STF: GUARDIÃO DA CONSTITUIÇÃO OU INSTRUMENTO DE PODER?  

Por Manoel Chaves Lima – Advogado tributarista e trabalhista, inscrito na OAB/PA nº 7677, com mais de 26 anos na advocacia cível

Desde a promulgação da Constituição Federal de 1988, o Supremo Tribunal Federal (STF) foi concebido como o guardião máximo da Carta Magna, um poder contramajoritário destinado a assegurar a supremacia da Constituição frente aos arroubos eventuais dos demais poderes. Era o STF que, pela via do controle de constitucionalidade e da jurisdição constitucional, deveria impedir que governos, maiorias legislativas ou interesses circunstanciais violassem direitos fundamentais, afrontassem cláusulas pétreas ou comprometessem o Estado Democrático de Direito.

Durante décadas, esse papel foi exercido com notável rigor técnico. As decisões dos ministros — muitas vezes divergentes entre si, mas quase sempre profundamente fundamentadas — traduziam a mais alta expressão do saber jurídico nacional. As indicações para a Corte eram marcadas pela exigência constitucional do notório saber jurídico e da reputação ilibada, o que resultava na nomeação de juristas consagrados, professores, magistrados ou advogados de carreira reconhecida. O Senado Federal, em suas sabatinas, cumpria um papel relevante na aferição desses requisitos. E, assim, mesmo quando havia divergências ideológicas entre ministros, o que prevalecia era a fidelidade à Constituição e aos princípios estruturantes da República.

A Sutileza da Mudança

A partir de meados das décadas de 2010 a 2020, contudo, um fenômeno preocupante começou a ganhar corpo. Aos poucos, decisões da Corte passaram a se afastar, de sua missão constitucional, revelando interpretações elásticas, seletivas ou claramente influenciadas por conjunturas políticas. Em muitos casos, temas centrais do ordenamento jurídico, passaram a ser decididos com base em visões pessoais, ideológicas ou casuísticas, deixando em segundo plano o texto constitucional, a doutrina consolidada e até mesmo a jurisprudência histórica da própria Corte.

Essa tendência, inicialmente discreta, tornou-se cada vez mais evidente. Hoje, não são raros os casos em que o Supremo invoca a Constituição quando a decisão favorece a lógica do sistema político vigente, mas a ignora quando ela o contraria. A consequência prática disso é devastadora: a previsibilidade do Direito — elemento essencial da segurança jurídica — cede espaço à incerteza e à arbitrariedade.

A Banalização dos Requisitos Constitucionais

A crise institucional do STF não se limita ao conteúdo de suas decisões. O processo de composição da Corte, que deveria ser uma solenidade republicana pautada por critérios técnicos e éticos, tem sido progressivamente banalizado. Em vez de debates sobre notório saber jurídico, reputação ilibada e trajetória acadêmica ou profissional, vemos a imprensa e o meio político reduzindo a escolha a critérios identitários, alinhamentos ideológicos ou interesses partidários. PECs são propostas para impor cotas, ministros em atividade indicam nomes de preferência e membros do governo tratam a escolha como mera extensão do projeto político de ocasião.

Tudo isso afronta diretamente o texto constitucional. O artigo 101 da Carta é claro e não deixa margem à dúvida: os ministros do STF devem possuir notável saber jurídico e reputação ilibada. Substituir esses critérios por afinidades ideológicas, representatividade de grupos ou lealdade política não é apenas um erro político — é uma violação frontal à Constituição, perpetrada muitas vezes por aqueles que, paradoxalmente, se apresentam como seus maiores defensores.

Aparelhamento e Perpetuação do Poder

O risco mais grave desse processo é o aparelhamento institucional. Quando as indicações para a Corte passam a obedecer a uma lógica de manutenção do poder e não à preservação da Constituição, o STF deixa de ser um tribunal constitucional e se transforma em um instrumento político. A pressão para que ministros antecipem aposentadorias — supostamente para garantir nomeações alinhadas ao governo de plantão antes de mudanças no cenário eleitoral — é um exemplo preocupante desse fenômeno.

Em lugar de guardiões da Constituição, temos o risco de formar uma Corte com ministros jovens, ideologicamente comprometidos e com mandatos que se estendem por décadas, garantindo a hegemonia de um projeto político mesmo após sua rejeição nas urnas. Trata-se de um desvio estrutural que compromete a própria essência do Estado Democrático de Direito.

Hora de Retomar o Papel Constitucional

A democracia brasileira precisa enfrentar esse debate com seriedade. Não se trata de esquerda ou direita, governo ou oposição. Trata-se de resgatar o papel constitucional do Supremo Tribunal Federal e de impedir que a mais alta Corte do país seja reduzida a um braço do poder político.

O STF precisa voltar a ser aquilo que a Constituição determinou: um tribunal técnico, independente, comprometido com o texto constitucional e com os direitos fundamentais, composto por juristas de reconhecida competência, e não por agentes políticos travestidos de magistrados.

Enquanto esse resgate não ocorrer — seja por reformas estruturais, seja por pressão legítima da sociedade civil — a República permanecerá fragilizada, a Constituição continuará vulnerável e a democracia será apenas uma palavra repetida retoricamente por aqueles que, na prática, a subvertem.

O Supremo não pertence a governos, partidos ou ideologias. Pertence à Constituição — e, por consequência, ao povo brasileiro. E é tempo de lembrar isso com a mesma clareza com que os constituintes de 1988 o afirmaram.

O Impacto

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *