O ciúme e a inveja nas profissões jurídicas

Valdimir de Freitas
Valdimir de Freitas

O ciúme e a inveja são sentimentos que acompanham o ser humano do nascimento à morte. No âmbito profissional, como irmãos siameses, andam sempre juntos. Nas profissões jurídicas tais manifestações podem ser até mais fortes, pois vêm acompanhadas de símbolos do poder, como vestes, linguagem própria, placas e edificações.

O ciúme foi retratado milhares de vezes no teatro (v.g., Otelo, de Shakespeare), na literatura (v.g., Dom Casmurro, de Machado de Assis), no cinema (v.g., Ciúme: O Inferno do Amor Possessivo, de Claude Chabrol), na música popular (v.g., Domingo no Parque, de Gilberto Gil) e na ópera (v.g., Carmen, de Bizet).

Na área jurídica os primeiros sintomas de ciúme e inveja revelam-se na universidade. A Faculdade de Direito, na maioria das vezes, está separada das demais. Geralmente no centro da cidade e não no campus, mantém-se equidistante e reage com certo desdém às propostas de interdisciplinaridade com outras áreas. Com razão, as demais faculdades reagem com certo ciúme daquela vaidosa irmã mais velha.

No curso de graduação, o ciúme pode revelar-se entre os alunos em razão da simples postura. Os que se sentam nas primeiras fileiras, aqueles que estudam e tiram as notas mais altas, muitas vezes são hostilizados pelos demais. Basta aquele sucesso acadêmico, as notas exibidas em um quadro de avisos, para que os menos dedicados se sintam agredidos. Em alguns casos tais sentimentos extravasam das pessoas físicas e alcançam as jurídicas. São as enciumadas disputas entre esta e aquela.

No final do curso os alunos estão mais preocupados com o futuro e por isso prestam mais atenção aos colegas. Se um deles tiver um parente importante, certamente será acusado de não ter mérito e valer-se das relações de amizade herdadas. Se o outro é sociável e procura conhecer os membros da cúpula, será taxado de bajulador. Faz parte.

Em minha vida senti, algumas vezes, o ciúme e a inveja rondando meus passos. A primeira vez foi quando passei em um concurso para Delegado de Polícia Federal e fui para Brasília cursar a Academia Nacional de Polícia. Por razões pessoais, desisti e retornei à minha cidade. Soube que diziam que eu havia voltado por ter sido reprovado no psicotécnico…

Nos cursos de pós-graduação stricto sensu (mestrado e doutorado), o ciúme pode surgir entre os professores. Todos são conhecidos, respeitados, trazem consigo títulos importantes e são autores de livros. Todavia, uns podem ser mais queridos dos alunos, membros de comissões importantes no governo estadual ou municipal, cogitados para uma vaga no Tribunal de Justiça e assim por diante. O ciúme e a inveja aí podem instalar-se e farpas serão trocadas sob os mais diversos pretextos.

Vejamos as carreiras públicas. Os que, por força de disciplina e renúncias, conseguem aprovação em um concurso público disputado, perceberão manifestações de ciúme e inveja entre os seus colegas de turma, inclusive os mais próximos. Aquela companheira de estudos que ainda não conseguiu acertar o caminho profissional, poderá simplesmente sumir. Não retornando mensagens ou telefonemas, está a comunicar implicitamente que sente ciúme da antiga amiga.

Nesta área as manifestações são diversas. O jovem, legitimamente orgulhoso por ter sido aprovado em um rigoroso concurso para Delegado de Polícia, poderá ouvir do amigo de infância: “Então, agora você é dedo-duro…” Calma. Compreenda, ele está enciumado. Não se ponha a discutir, será inútil.

No âmbito das carreiras dos servidores não é diferente. A jovem analista judiciária da Justiça Federal, ao empenhar-se para dar de si o máximo nas suas atividades, poderá perceber que a chefia nega-lhe acesso ao Juiz Federal. Sua inexperiência pode levá-la a crises de choro ou a roer as unhas. Compreenda, ele o superior hierárquico está com medo de perder o lugar. Nada de pedir remoção da Vara. Siga do mesmo jeito, dedique-se da mesma forma, pois quem é bom sempre aparece. Mais cedo ou mais tarde o mérito será reconhecido.

