A CRISE DO PESCADO NA AMAZÔNIA: QUANDO A ABUNDÂNCIA VIRA DEPENDÊNCIA
“O Rio Era Nossa Geladeira” (Ditado popular)
Por Fábio Maia
Santarém, cidade estrategicamente posicionada no encontro dos rios Tapajós e Amazonas, carrega em sua história uma relação ancestral e visceral com o peixe. Durante décadas, o pescado não era apenas alimento — era identidade, cultura, economia e sustento de milhares de famílias.
Nas feiras e mercados municipais, o peixe fresco chegava nas primeiras horas do dia, trazido por pescadores artesanais que conheciam cada curva do rio, cada ponto de pesca, cada ciclo das espécies. O tambaqui, o tucunaré, o jaraqui, a pirarara e dezenas de outras espécies compunham a base da dieta regional, fornecendo proteína de qualidade e sustentando uma cadeia econômica que movimentava comércio, transporte e processamento.
O consumo de pescado na Amazônia sempre foi significativamente superior à média nacional — estimado em 31,3 kg por habitante ao ano, quase quatro vezes maior que o restante do Brasil. Essa relação com o peixe não era luxo, era sobrevivência. Não era escolha, era tradição. E o rio, sempre generoso, provia.
Mas algo mudou. E mudou drasticamente.
A Decadência Gradativa e a Invasão Silenciosa
Hoje, na mesma Santarém que um dia abasteceu a si mesma e exportou para outras regiões, o peixe que chega às mesas vem de longe. Muito longe.
Estima-se que 65% do pescado consumido na região seja importado de estados como Mato Grosso, Rondônia e Paraná. São caminhões frigoríficos que percorrem mais de 2.500 km trazendo tilápia, tambaqui e outras espécies criadas em cativeiro, vendidas a preços que, paradoxalmente, são mais baixos que o peixe local.
A demanda anual de pescado na região do Oeste do Pará gira em torno de 12.480 toneladas. A produção local — somando pesca extrativa e uma piscicultura ainda incipiente — mal atinge 4.368 toneladas. O déficit de 8.112 toneladas representa uma sangria econômica de R$ 97,3 milhões por ano que saem da região para abastecer produtores de outros estados.
E a pergunta que ninguém quer responder é simples: por que o peixe de fora chega mais barato que o nosso?
A resposta não está na incompetência do pescador regional. Está na sabotagem institucional promovida por um ambientalismo burocrático que, há décadas, impede sistematicamente o desenvolvimento da piscicultura na Amazônia.
O Sabotador Invisível: Ambientalismo Burocrático
Enquanto estados como Mato Grosso, Rondônia e Paraná desenvolveram polos de piscicultura competitivos, com economia de escala, acesso facilitado a insumos e marcos regulatórios ágeis, a Amazônia foi deliberadamente travada.
O Bloqueio das Áreas Produtivas
A criação de Unidades de Conservação e zonas de amortecimento — que hoje ocupam 45,3% do território regional — não apenas restringe o desmatamento. Ela inviabiliza a expansão de qualquer atividade produtiva, incluindo a piscicultura.
Enquanto apenas 9,42% do território está disponível para uso agropecuário, produtores locais enfrentam uma burocracia kafkiana para licenciar tanques escavados, açudes e projetos aquícolas. O processo é demorado, caro e, muitas vezes, simplesmente negado.
Sem áreas legalizadas para expansão, não há escala. Sem escala, não há infraestrutura. Sem infraestrutura, não há competitividade.
A Ausência de Fábricas de Ração
A ração para peixes representa o principal custo da piscicultura — cerca de 60% do total. Nos estados produtores, a proximidade com a produção de milho e soja permite a fabricação local de ração, barateando drasticamente os custos.
Na Amazônia, não há produção excedente de grãos porque as áreas produtivas foram bloqueadas. Sem grãos, não há fábricas de ração. Sem fábricas, os piscicultores locais precisam importar ração de outros estados, elevando seus custos e tornando-os inviáveis no mercado.
