CÂMERAS CORPORAIS: A URGÊNCIA DE TRANSPARÊNCIA NAS AÇÕES DA POLÍCIA FEDERAL
Por Carlos Augusto Mota Lima, Advogado Criminalista
A trágica Operação Eclesiastes, realizada recentemente pela Polícia Federal em Belém do Pará, reacendeu um debate inadiável: por que a Polícia Federal ainda atua sem câmeras corporais?
Nove agentes federais, encapuzados e fortemente armados, adentraram um apartamento em Belém do Pará, com ordem judicial, em busca de um homem chamado “Marcelo da Sucata”. No interior do imóvel, encontrava-se um jovem homônimo, também chamado Marcelo, que foi alvejado e morto pelos policiais, enquanto o verdadeiro alvo, “Marcelo da Sucata”, estava em outro quarto do mesmo apartamento. No erro fatal, a ação terminou com a morte de um inocente, executado em sua própria casa.
O verdadeiro “Marcelo da Sucata” já havia sido preso por tráfico de drogas e estava novamente sendo investigado pela Polícia Federal pelo mesmo crime. Ele estava no mesmo imóvel porque mantinha um relacionamento amoroso com a mãe do jovem morto, uma escrivã de Polícia Civil do Pará, que, inclusive, encontrava-se no local no momento da invasão que culminou na morte de seu filho.
Em nota, a Polícia Federal afirmou que a operação seguiu os “padrões operacionais” e que os policiais agiram em legítima defesa, utilizando meios “necessários e proporcionais”. Mas o que há de proporcional em nove agentes com fuzis abrirem fogo contra um homem desarmado e surpreendido dentro do apartamento? A mãe da vítima e testemunhas afirmam que ele sequer reagiu. Ainda que tivesse, o argumento da legítima defesa soa juridicamente insustentável diante da evidente desproporção de forças.
Mais chocante que o erro foi o silêncio da imprensa e das instituições. Nenhuma cobrança pública, nenhuma exigência de imagens, nenhum questionamento sobre o uso de câmeras corporais. Se a mesma operação tivesse sido protagonizada por policiais civis ou militares, o clamor público seria imediato e os envolvidos, provavelmente, afastados, ou até presos preventivamente.
Essa assimetria revela uma perigosa complacência institucional: quando o erro vem da Polícia Federal, o país silencia. Esse silêncio é conivente?. As forças de segurança pública são tratadas de forma desigual, a começar pelos salários, embora o risco da atividade seja o mesmo, e, sem dúvida, a criminalidade enfrentada pelas polícias civis e militares é cem vezes mais complexa e letal que as operações da Polícia Federal que, via de regra, não agem de inopino, sempre atuam em operação bem planejadas.
A Polícia Federal atua, em regra, no combate à criminalidade organizada. Suas ações são voltadas, em grande parte, a crimes de tráfico internacional de drogas, crimes ambientais e contra a Administração Pública. São operações planejadas, com investigações que duram meses, com escutas, campanas e estratégias calculadas. Geralmente, seus alvos são empresários, políticos ou servidores, pessoas que raramente oferecem risco real à integridade dos agentes a exemplo dos envolvidos no desvio bilionário do INSS.
Em contrapartida, os policiais civis e militares são os verdadeiros guardiões do sistema social, estando na linha de frente, confrontando diariamente a criminalidade organizada e desorganizada, esta última, fruto do drama social que atinge as periferias, escolas, clubes e até mansões. É uma criminalidade imprevisível e violenta, que consome o tempo e a vida de milhares de agentes estaduais, enquanto a Polícia Federal atua distante desse cotidiano de estresse permanente.
O combate à criminalidade urbana levou diversos estados a adotarem o uso de câmeras corporais como forma de inibir ações letais e abusos. Entretanto, a meu juízo, é impossível aplicar na prática um “uso moderado” da força policial em situações de risco real e iminente. O número de policiais mortos em serviço demonstra o quanto essa fronteira entre agir e reagir é tênue.
Não pretendo julgar o mérito da operação policial, conheço de perto os riscos envolvidos. Já fui vitimado em serviço e sei que, muitas vezes, quando deixamos de agir, nos tornamos as próprias vítimas. O limite entre o uso da arma letal e a proteção dos direitos humanos é estreito. No calor da ação, com a adrenalina elevada, é quase impossível traçar linhas racionais de conduta. Dentro de cada policial, existe um instinto natural de sobrevivência.
