A CONSTITUIÇÃO EM RISCO: O STF, O ESTADO DE DIREITO E O FUTURO DA DEMOCRACIA BRASILEIRA
Por Manoel Chaves Lima – Advogado tributarista e trabalhista, inscrito na OAB/PA nº 7677, com mais de 26 anos na advocacia cível
A República e o Juramento Constitucional
A Constituição Federal de 1988 representa o mais importante pacto político e jurídico da história republicana brasileira. Nascida do desejo coletivo de superar o autoritarismo e consolidar um Estado fundado em liberdades, garantias e direitos fundamentais, ela se tornou o marco civilizatório que dá forma ao país contemporâneo.
Ao Supremo Tribunal Federal (STF) coube a tarefa mais nobre e sensível: ser guardião e intérprete último da Constituição, zelar pela supremacia do texto constitucional e impedir que qualquer poder — Executivo, Legislativo ou Judiciário — ultrapasse os limites impostos pelo constituinte originário.
Durante muitos anos, essa função foi exercida com notável rigor técnico. As decisões da Corte, profundamente fundamentadas, eram reflexo de um compromisso institucional com a Constituição, com os princípios republicanos e com o Estado Democrático de Direito.
Entretanto, nas últimas décadas, esse compromisso tem sido progressivamente corroído por práticas, decisões e tendências que ameaçam a integridade do pacto constitucional.
O Brasil assiste, perplexo, à transformação do STF: de tribunal constitucional e árbitro neutro do sistema republicano em ator político relevante, cuja atuação, muitas vezes, se distancia do texto constitucional, se aproxima de agendas ideológicas e coloca em xeque a harmonia entre os poderes. É hora de debater, com profundidade e serenidade, o significado e as consequências desse fenômeno.
1 – STF: Guardião da Constituição ou Instrumento de Poder?
Desde a redemocratização, a composição do Supremo Tribunal Federal esteve associada ao prestígio técnico e intelectual de seus membros. A Constituição exige, em seu artigo 101, que os ministros tenham notável saber jurídico e reputação ilibada, e essa exigência não é meramente formal: trata-se de um critério que assegura a autoridade moral e intelectual de quem tem a última palavra sobre a Constituição.
Durante anos, a sociedade brasileira assistiu a sabatinas rigorosas no Senado, debates públicos sobre a trajetória dos indicados e decisões colegiadas que, mesmo quando divergentes, demonstravam sólida fundamentação constitucional, respeito às cláusulas pétreas e diálogo com a doutrina e a jurisprudência internacional.
Contudo, a partir da segunda década do século XXI, esse cenário começou a mudar. As decisões da Corte passaram a revelar interpretações cada vez mais flexíveis e seletivas da Constituição, ora ampliando competências sem base textual, ora relativizando direitos fundamentais sob pretextos ideológicos ou conjunturais. A previsibilidade do Direito — essencial à segurança jurídica — passou a ceder espaço à subjetividade.
Paralelamente, o processo de escolha dos ministros se politizou em níveis inéditos. A exigência constitucional de notório saber jurídico e reputação ilibada passou a ser substituída, no debate público, por critérios identitários, alinhamentos ideológicos e fidelidade política. O Senado, por sua vez, muitas vezes abdicou de seu papel fiscalizador e se limitou a aprovar indicações com base em arranjos partidários.
O resultado é preocupante: a Corte que deveria ser a guardiã imparcial da Constituição corre o risco de se tornar instrumento de projetos políticos transitórios, comprometendo a confiança da sociedade e o equilíbrio do sistema republicano.
2 – A Hora da Reforma: Por que Precisamos de Mandato no STF
O modelo atual de composição do STF — com ministros nomeados pelo Presidente da República, aprovados pelo Senado e vitalícios até os 75 anos — foi concebido em um contexto histórico em que a estabilidade institucional era prioridade. A vitaliciedade visava garantir a independência dos magistrados e protegê-los de pressões políticas.
