Entrevista com deputado federal João Paulo Cunha
Anunciado como o “julgamento do século”, o Mensalão, um caso de pouca expressão jurídica, galvanizou o Supremo Tribunal Federal. Cada ministro deslocou seus melhores quadros para, com lupa de aumento, não deixar escapar uma vírgula dos autos. Isso quer dizer que o julgamento será técnico? Difícil dizer, mas não é impossível. As duas mais poderosas forças vivas do Brasil estão em confronto. No ataque, os mais importantes veículos de comunicação, em campanha aberta, vocalizam e turbinam a opinião pública. Na defesa, o pico da pirâmide do poder político, ou seja: o governo central do país.
Nesta entrevista, um dos acusados, o deputado federal João Paulo Cunha (PT-SP) mostra seu inconformismo com a pressão sobre os ministros do STF — já chamada por um deles de “faca no pescoço”. Cunha, que já presidiu a Câmara dos Deputados e a importante Comissão de Constituição e Justiça, descarta qualquer comparação do processo em que ele é réu com o recente escândalo que envolve o senador Demóstenes Torres e o eclético Carlinhos Cachoeira. A diferença fundamental entre a acusação contra petistas e as demais, diz o deputado, é que no seu partido ninguém é acusado de utilizar dinheiro público para enriquecimento pessoal, mas para pagar despesas de campanha.
O erro do PT, partido que Cunha ajudou a fundar em 1981 na cidade de Osasco (SP), em sua visão, já foi admitido pela legenda e diz respeito ao uso de recursos não contabilizados no financiamento de campanha, o chamado “caixa dois”. Já as acusações de compra de apoio político na base aliada para aprovação de projetos do governo, diz ele, não têm nenhuma comprovação. “Como eu poderia participar de um esquema para votar com o governo se eu era presidente da Câmara e nem votava?”, questiona. O deputado é categórico em afirmar que não houve mensalão.
O caso de Demóstenes é emblemático para o deputado, uma vez que o senador é conhecido por interpretar o papel de guardião da ética, apontando o dedo a cada deslize do governo. O perfil é o mesmo que o PT mostrava quando estava na oposição ao governo. Esse, na opinião do deputado, é outro erro “reconhecido e superado pelo partido”.
No Supremo Tribunal Federal, o deputado é acusado de receber R$ 50 mil reais para favorecer uma empresa de comunicação em licitação da Câmara. Sua explicação é que o dinheiro foi repassado pela direção do PT para pagar pesquisas eleitorais em São Paulo, nas eleições municipais de 2002.
Mas o mesmo clamor popular que faz o político sentir-se julgado antes de apresentar sua defesa, elegeu-o como deputado federal em 2010 e, segundo ele, torna os legisladores reféns da demagogia ao criar e aprovar leis que sabem ser inconstitucionais, mas que levam até o fim da tramitação para agradar seus eleitores.
Tais leis são, depois, enviadas ao Judiciário, que na maioria das vezes as julga inconstitucionais. O motivo disso, na visão de Cunha, é que a Justiça tem a incumbência e a capacidade de fazer análises frias das matérias que julga, enquanto no congresso prevalece “o calor da irracionalidade”. O deputado presidiu a Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania da Câmara em 2011, mas admite que a função de julgar a constitucionalidade das leis propostas nem sempre é seguida com rigor pela comissão.
Apesar de afirmar ser favorável à Lei da Ficha Limpa (e ter defendido sua aprovação na Câmara), Cunha diz que a lei comete um erro que será revelado pela história ao impedir que pessoas condenadas em segunda instância se candidatem. O trânsito em julgado seria a única opção válida, uma vez que não existe a possibilidade de ressarcir o impedimento à eleição.
Eleito pela primeira vez como deputado federal em 1994, o petista deverá concorrer à prefeitura de Osasco nas eleições de 2012. Presidiu o PT no estado de São Paulo entre 1995 e 1997
Participaram da entrevista os jornalistas Alessandro Cristo, Márcio Chaer, Marcos de Vasconcellos e Maurício Cardoso.
Leia a entrevista.
ConJur — Qual é a diferença de paradigma entre as acusações que o envolvem no caso do mensalão e as que envolvem o senador Demóstenes Torres?
João Paulo Cunha — É o paradigma da lei: do Código Eleitoral para o Código Penal. O erro cometido — e corrigido — pela direção do PT no episódio do mensalão foi, fundamentalmente, um erro político já admitido pelo PT por conta do sistema de financiamento de campanha que nós temos no Brasil. O erro político foi utilizar recursos não contabilizados, ou “caixa dois”, para fazer campanha eleitoral ou preparação de processos eleitorais. A diferença entre este caso e o do Demóstenes ou as crises que invariavelmente envolvem outras pessoas e outros partidos é que, no PT, não houve enriquecimento pessoal. Não há dinheiro público transferido para contas privadas. Não há, entre todos os réus do mensalão, um acusado de apropriação particular de recurso. O único caso, que, por causa disso, está fora do processo, é o caso do Silvio José Pereira, o Silvinho, acusado de ter recebido uma Land Rover de um construtor da Bahia. Em resumo: cometemos infrações de caráter administrativo e eleitoral. No caso Demóstenes/Cachoeira parece que não é a mesma coisa.
ConJur — O senhor é acusado de participar do Mensalão. Um esquema para arrecadar fundos e repassar isso para comprar o apoio de uma base política. Qual é a sua explicação?
João Paulo Cunha — Isso não faz sentido. Como eu poderia participar de um esquema para votar com o governo se eu era presidente da Câmara e não votava? Outra coisa é que seria ridículo se eu tivesse que receber dinheiro do Lula para votar nele. Em relação aos partidos da base, não há nenhum corte linear nas votações havidas entre 2003 e 2004, quando disseram que havia o mensalão. Nas grandes matérias votadas, nós tivemos apoio majoritário no PSDB e no Democratas, que era PFL. Por que precisaria pagar? Os partidos votaram porque era matéria de conteúdo, de interesse de Estado, como Reforma da Previdência e Reforma Tributária. Por que o processo só envolve líderes e presidentes dos partidos PL, PT, PTB? Porque era um acordo partidário. Não tinha nada a ver com votação, não há nenhuma disparidade nos votos dos deputados dos respectivos partidos. Pode consultar os anais da Câmara. Para valer a tese do “mensalão” o comportamento do voto teria que ter mudado naquele período.
ConJur — Não existiu mensalão?
João Paulo Cunha — Claro que não. Se as pessoas prestassem atenção nas contradições, entenderiam. A jornalista Eliane Cantanhêde aponta, no livro que escreveu sobre a vida do ex-vice-presidente José Alencar, um acordo feito entre PT e PL como uma coisa altiva de Alencar. Ela conta que, em um apartamento em Brasília, o PT combinou que ia passar um valor para o PL, e o José Alencar estava em outra sala com o Lula. No livro é apresentado como algo positivo, um acordo. No processo do mensalão, no entanto, isso serve como argumento para condenar os envolvidos.
Veja: o procurador, ao fazer a denúncia, separou o meu caso — que não tem nada a ver com o mensalão. Ele sustenta a denúncia baseado em um contrato feito entre a Câmara dos Deputados e a agência de publicidade.
Quando eu tomei posse, em 2003, já estava em vigência um contrato com a agência. Logo, no primeiro ano, foi utilizada a agência que o ex-presidente da Câmara Aécio Neves tinha contratado. Para 2004, foi aberta uma nova licitação, autorizada pelo primeiro secretário da mesa. Era um contrato de R$ 10 milhões, em que R$ 7 milhões foram gastos só com veiculação.
A Globo recebeu R$ 2 milhões, a Veja ficou com outra parte, assim como a Folha de S.Paulo, o Correio Braziliense, o Estado de S. Paulo, a IstoÉ, a Época, e outros veículos, pois compramos espaço para publicidade em que tentamos dar um tom universal para divulgar na imprensa tradicional as matérias que votamos na Câmara.
O Ministério Público pegou a análise provisória desse contrato, feita pelo Tribunal de Contas em agosto de 2005, e sustentou que havia algumas irregularidades na licitação e na execução do contrato.
Essas alegadas irregularidades foram usadas na denúncia para suscitar três crimes: peculato, corrupção passiva e lavagem de dinheiro. Veja bem: uma suposição feita em cima de um relatório provisório. O relatório definitivo saiu e não aponta nenhuma irregularidade. Ora, se a base da denúncia deixou de existir, porque o TCU superou a suspeita, do que estamos tratando então?
ConJur — O senhor disse que não existiu o mensalão. O que existiu?
João Paulo Cunha — Foi um financiamento irregular de campanha do PT e dos aliados. Funcionou com recursos não contabilizados, não declarados, para o PT e para os partidos aliados. Não tem nenhuma prova do mensalão [como esquema de compra de apoio no Congresso]. Ninguém aponta onde entrou o dinheiro e onde ele influenciou em alguma votação. Isso não foi mostrado. Sobre a premissa fundamental da tipificação dos crimes, que é onde está a fragilidade jurídica do caso, ninguém quer falar. Fora dos autos, fomos impedidos de exercer nosso direito de defesa. Acusados e condenados por um vagalhão emocional em que a vida real ficou em segundo plano.
ConJur — Impedidos por quem?
João Paulo Cunha — Por parte da imprensa. No episódio do empréstimo do Banco Rural, o [José] Genoíno e o Delúbio [Soares] diziam que pegaram dinheiro emprestado do banco e que o banco estava acionando o PT para pagar. O PT pagou mês a mês e, quando quitou a dívida, disseram que o partido estava querendo enganar a Justiça, o que não é verdade. É como diz o advogado Mariz de Oliveira: “A mídia não se limita a informar: acusa. Não admite defesa: condena. Não quer processo: pune. E o faz com provas, sem provas ou contra as provas”.
ConJur — E o saque de R$ 50 mil que foi feito pela sua mulher? Não foi recebimento de verbas ilícitas?
João Paulo Cunha — Absolutamente. O procurador sustenta que, para dar o contrato à empresa de publicidade, eu teria recebido R$ 50 mil. Mas onde já se viu mandar a própria mulher para sacar um recurso irregular sabendo que ela vai apresentar RG e tirar Xerox dos próprios documentos? Esses R$ 50 mil foram disponibilizados pela executiva nacional do PT para quatro pesquisas na região Oeste de São Paulo, que é uma coisa muito natural em época de eleição. O diretório nacional mandou o dinheiro para pagar as pesquisas. Eu apresentei o recibo desse material e a tesouraria confirmou que mandou esse recurso. Que crime pode haver nisso? Eu era da executiva nacional até 2002.
ConJur — No processo do mensalão, as acusações são individuais, e isso faz parecer que, para se defender, tenha ido cada um para um lado. Ou seja, o grupo se desarticulou. Isso aconteceu?
João Paulo Cunha — O processo criminal traz imputações individuais. Então, cada réu responde por determinadas acusações. A defesa pessoal é exigência do processo. Há também um arcabouço político que envolve o episódio do mensalão, que é uma defesa coletiva. Eu e todos os réus insistimos que não tem dinheiro público envolvido. Nesse processo, até a minha esposa teve o sigilo fiscal quebrado, montaram um link de TV na porta da casa da minha mãe, reviraram o meu sigilo telefônico, porque diziam que eu tinha relação estreita com o Marcos Valério.
ConJur — O senhor contratou a IFT e a empresa do publicitário Marcos Valério para a sua campanha?
João Paulo Cunha — O PT contratou e pagou a DNA para fazer a minha campanha para presidente da Câmara. A IFT, que se chama Ideias, Fatos e Textos, do jornalista Luís Costa Pinto, foi subcontratada em 2003 para prestar consultoria de comunicação da Câmara, pelo valor de R$ 20 mil por mês. O Luís Costa Pinto é um jornalista conceituado em Brasília e foi chefe de redação de várias publicações. Era preciso ter alguém que ajudasse a fazer a ponte entre o trabalho da Câmara dos Deputados e a imprensa e ele foi escolhido em uma licitação da agência de publicidade que prestava serviços à Câmara. Por causa dessa contratação, eu sou acusado de peculato, mas está provado que ele trabalhava na Câmara dos Deputados. A própria imprensa é testemunha do trabalho dele. É até ridículo falar que ele recebia e desviava o serviço para mim.
ConJur — Disso, somos testemunhas. Falamos diversas vezes com ele na Câmara. O acusacionismo tem alavancado carreiras. No entanto, parece que esse modelo vem perdendo força. Muitos daqueles que apareceram como celebridades fazendo acusações têm sido pegos atuando fora da lei. Esse é o destino de quem segue o padrão “justiceiro”?
João Paulo Cunha — O ex-ministro do STF, Sepúlveda Pertence, certa vez, citou um jurista italiano chamado [Francesco] Canelutti, que dizia: “O dramático do processo penal é que saber se se deve aplicar a pena é preciso o processo. Mas o processo, pelo estigma que acarreta e os constrangimentos que gera já é, em si mesmo, uma pena. Assim, com o processo começa-se por punir aquele de quem se pretende saber se merece ser punido”. Instaurado o processo, o acusado já vira condenado aos olhos da multidão. É quando surgem as aves de rapina.
Esses acusadores brincam com a reputação das outras pessoas como se fossem descartáveis. Gostam de empurrar quem está no contrapé. Disparam acusações contra pessoas e instituições sem nenhuma análise da consequência que isso pode ter. Somente para se vangloriar ou por qualquer outra razão, para conseguir dez minutos de glória em uma entrevista na imprensa.
ConJur — O senhor concorda que o PT cresceu com isso?
João Paulo Cunha — Eu concordo que o PT, em muitos momentos, ajudou a alimentar esse tipo de relação. Mas isso não significa que o PT precisa concordar com isso. Podemos ter errado em uma época, mas não podemos continuar no caminho errado. O problema seria permanecer no caminho errado. Nós [do PT] já corrigimos isso, que foi um erro, causado pela busca exacerbada pelo holofote, pela aparição fácil, da nossa sociedade do espetáculo. Nós vivemos em um mundo de muita aparência.
ConJur — Esse sistema que autoriza o candidato a buscar dinheiro para financiar a sua campanha é que gera essas situações?
João Paulo Cunha — Não são todas as situações, mas nós temos um problema de fato no nosso sistema eleitoral. Fora do Brasil, quando se fala sobre esse sistema, as pessoas de outros países riem, porque é uma coisa singular. Sistema de lista aberta com financiamento privado de campanha é uma coisa única no mundo.
ConJur — Se os parlamentares sabem que esse sistema é fadado a dar problemas como esses, por que não mudá-lo?
João Paulo Cunha — Há quem se oponha por convicção e quem se opõe por conveniência. Essa composição de interesses ou de opiniões impedem que uma mudança prospere. Há uma visão conservadora de que o cidadão precisa votar em um candidato, precisa escolher o seu candidato, o que sustenta a ideia de uma lista aberta. Esse sistema obriga o próprio candidato a captar recursos. Depois, há a demonização da política, pela qual o cidadão não pode permitir que o político seja financiado com a verba do Estado, à bordo da visão de que o mundo da política é uma coisa suja e os políticos desonestos. Mas talvez a maioria esteja apenas acomodada e não vê motivos para mudar.
ConJur — De onde vem a percepção de que o mundo da política é um mundo sujo?
João Paulo Cunha — O advento da Sociedade do Espetáculo, da década de 1980 para cá, e, no caso particular do Brasil, com o fim do represamento das manifestações por parte da ditadura, com todo o glamour dado às notícias negativas, acabou trazendo um olhar mais duro para a ação política. A política é um mundo reduzido, uma vez que você escolhe 513 representantes de 190 milhões de pessoas. Nesse mundo reduzido, passou a ser, para a imprensa, em particular, uma notícia bastante forte qualquer desvio de apenas uma dessas 513 pessoas. Qualquer desvio é uma notícia forte para o convívio da população, que engatinha ainda no sentido de buscar os seus direitos. As notícias são demasiadamente reduzidas quando apontam coisas positivas. A visão média é de que na política não tem nada positivo e não é verdade. Aliás, na história da humanidade não há saída que não seja pela política. Eu acho que uma parte da mídia faz uma edição das crises, ela edita as crises.
ConJur — Isso que a imprensa faz não é refletir a expectativa da população?
João Paulo Cunha — Nem sempre. Mas ainda que fosse, se formos seguir o senso médio da população, ficaremos impedidos de apresentar ideias e trabalhar para que essas ideias tornem-se majoritárias na sociedade. Se você perguntar, a maioria da população é a favor da pena de morte. Só por isso eu teria que concordar? Claro que não. A imprensa, por mais interesse comercial que tenha, o papel da informação não é editar e trabalhar pelo senso comum, é informar. Agir, deliberadamente, com o propósito de interferir na política do lado de um partido ou de outro não é defensável. A menos que assuma publicamente sua preferência partidária.
ConJur — Mas os senhor não acha que o problema é o sistema e não a mídia?
João Paulo Cunha — Quase sempre, a ponta econômica envolvida [em um escândalo] tem uma certa relação com o tipo de financiamento de campanha que se estabelece. Em alguns casos, chega até a ser orgânico, como, por exemplo, o suplente de um senador que praticamente financia a campanha e adquire a primeira vaga de suplente. Isso acontece em diferentes momentos. Há, de fato, um problema em nosso sistema eleitoral e partidário em relação ao financiamento de campanha. Hoje é o Demóstenes, amanhã deve ter outro e depois vai ter outro. Em outros lugares do mundo tem casos também, mas é mais raro. Na década de 1990, o Helmut Kohl, que foi chanceler da Alemanha e responsável pela reunificação da Alemanha, foi afastado por ter sido acusado de uso indevido de US$ 3 milhões para financiamento de campanha. Como consequência, até os bens pessoais dele foram penhorados para pagamento dessa dívida. É muito raro acontecer isso naquele tipo de sistema, porque o parlamentar na Alemanha não se envolve com finanças de campanha, o deputado e senador alemão não mexe com dinheiro. O sujeito pode ser eleito por conta da relação que ele tem, por exemplo, com os produtores da indústria química, mas, para a disputa eleitoral, o financiamento é público. Ou seja, o problema mais sério é estrutural, mas é evidente que a mídia às vezes age como torcida organizada de acordo com seus interesses.
ConJur — Pelo que o senhor falou, a manutenção desse sistema parece ser ruim para o político, para a população e para o sistema político brasileiro como um todo. Para quem é interessante a manutenção dele?
João Paulo Cunha — Complementanfdo o raciocínio: deve ter uma parte da classe política que se contenta e se beneficia com esse sistema. Acho também que tem um setor da economia que não se interessa pela mudança, até porque está mais ou menos assentado sobre essas bases, assim como uma parte da mídia, que prefere esse sistema por interesse legítimo do ponto de vista doutrinário ou por um sentimento de que esse sistema é um manancial de crise e de chamadas de primeira página.
ConJur — Até onde o senso comum alcança instituições como o Ministério Público e o Judiciário?
João Paulo Cunha — Esse senso comum começa a esbarrar no Judiciário que, pela sua natureza, exige um ambiente mais frio para a análise do que julga. A base de decisão do juiz são as leis e a sua própria consciência. É claro que ele vive e interage no mundo, mas temos de resguardar o Judiciário para que as decisões não sejam contaminadas pelas circunstâncias. A história da humanidade mostra um número enorme de injustiças cometidas quando os julgadores cedem ao clamor público. O Judiciário não pode correr o risco de deixar seus julgadores serem contaminados pelos gritos das ruas. O Ministério Público tem evoluído, mas ainda há quem ceda ao jogo fácil da mídia. O Legislativo é mais aberto a isso, mas isso faz parte da sua vocação e do seu papel. É até legítimo que tenha o calor das ruas, porque os legisladores são representantes do povo. O Executivo também.
ConJur — Qual é o maior defeito da política: a corrupção ou a incompetência?
João Paulo Cunha — Os dois problemas são reais. Evidente que a corrupção é uma chaga que precisa ser combatida e precisa ser extirpada do nosso sistema. É um combate permanente. A incompetência gera outro tipo de corrupção, porque a incompetência paralisa uma obra que, por exemplo, terá seu valor reajustado, o que, no fundo, chega à mesma posição. Os dois problemas são graves e precisam ser combatidos no serviço público.
ConJur — Está havendo um superdimensionamento da corrupção? Uma overdose de falso moralismo?
João Paulo Cunha — Às vezes, mais transparência confunde-se com mais corrupção. Mas é certo que nós vivemos um momento conservador na história do mundo. O Brasil reflete esse momento também. Os alunos da USP, por exemplo, ficaram com uma imagem ruim perante a sociedade como fumadores de maconha que queriam o terreno da universidade livre para se drogar. Lógico que não foi isso. A imprensa transformou o episódio de um aluno que se recusou a ser revistado em uma prova de que a USP é um antro de maconheiros e contrários ao policiamento. A invasão da reitoria não era nem só sobre a maconha e nem só sobre o policiamento, tinha a ver com verba para a USP e com um novo modelo de administração. Era uma pauta de reivindicações, mas ficou reduzida à questão da maconha.
ConJur — Como o senhor, réu do mensalão, é afetado pelo grande acesso à informação e o poder de mobilização da internet?