Mas o caso de Belém simboliza algo maior ou de fato, um erro operacional? É um atentado à dignidade da pessoa humana e aos direitos fundamentais consagrados na Constituição? É preciso esclarecer a cerca da ação e verificar se estava dentro dos limites razoáveis do uso moderado da força e dos meios necessários a proteção da vida. Com a palavra, a Justiça, presente os pressupostos da legítima defesa, a lei é clara: não há crime ante a presença de excludente de ilicitude da legítima defesa. O Estado não pode matar primeiro e justificar depois. A vida de um inocente não pode ser tratada como “dano colateral” de uma operação, que em tese, seja desastrosa. Todavia, a lei autoriza, não só às forças políticas, mas qualquer pessoa a matar alguém, desde de que esteja presente os pressupostos de exclusividades de Ilicitude previstas no ART. 23 do CPB.
Surge então a pergunta: quais são os limites do uso letal da força policial? Seria necessária a presença de um procurador federal nas equipes de campo da Polícia Federal? Ou, no caso dos estados, a participação de um promotor de justiça nas operações de risco para legitimar a Ação dos Policiais civis e militares?
O que diz a lei sobre o uso de câmeras corporais? O uso de câmeras corporais por agentes de segurança pública passou a ser regulamentado nacionalmente pela Portaria nº 648/2024 do Ministério da Justiça e Segurança Pública, publicada em 26 de junho de 2024. A norma estabelece diretrizes para a implementação dos equipamentos em ações policiais, priorizando a gravação de operações que envolvam: Cumprimento de mandados judiciais; Intervenções com potencial de confronto armado; Abordagens e prisões em flagrante; Situações de contato direto com o público.
A Portaria prevê que as gravações devem ser armazenadas de forma segura e disponíveis para controle judicial, administrativo e pericial. No entanto, a adesão à norma ainda é facultativa para órgãos federais, o que inclui a Polícia Federal e a Polícia Rodoviária Federal. Ou seja, não há, até o momento, obrigatoriedade legal de uso de câmeras corporais pela Polícia Federal, o que reforça a urgência de regulamentação específica.
Por isso, é urgente que o Ministério da Justiça e Segurança Pública determine o uso obrigatório de câmeras corporais por agentes da Polícia Federal, bem como pelas polícias civis e militares, especialmente em ações de alto risco e cumprimento de mandados.
Transparência não é fragilidade institucional, é o que separa o Estado Democrático de Direito da arbitrariedade. Contudo, essa exigência deve observar o princípio da isonomia: não pode o Estado exigir das polícias estaduais o que ele próprio, por meio da Polícia Federal, não cumpre. Essa diferença de tratamento é discriminatória, especialmente contra as forças que mais arriscam a vida em defesa da sociedade.
Câmeras corporais, em tese, protegem o cidadão contra abusos, mas também resguardam o próprio policial de falsas acusações, isso é fato inquestionável. No entanto, é preciso disciplinar o uso de forma uniforme e equitativa, e não restrita às polícias militares, que são as mais expostas ao enfrentamento direto do crime.
Em estados como São Paulo, onde o equipamento foi adotado, houve comprovada redução da letalidade e aumento da confiança social na polícia. Contudo, o tema perdeu força política, talvez pelo alto custo de manutenção e expansão do sistema. Ainda assim, desde o início da discussão, não há relatórios públicos e consistentes sobre o custo-benefício do uso das câmeras corporais e essa omissão enfraquece o debate.
Se a tecnologia existe e os resultados são positivos, a inércia estatal torna-se injustificável. O país não pode exigir transparência apenas das polícias estaduais, enquanto a Polícia Federal atua às escuras, sob o manto da impunidade e do corporativismo. Aliás, o uso de câmeras corporais deveria ser obrigatório também dentro do Congresso Nacional, onde decisões igualmente impactam vidas e destinos.
A morte de um inocente em Belém do Pará deveria marcar o início de uma nova política de segurança pública no Brasil: sem câmeras, não há verdade; sem verdade, não há justiça.
Será que, se os policiais federais da operação Eclesiastes, que vieram de Brasília, exclusivamente para essa operação, estivessem utilizando câmeras corporais, estaríamos discutindo esse assunto? As imagens, com certeza, seriam provas inequívocas da verdade, seja ela qual for.
Sobre o autor
Carlos Augusto Mota Lima, Advogado criminalista, inscrito na OAB/PA sob o nº 4725. Ex-professor de Direito Penal da Universidade da Amazônia (UNAMA) e da Universidade Luterana do Brasil (ULBRA), em Santarém. Pós-graduado em Ciências Penais, Direito Constitucional e Segurança Pública. Ex-delegado de Polícia Civil, tendo exercido as funções de Delegado Regional e Corregedor Regional do Oeste do Pará, além de ex-Defensor Público do Estado.


