MILTON CORRÊA
SAIRÉ DE ALTER DO CHÃO, CADÊ A FESTA DE CURUMINS E CUNHANTÃS?
Texto de autoria do Jornalista Manuel Dutra (Publicado em O Liberal, Belém-PA, 03 de julho de 1977)
“Uerá, Uerá, Yandé çairé
Ocara uaçú rupi
Yané Iara renondé
Yané Iara renondé
Yané Iara Tupana çupé”.
(Com Deus Nosso Senhor adiante; e por Deus, Nosso Senhor, vamos com nosso Sairé brilhante pela rua).
Obs: No título, curumins e cunhantãs significam rapazes e moças
Com essa reza o povo Borari, de Alter do Chão, e dezenas, talvez centenas de outros povos, davam início ao grande carnaval amazônico, quando o Sairé e muitas outras formas de festas duravam uma lua, isto é um mês, ao longo do Rio Amazonas e seus afluentes.
Eis o texto publicado em o Liberal em 1977
“Primitivamente uma festa protagonizada por curumins e cunhantãs, a procissão do Sairé é uma das mais antigas tradições do interior da Amazônia, que pode revelar interessantes aspectos da ação dos jesuítas, nos primórdios da colonização. A ela referem-se dezenas de autores, alguns com pontos de vista divergentes, porém, no contexto, todos os registros de viajantes e outros observadores coincidem. Hoje em dia extinta como ritual religioso, a festa do Sairé está sendo revivida como folclore na vila de Alter do Chão, município de Santarém, seguramente um dos locais onde a manifestação foi mais pujante.
O que seria então o Sairé? Basicamente trata-se de um escudo, em forma de semi-círculo, confeccionado de cipó, a que primitivamente chamava-se também de “Turyua”. Sua composição e decoração multicolorida variam de lugar para lugar, porém a forma básica é encontrada em todos os locais onde foi introduzida a dança característica: claramente uma mistura dos valores culturais indígenas com as exigências do colonizador luso, cristão.
As pessoas mais antigas de Alter do Chão, uma pequena vila de 750 habitantes, às margens do Rio Tapajós, a 30 quilômetros de Santarém, referem-se geralmente ao Sairé como “um escudo para saudar os portugueses”. Outros dizem vagamente tratar-se de um “instrumento usado pelos padres para amansar índio”, enquanto outros preferem usar o termo “agradar” os índios. Na referência de alguns autores, teria sido aquela vila o local de origem do Sairé e de onde a manifestação se teria irradiado para toda a região.
Outros, como o velho Umbelino de Jesus, 86 anos, explicam que o Sairé era um “utensílio da festa da padroeira”. E, recordando trechos de antigas rezas e cantos em língua geral, ele conta como se fazia a festa no seu tempo.
O Sairé era usado preferencialmente na festa da padroeira do lugar, Nossa Senhora da Saúde e na de São José. Naquela época, o padre responsável pela freguesia não morava em Alter do Chão. Os dois santos eram festejados em dias seguidos, três dias para cada um. Na véspera da chegada do padre, a população arrumava tudo para a festa, preparava a igreja, que tinha um “tesoureiro” (que inclusive orientava ao padre) e, com especial esmero preparava e ornamentava o barracão do Sairé, onde deveria sempre haver um local para lautas refeições e beberronias e uma “Sala do Sairé”, espécie de santuário tão respeitado quanto o sacrário dentro da igreja da padroeira.
Havia o “capitão”, que se encarregava da coordenação geral da festa e era quem motivava a população para o acontecimento. Depois de desembarcar do batelão que o trazia de Santarém, o padre dirigia-se para a casa paroquial, onde aguardava as “ordens” dos organizadores da festa.
O DIA DA FESTA
O dia principal de comemorações à padroeira começava com alvorada, que consistia em toques do sino da igreja, ritmados e coordenados com o toque de uma flauta e um tambor. Por volta das oito horas da manhã, os doze mordomos e os empregados da festa (todas as pessoas envolvidas na organização) já haviam se deslocado até as casas do juiz e da juíza para buscá-los solenemente e já formavam uma procissão em frente ao barracão do Sairé. Com escudo à frente, levado por uma velha, de preferência coxa ou que assim se fazia, eles iam ao som da flauta, tamborins e outros instrumentos rústicos até a casa do padre, buscá-lo para dar início às solenidades.
