundo: segurança jurídica + acesso à terra + incentivo ao empreendedorismo = prosperidade. Mas na Amazônia, escolhemos conscientemente o caminho inverso.
DE EXPORTADORES A IMPORTADORES: O SIMBOLISMO DA DERROTA
A inversão é tão absurda que beira o surreal. A Amazônia, região que deu origem à domesticação da mandioca há milhares de anos, que desenvolveu dezenas de variedades adaptadas a diferentes condições, que criou técnicas tradicionais de cultivo e processamento reconhecidas mundialmente, agora importa farinha de mandioca de outros estados.
É como se a Champagne importasse vinho. Como se a Toscana importasse azeite. Como se a Amazônia não soubesse mais fazer o que fez por milênios.
Mas todos sabemos que não é falta de conhecimento ou capacidade. É resultado direto de políticas que sistematicamente inviabilizaram a produção local. Cada hectare transformado em reserva ambiental sem criterioso estudo de impacto socioeconômico é uma família a menos produzindo mandioca. Cada propriedade que permanece irregular por anos a fio é um agricultor a menos investindo em sua roça.
AS CONSEQUÊNCIAS EM CADEIA
A destruição da produção de mandioca não é problema isolado – é sintoma de uma doença econômica regional.
Para as famílias: Perda de autonomia, migração forçada para periferias urbanas, dependência de programas assistenciais, desagregação familiar.
Para as comunidades: Desarticulação das tradições, fechamento de casas de farinha, êxodo juvenil, empobrecimento coletivo.
Para a economia: Redução da produção local, aumento de importações, enfraquecimento da base produtiva, dependência crescente de transferências governamentais.
Para a região: Perda de identidade cultural, subordinação econômica, perpetuação da pobreza.
É o círculo vicioso em ação: menos produção gera mais pobreza, que gera mais dependência, que gera mais assistencialismo, que substitui a produção, que gera menos produção. E o ciclo se repete, sempre para baixo.
A ESCOLHA ESTÁ DIANTE DE NÓS
Temos duas opções claramente delineadas pelos fatos:
Opção 1 – Continuar o caminho atual: Mais restrições territoriais, mais burocracia fundiária, mais dificuldades para a agricultura familiar, mais êxodo rural, mais dependência assistencial. O resultado final todos conhecemos: empobrecimento progressivo, perda da identidade cultural, subordinação econômica permanente.
Opção 2 – Mudar de rumo: Regularização fundiária acelerada, revisão criteriosa das restrições territoriais considerando impacto socioeconômico, incentivo real à agricultura familiar, infraestrutura adequada, assistência técnica efetiva. O resultado também é previsível: fortalecimento da produção local, geração de renda, fixação do homem no campo, recuperação da autonomia alimentar.
UMA QUESTÃO DE SOBERANIA
Quando uma região perde a capacidade de alimentar seu próprio povo com o alimento que tradicionalmente produziu por séculos, isso não é apenas problema econômico. É perda de soberania. É subordinação. É dependência.
A mandioca, que deveria ser símbolo de nossa autonomia alimentar, tornou-se emblema de nossa subordinação econômica. E isso não aconteceu por acaso, por mudanças climáticas ou por esgotamento de recursos. Aconteceu por escolhas políticas deliberadas, encapadas no discurso ambientalista, que sistematicamente destruíram a base produtiva da agricultura familiar amazônica.
Cada casa de farinha que fecha, cada roça que é abandonada, cada jovem que deixa o campo é mais uma vitória desse projeto de empobrecimento regional. Um projeto que, infelizmente, tem sido implementado com eficiência notável.
A pergunta que fica é: até quando?
Fábio Ivaldo Vieira Maia é vice-diretor de Patrimônio da Associação Comercial e Empresarial de Santarém (ACES) e autor do estudo “Relatório Analítico Regional: Crise da Autossuficiência Alimentar”.
Também é autor do livro “O Ambientalismo como Nova Forma de Colonialismo na Amazônia”, que você pode adquirir a versão impressa clicando aqui ou na imagem abaixo:



