A cena e os artistas que fazem de Belém o polo cultural mais interessante do Brasil hoje
Na imponente construção neoclássica de 134 anos, inspirada no Teatro Scala de Milão, cadeiras tropicais de madeira e palha trançada. No palco, garotos fazem som eletrônico da periferia com roupas que simulam futuristas pinturas indígenas que brilham no escuro. A senhora de anos canta versos que louvam, com divertida conotação sexual, o “tremor” causado na boca (e no corpo todo) pelo jambu — verdura típica da culinária local que causa dormência na língua. Os músicos da orquestra de violoncelistas dançam com seus instrumentos como se estivessem num misto de arrasta-pé e baile de tecnobrega. Guitarras cultivadas por décadas em bordéis fuleiros dialogam com a vanguarda da juventude classe média. Duas musas iluminam o olhar lançado dali sobre o mundo exterior: “Ela é americana/ Da América do Sul” e “Essa ‘lorinha’ americana/ Está querendo me esculachar/ Dizendo que eu sou neguinho/ E na América eu não posso entrar”. No fim, a diva pop pós-moderna comanda o carimbó.
Realizada entre 31 de julho e 4 de agosto no Teatro da Paz, em Belém, a terceira edição do Terruá Pará — espetáculo de quase três horas unindo artistas do estado, entre 20 e 90 anos, de diferentes gêneros — sintetiza um tanto da teia de informações que gera a força da produção cultural paraense hoje. Uma produção cultural que não se limita à música, sua vitrine mais evidente, mostra também nas artes visuais, na moda, no teatro, na literatura e no audiovisual que pode aceitar facilmente definições-clichês como “exuberância amazônica” e “diversidade de floresta tropical”. Justificando, enfim, os olhares atraídos pelo estado recentemente como o polo cultural mais interessante do país.
O terruá (termo criado pelo evento a partir do francês terroir, que indica identidade local) paraense não nasce do acaso. Ele é fruto de uma conjunção de fatores que vão desde a formação histórica da cidade até iniciativas (de Estado ou de “guerrilha”) feitas ao longo da última década que, por um lado, permitiram que surgisse uma geração de público e artistas especialmente criativa e, por outro, deram visibilidade ao que já vinha sendo feito há muito tempo. Avaliando o que acontece na música, Ney Messias, secretário de Comunicação do estado e idealizador do Terruá Pará, defende que na base de tudo está um resgate de um “sotaque perdido”:
— O projeto “Mestres da guitarrada”, que Pio Lobato criou em 2003, é o marco zero. Ninguém falava em guitarrada então, era como se não existisse. Mas, a partir dali, as pessoas do Pará voltaram os olhos novamente para essa bagagem, antes desprezada, e viram que havia valor ali. Não só na guitarrada, mas no carimbó e em outros gêneros locais. O que o Terruá Pará faz quando aparece em 2006 (uma segunda edição foi realizada em 2011) é sistematizar esse movimento, dar um sentido a ele.
‘Sotaque perdido’
Festivais de rock como o Se Rasgum a cada edição se abriam mais para o tal “sotaque perdido”, dando espaço para artistas locais tradicionais, o som da periferia do tecnobrega e a nova geração que aparecia misturando esses elementos. O público acompanhava a transformação.
— Lembro que meus amigos riam do Pinduca, e hoje no Se Rasgum tem roda de pogo para suas músicas — diz o cineasta Vladimir Cunha, diretor do documentário “Brega S/A”. — Essa geração que surge agora já cresceu com essa abertura. E é mais esperta com relação à produção, cresceram vendo o Se Rasgum, viajam, têm referências para saber como fazer as coisas. O resultado é algo como o Mongoloid Festival, produzido por moleques de 20 anos, que vai ter bandas indianas, mexicanas e o bregueiro Cacique Cara de Pau juntos. Totalmente diferente da Belém onde eu cresci, onde as pessoas brigavam por música. Metaleiros com punks, essas coisas.
A efervescência da música paraense e a atenção que ela tem recebido acabam dando frutos para outros terrenos, como as artes visuais. E oferecem oportunidades para que a obra de artistas como Berna Reale, Keyla Sobral (atualmente com a exposição “Meu livro de memórias” no Rio, na Galeria do Ateliê) e Roberta Carvalho rompam os limites do estado.