João Paulo Cunha — Eu sofro muito desde o advento do chamado mensalão, porque não há nada mais duro para o homem ser acusado por aquilo que ele não deve. E os amigos e os familiares também são afetados porque eles sabem que há uma injustiça. Mas eu não fico parado sofrendo, eu tenho que enfrentar, pois sei da minha inocência. Eu enfrento via rede, primeiro mostrando que eu faço, permanentemente, no meu site, no Facebook e no Twitter. As pessoas veem que eu não fico parado. Às vezes eu passo horas e horas respondendo de próprio punho questionamentos que eu vejo que são sinceros.
ConJur — O senhor diz que a imprensa dá pulso à inflação acusatória de uma população desinformada. O candidato, para se eleger, não faz a mesma coisa? E, ainda, uma vez eleito, ele corteja a população desinformada aprovando leis que, quando chegam ao Supremo Tribunal Federal, são consideradas sistematicamente inconstitucionais. Um levantamento nosso de quase dez anos mostra que das leis que foram analisadas pelo Supremo Tribunal Federal, 83% delas são consideradas inconstitucionais.
João Paulo Cunha — São leis das três esferas: municipal, estadual e federal. O Legislativo no Brasil é sensível ao que acontece na sociedade. Há uma necessidade de considerar que vivemos um momento conservador e deseducador. A nossa Constituição é de 1988, tem 339 artigos e, em 24 anos, já tem 70 emendas. A Constituição americana tem sete artigos, cerca de 230 anos e só 27 emendas. Nós temos mais de 15 mil projetos de lei e, aproximadamente, 1.500 propostas de emenda à Constituição tramitando. O legislativo não foi sempre assim. Agora há uma cobrança demasiada para que o deputado apresente projeto de lei. Qualquer acidente que aconteça no Brasil, por uma coisa singular, vira três ou quatro projetos de lei no dia seguinte. Há uma ideia de que todos os problemas do Brasil podem ser resolvidos através da lei, mas não é. Alguém já disse uma ocasião que o problema não é só ter lei boa, o problema é ter a execução correta da lei. Ulysses Guimarães passou vários e vários anos na Câmara e apresentou poucos projetos de lei.
ConJur — Quando o Judiciário decide sobre temas caros ao legislador, como a união civil entre homossexuais, rouba bandeiras de candidatos ao Legislativo?
João Paulo Cunha — O Judiciário está certo ao tomar algumas posições que o Legislativo não tomou. Porque, se ele é provocado, tem que tomar posição e, às vezes, a posição do Judiciário é mais importante, porque ele está mais imune à pressão que está na rua. A Câmara não tomou posicionamento para permitir o casamento de pessoas do mesmo sexo porque a pressão conservadora sobre os deputados os impediu de tomarem essa decisão. A decisão do Judiciário é fria e reflete a Constituição.
ConJur — Não seria papel do legislador colocar isso em votação?
João Paulo Cunha — Nesse momento conservador, retrógrado, que nós estamos vivendo, a opção do legislador, às vezes, é não decidir para não piorar a situação.
ConJur — Então o Judiciário pode representar melhor o povo que o Legislativo? Porque, para chegar ao Legislativo você precisa estar apoiado em uma ONG, uma associação ou um Partido. É preciso convencer uma massa de pessoas. No Judiciário, qualquer um que ajuiza uma ação pode ter um direito reconhecido.
João Paulo Cunha — Não concordo, porque quem escuta mais o cidadão são o Legislativo e o Executivo. O Judiciário não deve ser analisado só sob esse ponto de vista, porque o acesso ao Judiciário era uma coisa muito elitizada e se popularizou de 20 anos para cá. O conceito de busca no Judiciário pelos seus direitos é muito recente para a maioria do povo. O Judiciário deve continuar sendo provocado e isso não o leva à condição de representante do povo, porque ele não pode fazer a lei ou executar uma determinada demanda do povo. Isso continua sendo papel do Executivo ou do Legislativo.
ConJur — O Tribunal Superior Eleitoral, na regulamentação da lei eleitoral, às vezes impõe regras que passam a valer “no meio do jogo”. Como o senhor vê isso?
João Paulo Cunha — Está errado. O Tribunal Eleitoral não pode tomar essas medidas, porque lei eleitoral tem um preceito constitucional que tem que ser aprovada um ano antes da eleição. Não pode interferir na disputa eleitoral, até para evitar casuismos. As normas que o Tribunal tem que expedir em véspera de eleição são normas para organizar a eleição, não para interferir na disputa.
ConJur — O senhor é favorável à lei da Ficha Limpa?