Depois de receber a saudação do Sairé, o padre integrava-se ao grupo que o conduzia ao barracão, entoando cantigas em língua geral, numa espécie de monótono cantochão. O velho Umbelino ainda recorda um desses refrões: “aneuiara Tupana recuirá”, que ele diz significar “padre que representa Deus”. Ao chegar à sala do Sairé, o padre benzia as varinhas enfeitadas e as entregava aos doze mordomos (seis homens e seis mulheres), que serviam respectivamente ao juiz e à igreja.
A partir daí formava-se a grande procissão: um casal de juízes, um casal de procuradores, um capitão, um sargento, dois alferes, os rufadores de caixa, um gaiteiro, os mordomos, todos tendo à frente a “saraipora”, a mulher que levava o Sairé, com gestos rítmicos. Depois de percorrer as ruas do vilarejo, o cortejo chegava à igreja da santa, onde todos entravam com seus trajes e instrumentos, à exceção da saraipora, que deixava o Sairé encostado à parede, do lado de fora do templo como se fora um ato sacrílego aproximá-lo do altar onde logo mais se celebraria a grande missa solene.
Durante o ato litúrgico os juízes tinham lugar destacado em frente ao altar-mor, rodeados de seus mordomos. Ali não havia reza na língua indígena, pois quem presidia o ato era o padre e as orações eram em latim. Finda a cerimônia, todos voltavam solenemente ao barracão, onde o padre recebia as varas dos mordomos e as depositava ao lado do Sairé, já instalado em sua sala adornada. Uma primeira refeição era servida aos juízes e ao padre, e este se retirava para sua casa.
Na lembrança dos mais antigos de Alter do Chão, um dos aspectos que mais chamava a atenção na celebração da padroeira era a participação quase unânime dos habitantes do lugar. Um clima de festa contagiava a todos, tanto aos “empregados” como ao povo de modo geral, com as pessoas bebendo café a valer até o meio-dia, bastando chegar ao barracão onde a bebida era servida.
Às três e meia da tarde acontecia a grande procissão da festa, que terminava com uma comprida ladainha na igreja. E tudo se repetia: buscava-se o juiz e a juíza, o padre. E o cortejo percorria as ruas, tendo à frente o Sairé e, logo a seguir, o andor de Nossa Senhora da Saúde. À noitinha, após a ladainha, era a “secuiara”, ou seja, o banquete da festa.
Nessa ocasião os juízes da festa ofereciam um prato de comida aos juízes escolhidos para o ano seguinte, igualmente acontecendo com os mordomos. Na sala do Sairé, apesar do clima de festa, era proibida a entrada de pessoas de chapéu à cabeça ou portando cigarros. Quem assim o fizesse, poderia ser preso e acorrentado. A liberdade só seria conseguida ao preço de uma garrafa de pinga ou de qualquer bebida da preferência do juiz. E, depois que o padre se retirava, dançava-se no barracão, ao som de músicas de ritmo repetitivo e cuja letra é, via de regra, uma miscelânea de português e língua geral. Na casa dos festeiros podia haver dança até o amanhecer, ao ritmo do lundu, da rasteira, do xote ou mesmo da mazurca.
No último dia era a varrição. No barracão do Sairé festeiros, empregados e o povo comiam e bebiam a valer. Havia ainda a cerimônia de derrubação do mastro, cuja forma parece ter variado de época. Mais recentemente havia o mastro do juiz e o da juíza. Um indivíduo com capacidade de fazer palhaçadas subia no pau e jogava nas pessoas embaixo as frutas amarradas desde o pé até o topo, onde ficava uma garrafa de pinga, a ser avidamente disputada pelo povo. Uma bandeira branca, com a figura do “Divino”, em vermelho, é finalmente lançada do alto do mastro e aquele que a pegar ou aquele em quem ela bater ao cair, será o juiz ou a juíza da próxima festa.
Houve épocas em que foi incluído o que eles chamam de marabaixo no ritual de encerramento, que consistia na formação de blocos animados que percorriam a vila. Cantando “marabaixo”, eles entravam de casa em casa, dançando, comendo e bebendo o que encontrassem nas cozinhas e armários, sem que os donos pudessem reclamar. É comumente aceito que a festa do Sairé sempre terminava com a dança do macucauá, no barracão, da qual todos participavam. Era uma homenagem ao pássaro do mesmo nome, considerado, por eles como o “relógio” da vila, pois ao seu canto, no final da tarde, todos deviam largar o trabalho e voltar para casa. E a dança era uma espécie de despedida. Terminada a festa da padroeira, todo o ritual era recomeçado para a de São João.