— Ser de Belém, que outrora gerava um preconceito, hoje é quase pré-requisito para você conseguir mostrar sua arte — brinca Roberta, que desenvolve um trabalho de mapping, projetando imagens em árvores, quase sempre de temas amazônicos. — Nas primeiras vezes em que estive em São Paulo, as pessoas se surpreendiam: “Olha, ela é do Norte e está trabalhando com tecnologia.” Temos uma tradição forte de artes visuais, sobretudo a fotografia paraense, uma escola muito valorizada no mundo.
Editora e fundadora da revista eletrônica de arte e cultura contemporânea “Não-lugar”, Keyla lança uma provocação:
— Há grupos como o Qualquer Coletivo, gente como Orlando Maneschy, uma grande diversidade. Podíamos ter um Terruá Pará de artes visuais.
Berna mira nas artes plásticas, mas vai além quando aponta para a questão-chave para se pensar cultura no Pará: a dependência das políticas públicas e das empresas (como a Vivo, que no projeto Conexão Vivo apoia festivais, shows e gravação de CDs):
— Infelizmente uma cidade como Belém não tem mercado para sustentar a arte — diz.
Mesmo a falta de recursos revela soluções que mostram a força da cultura paraense. O Teatro Cuíra é um exemplo claro: criado em 2006 para ser a casa do grupo homônimo (há 30 anos em atividade), o espaço, que fica numa região de prostituição da cidade, era um casarão centenário com as paredes internas derrubadas para virar estacionamento. A configuração acabou favorecendo o grupo, que montou sua sala, com cadeiras compradas de um cinema fechado e arquibancadas e aparelhos de ar-condicionado doados. Assim, surgiu um palco a mais na cidade para outras companhias e músicos, prêmios e patrocínios para projetos específicos — peças do grupo que quase sempre trazem prostitutas da região no elenco.
— Quando chegamos, a primeira pessoa a meter a cabeça aqui dentro e perguntar “o que vocês vão fazer aí?” foi uma prostituta. Vimos que tínhamos que trazer as pessoas daqui para dentro do grupo. É uma forma de interagir com a cidade, e teatro se faz assim — defende o dramaturgo e diretor Edyr Augusto Proença, insatisfeito com os rumos da política cultural de Belém.
— O Terruá Pará reúne artistas ótimos, mas a realidade da cultura paraense é essa aqui (olha em volta, mostrando as instalações simples do teatro), não é a do festival.
Escritor com vários romances publicados, Proença vê surgir na literatura uma exploração original dos cenários de Belém, longe da folclorização amazônica e mais interessada na complexidade do cenário urbano de uma cidade encravada na floresta:
— Exploro essa linguagem policial, cinematográfica, sempre em histórias passadas em Belém. Jovens escritores como Marcelo Damaso (produtor do Se Rasgum, ele tem o romance “Iracundo” pronto, à procura de editora) e Cacho Ishak conversam comigo nesse sentido, falam a mesma língua.
Desejo de se ‘amostrar’
Ishak vê as mesmas afinidades. A vista panorâmica da varanda de seu apartamento parece reafirmar seu pensamento: prédios altíssimos acusam a especulação imobiliária de um lado, enquanto a periferia pobre se espalha rasteira do outro. Alguns artistas ressaltam a curiosidade e o desejo de se “amostrar” do “cabôco” (uma espécie de caboclo com a especifidade de Belém) como determinantes para o que acontece no Pará. Um traço que conversa com a formação clássica, herança da fase áurea da borracha. O resultado aparece em trabalhos como o erudito-pop da Orquestra de Violoncelistas da Amazônia e cantoras líricas como a jovem Thaina Souza, que, oriunda do tradicional Conservatório Carlos Gomes, acaba de ganhar uma bolsa para estudar em Viena — há cantores líricos paraenses espalhados pela Europa.
O audiovisual acompanha o momento, com nomes como Vladimir Cunha, Jorane Castro, Roger Elarrat, Cássio Tavernard e Priscila Brasil. Filha de família tradicional, com direito a aulas de francês e piano na infância, Priscila chamou a atenção como diretora do clipe de “Xirley”, de Gaby Amarantos, a cantora de origem pobre, “cabôca”, do bairro de Jurunas, que abraçou a tecnologia. O encontro das duas — hoje a primeira é empresária da segunda — traz, de certa forma, as possibilidades oferecidas por essa cultura paraense que agora se mostra para o Brasil. Dos salões do conservatório às aparelhagens, todos estão sob a mesma opressão da umidade e do calor, lembrada a todo tempo pelo brilho do suor nos rostos — como se diz em Belém, todos breados.
* O repórter viajou a convite do Terruá Pará
Fonte: O Globo