João Paulo Cunha — Não vou me posicionar contrário à lei da Ficha Limpa, mas a forma encontrada é um erro que a história vai mostrar. Se um homem que quer ser candidato tem uma condenação na segunda instância e prova que aquela condenação está errada na terceira instância, não há como reparar o dano que ele sofreu por não ter sido candidato. Seria como executar uma pena de morte e depois descobrir a inocência do condenado. Prefiro aquele princípio que diz ser preferível um culpado sem punição a um inocente preso. Não digo que culpados devam ficar impunes, mas acabar com a vida de inocentes com esse pretexto não condiz com o estágio civilizatório que pretendemos.
ConJur — Como se aprovou isso? O Legislativo fez uma lei para atender o clamor popular e jogou para que o Judiciário declarasse descabida?
João Paulo Cunha — Estabeleceu-se que votar contra a lei implicaria advogar em causa própria ou defender a impunidade. Mas é verdade que, pressionado, o Legislativo decidiu mal. Nessas situações, o legislador fica em uma situação delicada, porque não tinha como se colocar contrário à lei. Não há ambiente para reflexão. Mas é fato que o Parlamento cedeu, inclusive eu.
ConJur — A Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania não é o órgão do Legislativo para impedir isso?
João Paulo Cunha — Sim, e ela tenta fazer o máximo possível, mas quando a matéria chega ao plenário, nem sempre prevalece a opinião da CCJ. Prevalece o calor da irracionalidade. Dos 80% de leis que são consideradas inconstitucionais pelo STF, cerca de 20% devem ser de iniciativa do poder executivo.
ConJur — Existem várias reformas sendo analisadas pelo Congresso. Reforma política, tributária, do Código de Processo Civil e do Código Penal, por exemplo. Há chances de essas reformas acontecerem?
João Paulo Cunha — A reforma política eu acho difícil, porque não há um ambiente nem no Congresso e nem fora do Congresso para sustentar a opção por uma reforma na política. É um paradoxo. Mesmo quem critica o sistema, quando você sugere mudar, fica contra a mudança. Gente que diz achar absurda a relação obscura entre políticos e empresários são contra a mudança no sistema que cria essa relação. Há dificuldade em formar maioria no Congresso e na sociedade para sustentar isso. Mas tenho fé que isso vai mudar.
As outras reformas eu acho que nós vamos ter. Apresentaremos um novo arcabouço de mudanças no Código de Processo Civil, que já está em andamento bastante acelerado. O Código do Processo Penal também terá grandes mudanças. Vamos fazer grandes mudanças na lei de licitações que já está muito defasada. Nós tivemos que juntar quase 70 projetos que incidiam sobre a lei de licitações. Já a reforma tributária tem sempre um conflito: o estado quer receber mais do que o município, que quer receber mais do que a União, que quer continuar centralizando os impostos, enquanto o cidadão e o empresário querem pagar menos imposto. Não tem como fechar a conta, mas tem algumas coisas urgentes, como a unificação de ICMS. Eu acho que nesse ano seremos muito prejudicados por causa da atipicidade do ano, é um ano que tem eleição, a Câmara tem uma atividade muito intensa até julho, depois suspende por causa das eleições.
ConJur — Algumas Propostas de Emenda à Constituição também estão tramitando, como a PEC da Bengala, a PEC dos Recursos e a PEC que cria mais TRFs. O senhor tem notícia da tramitação delas?
João Paulo Cunha — Essas PECs são polêmicas. A PEC da Bengala sofre uma pressão muito grande dos juízes de instâncias inferiores para manter os 70 anos na aposentadoria compulsória. É um tema que mais cedo ou mais tarde nós vamos ter que enfrentar, porque a expectativa de vida do brasileiro está aumentando muito, muitos profissionais quando chegam aos 70 anos ainda estão produzindo com um vigor da juventude, principalmente professores.
Sobre a PEC dos Recursos nós vamos ter muito debate ainda. É uma tese que não é assimilada pelo conjunto do mundo jurídico, pois muda a matriz da estrutura do direito do Brasil. Ainda não vejo sinais de votação dela.
Quanto à PEC que cria mais TRFs é preciso levar em conta que não basta criar novos TRFs na Constituição. Tem que ter uma programação combinada com o Judiciário e com o Executivo para você dar sequência a isso, para não parecer demagogia do Legislativo.
Fonte: Consultor Jurídico.