Dentro do Ministério Público ou da magistratura passa-se o mesmo. O jovem promotor dedica-se alucinadamente ao combate aos inimigos do meio ambiente e, por isso mesmo, chega às redes sociais, jornais ou TV em rede nacional. O juiz federal de uma vara de crimes contra a ordem econômica alcança a fama em razão de suas decisões. É convidado para palestras, jovens universitárias querem tirar foto ao seu lado, em autêntica “tietagem jurídica”. Ambos pagarão um preço alto nas suas instituições. Ao contrário do que muitos pensam, isto poderá prejudicá-los na carreira. Atrás de argumentos técnicos estarão o ciúme e a inveja a motivar as ações que os prejudicam.

À vezes o ciúme vem de onde menos se espera. Um desembargador, do alto de seu cargo de direção (corregedor ou até presidente) pode ter ciúme de um jovem juiz substituto. O sentimento negativo pode ser até inconsciente e motivado pela simples juventude daquele que está a iniciar a carreira. É a vida.

Dos meus tempos de promotor, vem-me à lembrança caso ocorrido em uma comarca pequena, de vara única. O juiz substituto era simpático, bem apessoado, querido por todos, principalmente pelas advogadas e funcionárias. Todavia, era sistematicamente perseguido pelo juiz de Direito da comarca, um cinquentão sem dotes físicos ou intelectuais, que lhe destinava os piores casos e a mínima estrutura de trabalho. Um dia, o jovem magistrado desabafou comigo, dizendo “eu nunca fiz nada contra ele e sou perseguido”. Respondi: “não precisa fazer nada, ele tem ciúmes de sua juventude e popularidade”.

Nos escritórios de advocacia as reações são semelhantes. Uma jovem advogada, caprichando no serviço e procurando marcar seu espaço de atuação, poderá perceber que não é chamada para as reuniões, é esquecida na hora do almoço ou que não foi levado ao conhecimento do dono que é dela aquela petição que conseguiu uma liminar em importante Mandado de Segurança. É simples, os escritórios possuem carreira, ou pelo menos posições privilegiadas, que importam em melhor remuneração. Alguém receia seu sucesso. O melhor a fazer é não passar recibo e ir tentando, aos poucos, quebrar as barreiras. Uma boa técnica é elogiar publicamente o trabalho de quem a boicota. O veneno em pequenas doses, às vezes cura a doença.

Em família o cuidado é maior. As relações, muitas vezes, são para a vida toda. E como são muitos os profissionais do Direito, é normal que existam situações diferentes. Assim, os que ganham mais não devem nunca contar em alta voz, no almoço de domingo na casa da sogra, que receberam milhares de reais de atrasados, pagos por decisão administrativa. O cunhado, Delegado de Polícia, que aguarda ainda o desfecho de uma ação judicial e posterior precatório, não ficará só com ciúme, ficará furioso. A briga certamente alcançará as esposas. Não será novidade o fim das relações por uma mescla de ciúme, inveja e revolta.

Sintetizando, ciúme e inveja são sentimentos negativos que estão presentes em nossas profissões jurídicas. Um procurador do estado que, por ser criativo, propõe mudanças na burocrática administração, poderá ser acusado de querer aparecer. Um defensor público que inova no atendimento à população carente, poderá ter sua ideia copiada sem que se mencione seu nome. Um Oficial de Justiça, que por força de seu trabalho não tem horário rígido e disto se beneficia sem prejuízo para as suas funções, poderá ser invejado pelos cartorários, cuja liberdade é menor.

Em suma, não se podem afastar estes sentimentos de nossas vidas. O que se tem a fazer é minimizá-los quando somos vítimas ou limitá-los quando somos autores. E no mais, como disse Heródoto, “é melhor ser invejado que lastimado”.

Vladimir Passos de Freitas é desembargador federal aposentado do TRF 4ª Região, onde foi presidente, e professor doutor de Direito Ambiental da PUC-PR.

Fonte: Revista Consultor Jurídico

 

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