Entretanto, a realidade política brasileira contemporânea demonstra que esse modelo se tornou obsoleto e, em muitos aspectos, perigoso. Ao nomear ministros jovens e ideologicamente alinhados, um governo pode exercer influência sobre a Corte por mais de três décadas, perpetuando projetos políticos mesmo após sua rejeição nas urnas. A vitaliciedade, antes escudo da democracia, pode converter-se em instrumento de captura institucional.
As democracias mais avançadas do mundo oferecem exemplos de soluções para esse problema. Em países como Alemanha, França, Itália, Espanha e Portugal, os juízes das Cortes Constitucionais têm mandatos entre 9 e 12 anos, sem recondução. Isso garante renovação periódica, impede feudos ideológicos e reforça a legitimidade democrática do tribunal.
O Brasil precisa seguir esse caminho. Uma proposta republicana e urgente deve contemplar:
I – Mandato único de 12 anos, sem recondução, garantindo tempo suficiente para atuação independente e limitando a influência de um único governo.
II – Exigência mínima de 10 anos de magistratura efetiva, assegurando experiência prática e maturidade jurídica.
III – Comprovação objetiva do notório saber jurídico, mediante títulos acadêmicos, produção científica e trajetória reconhecida.
IV – Sabatinas rigorosas e transparentes, com participação da sociedade civil e entidades jurídicas.
V – Vedação de indicações de parentes ou assessores diretos de autoridades em exercício, para garantir impessoalidade e afastar conflitos de interesse.
A adoção de um modelo como esse não enfraquece o STF. Pelo contrário: fortalece sua legitimidade, renova sua composição e protege a democracia da captura institucional.
3 – Cláusulas Pétreas Não São Sugestões
A erosão da autoridade constitucional não se manifesta apenas na composição do Supremo ou na politização das decisões. Ela ocorre também — e talvez principalmente — no terreno da interpretação. Nos últimos anos, tem-se assistido à perigosa prática da seletividade constitucional: a Constituição é invocada com fervor quando serve a determinados propósitos, mas ignorada ou reinterpretada quando contraria interesses políticos ou ideológicos.
As cláusulas pétreas, definidas pelo artigo 60, §4º da Constituição, não podem ser abolidas nem por emenda constitucional. Elas representam o núcleo intangível do Estado brasileiro: a separação dos poderes, o voto direto, a forma federativa do Estado, os direitos e garantias individuais, a dignidade da pessoa humana, a liberdade de expressão e o devido processo legal.
Tratá-las como princípios maleáveis — suscetíveis de relativização conforme a conveniência — significa minar as bases do Estado Democrático de Direito. Nenhum poder está autorizado a reinterpretar esses fundamentos conforme suas preferências políticas.
Nenhum tribunal pode agir como legislador ou governante travestido de intérprete constitucional.
A Constituição não é um cardápio no qual se escolhe o que aplicar. É a norma suprema do Estado, e todos — governantes e governados — estão submetidos a ela. Quando a Corte que deveria protegê-la passa a moldá-la aos interesses do poder, a democracia deixa de ser um regime de limites e se torna um regime de arbítrio.
4 – O Dever de Reagir
A Constituição de 1988 é mais do que um texto jurídico: é o alicerce da República, o pacto que une a sociedade brasileira e limita o exercício do poder. Sua integridade não pode ser negociada, relativizada ou reinterpretada ao sabor das circunstâncias políticas.
O Brasil precisa, com urgência, reencontrar o caminho do constitucionalismo. É dever do Parlamento promover reformas que garantam equilíbrio e pluralidade no STF. É dever da sociedade civil vigiar e denunciar abusos interpretativos. É dever dos operadores do Direito defender a supremacia do texto constitucional contra a tentação do poder sem limites.
As cláusulas pétreas não são sugestões. O mandato não pode ser eterno. A Constituição não pode ser reescrita por decisões judiciais.
Se quisermos preservar a democracia, precisamos resgatar o papel originário do Supremo Tribunal Federal: ser guardião fiel da Constituição e não instrumento de projetos políticos. Essa é a tarefa histórica do nosso tempo — e dela depende o futuro da República.
Democracia não se constrói com discursos sobre Estado de Direito, mas com respeito efetivo às suas bases. E a base do Estado de Direito é a Constituição. Proteger sua integridade é proteger o Brasil.
O Impacto