É um ciclo perverso, criado e mantido por políticas que fingem proteger, mas na prática destroem.
O Licenciamento como Arma de Bloqueio
Enquanto em Rondônia e Mato Grosso o licenciamento de projetos de piscicultura é simplificado e proporcional ao porte do empreendimento, na Amazônia a mesma atividade enfrenta exigências equivalentes às de grandes hidrelétricas.
A legislação ambiental, genérica e descontextualizada, trata um pequeno tanque de piscicultura familiar como ameaça equivalente a um desmatamento ilegal. O resultado é o desestímulo, a informalidade e a estagnação do setor.
As Consequências Sociais do Colapso
- Estagnação do Setor Pesqueiro
A pesca extrativa artesanal, que sustentou gerações, enfrenta hoje a sobrepesca, a degradação ambiental e a concorrência desleal com o produto importado. Pescadores que antes viviam dignamente de sua produção hoje vendem a preços baixos ou simplesmente desistem.
- Insuficiência Alimentar
Com 65% do pescado consumido sendo importado, a região perde soberania alimentar. A população fica refém de flutuações de preço, problemas logísticos e crises externas. Durante a seca histórica de 2023 no Amazonas, o desabastecimento foi imediato e brutal.
- Dependência de Benefícios Sociais e Cabresto Político
Pescadores artesanais, sem condições de competir, tornam-se dependentes do seguro-defeso e de programas assistenciais. Essa dependência abre espaço para a manipulação política, transformando direitos em moeda de troca e fragilizando a autonomia das comunidades.
Há relatos recorrentes de benefícios condicionados à apoio eleitoral, de cadastros manipulados e de comunidades cooptadas. A pesca, que deveria gerar renda, vira instrumento de controle.
- Fuga de Capital Circulante
Os R$ 97,3 milhões anuais gastos com a importação de pescado são recursos que deveriam estar gerando empregos, renda e impostos na região. Cada caminhão que chega de Mato Grosso carrega, além de peixe, a riqueza que deveria pertencer aos amazônidas.
Esse capital, se investido localmente, poderia financiar fábricas de ração, frigoríficos, sistemas de distribuição e assistência técnica. Mas ele vai embora. E a região empobrece.
O Futuro que Nos Espera (Se Nada Mudar)
Se o modelo atual de gestão ambiental destrutiva continuar, o setor pesqueiro amazônico não será “protegido” — será extinto comercialmente.
A pesca artesanal, marginalizada e sem competitividade, se tornará apenas uma cultura de subsistência, incapaz de gerar prosperidade. Os pescadores, antes protagonistas de sua economia, serão reduzidos a dependentes crônicos de programas assistenciais.
E o rio — que sempre foi geladeira, despensa, identidade — será apenas paisagem. Bonito de ver. Vazio de futuro.
A Escolha que Precisamos Fazer
O paradoxo do pescado na Amazônia não é um fenômeno natural. É uma escolha política. É o resultado de décadas de sabotagem institucional travestida de proteção ambiental.
Proteger o rio não é impedir que ele alimente seu povo. Proteger a floresta não é condenar o amazônida à fome. E proteger o pescador não é transformá-lo em assistido.
Proteger é permitir que a Amazônia produza com dignidade.
É desburocratizar o licenciamento. É liberar áreas para piscicultura sustentável. É atrair fábricas de ração. É garantir infraestrutura. É reconhecer que o peixe importado de 2.500 km de distância não é sustentabilidade — é incoerência.
A Amazônia tem rios. Tem peixes. Tem gente. Tem potencial.
O que falta é vontade política para destravar o que foi deliberadamente travado.
E enquanto essa vontade não vier, continuaremos comendo o peixe dos outros. Enquanto o nosso, abundante e esquecido, morre de fome junto com quem deveria alimentar.
Fábio Maia
Empresário, Diretor da ACES, Colunista do jornal O Impacto e autor do “Relatório Analítico Regional sobre Crise Alimentar na Amazônia, 2025“



Retrato verdadeiro , muito bem desenhado por esse belo articulista ,Fábio Maia . Parabéns .