Carf poderá ser obrigado a aplicar multas em duplicidade
Em dezembro de 2012, escrevemos artigo com o título “Aplicação concomitante de multa isolada e multa de ofício e a proposta de súmula nº 17 do CARF”, no qual apontávamos equívocos na redação da então proposta de súmula 17:
“Até 21 de janeiro de 2007, a multa prevista no art. 44, inciso I, da Lei nº 9.430/96, não se aplica concomitantemente sobre IRPJ ou CSLL devidos no ajuste anual e sobre as correspondentes estimativas não recolhidas, apurados sobre a mesma base de cálculo constatada em procedimento fiscal”.
Como visto, o enunciado, por vias oblíquas, tentava restringir o entendimento pacífico do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais no sentido da impossibilidade de cumulação da multa de ofício e multa isolada por falta de recolhimento das estimativas, independentemente do período. Não importando se a aplicação da multa ocorreu antes ou após a vigência da Medida Provisória 351/2007.
No entanto, felizmente, o Pleno da Câmara Superior de Recursos Fiscais, no exercício do seu relevante papel de uniformizar a jurisprudência administrativa, rejeitou o mencionado enunciado, mantendo-se o entendimento então sedimentado, o qual, inclusive, foi aplicado em todo o ano de 2013, conforme pode ser observado no acórdão 9101-001657, julgado pela 1ª Turma da Câmara Superior de Recursos Fiscais em 15 de maio de 2013.
Em 25 de novembro de 2013, foi publicada a Portaria CARF 18/2013, convocando a reunião do Pleno e das Turmas da Câmara Superior de Recursos Fiscais, a ser realizada no dia 9 de dezembro de 2013, para votação das novas proposições de súmulas. Tal convocação possui respaldo no artigo 72 do RICarf[1] que permite a aprovação de súmulas se dois terços de todos os conselheiros aprovarem a proposição submetida à votação.
Foram apresentadas 19 proposições de súmulas relativas a temas variados, de grande relevância como correção monetária no ressarcimento de PIS e da Cofins não cumulativos entre outros, mas que grande parte deles ainda não contém a necessária pacificação que é um dos requisitos essenciais para que seja editada súmula.
Entretanto, curiosamente, foi trazida para votação a proposição 9, que diz respeito à aplicação concomitante da multa isolada por não recolhimento de IRPJ e CSLL sob a forma de estimativas e a multa de ofício pelo não recolhimento do IRPJ e CSLL.
A publicação de tal proposta causou uma verdadeira sensação de Déjà vu, como se tivéssemos retornado para dezembro de 2012 para discutir a mesma matéria e apontar os mesmos equívocos ocorridos anteriormente, especialmente porque nada mudou em relação ao entendimento da jurisprudência de lá até aqui. Estaríamos diante de um Déjà vu tributário?
Pois bem, a proposta de enunciado de súmula, apesar de não contemplar redação idêntica, possui o mesmo objetivo da sua antecessora, qual seja: limitar temporalmente a vedação de aplicação concomitante da multa isolada e multa de ofício. Vejamos a redação:
“Até a vigência da Medida Provisória 351, de 2007, incabível a aplicação concomitante de multa isolada por falta de recolhimento de estimativas e de ofício pela falta de pagamento de tributo apurado no ajuste anual, devendo subsistir a multa de ofício.”
Para cumprimento do requisito estabelecido no parágrafo 1º do artigo 73 do RICarf[2], a proposição foi instruída com os precedentes relacionados na tabela a seguir, os quais veiculam uma ratio decidendi acerca da matéria a ser sumulada. Vejamos:
Acórdão |
Data julgamento |
Ementa |
9101-001.261 |
22/11/2011 |
Ementa: APLICAÇÃO CONCOMITANTE DE MULTA DE OFICIO E MULTA ISOLADA NA ESTIMATIVA — Incabível a aplicação concomitante de multa isolada por falta de recolhimento de estimativas no curso do período de apuração e de oficio pela falta de pagamento de tributo apurado no balanço. A infração relativa ao não recolhimento da estimativa mensal caracteriza etapa preparatória do ato de reduzir o imposto no final do ano. Pelo critério da consunção, a primeira conduta é meio de execução da segunda. O bem jurídico mais importante é sem dúvida a efetivação da arrecadação tributária, atendida pelo recolhimento do tributo apurado ao fim do ano-calendário, e o bem jurídico de relevância secundária é a antecipação do fluxo de caixa do governo, representada pelo dever de antecipar essa mesma arrecadação. |
9101-001.203 |
17/10/2011 |
Ementa: MULTA ISOLADA. ANOS-CALENDÁRIO DE 1999 e 2000. FALTA DE RECOLHIMENTO POR ESTIMATIVA. CONCOMITÂNCIA COM MULTA DE OFICIO EXIGIDA EM LANÇAMENTO LAVRADO PARA A COBRANÇA DO TRIBUTO. Incabível a aplicação concomitante da multa por falta de recolhimento de tributo sobre bases estimadas e da multa de oficio exigida no lançamento para cobrança de tributo, visto que ambas penalidades tiveram como base o valor das glosas efetivadas pela Fiscalização. Recurso Especial do Procurador conhecido e não provido. |
9101-001.238 |
21/11/2011 |
MULTA ISOLADA. ANO-CALENDÁRIO DE 2000. FALTA DE RECOLHIMENTO POR ESTIMATIVA. CONCOMITÂNCIA COM MULTA DE OFICIO EXIGIDA EM LANÇAMENTO LAVRADO PARA A COBRANÇA DO TRIBUTO. Incabível a aplicação concomitante da multa por falta de recolhimento de tributo sobre bases estimadas e da multa de oficio exigida no lançamento para cobrança de tributo, visto que ambas penalidades tiveram como base o valor da receita omitida apurado em procedimento fiscal. Recurso especial do Procurador negado. |
9101-001.307 |
24/04/2012 |
MULTA ISOLADA APLICAÇÃO CONCOMITANTE COM A MULTA DE OFICIO — Incabível a aplicação concomitante de multa isolada por falta de recolhimento de estimativas no curso do período de apuração e de oficio pela falta de pagamento de tributo apurado no balanço. A infração relativa ao não recolhimento da estimativa mensal caracteriza etapa preparatória do ato de reduzir o imposto no final do ano. Pelo critério da consunção, a primeira conduta é meio de execução da segunda. O bem jurídico mais importante é sem dúvida a efetivação da arrecadação tributária, atendida pelo recolhimento do tributo apurado ao fim do ano-calendário, e o bem jurídico de relevância secundária é a antecipação do fluxo de caixa do governo, representada pelo dever de antecipar essa mesma arrecadação. |
1402-001.217 |
04/10/2012 |
MULTA DE OFICIO ISOLADA POR FALTA DE RECOLHIMENTO DE ESTIMATIVAS MENSAIS CONCOMITANTE COM A MULTA DE OFICIO. INAPLICABILIDADE. É inaplicável a penalidade quando existir concomitância com a multa de oficio sobre o ajuste anual (mesma base). |
1102-00.748 |
09/05/2012 |
LANÇAMENTO DE OFÍCIO. PENALIDADE. MULTA ISOLADA. FALTA DE RECOLHIMENTO DE ESTIMATIVAS. Devem ser exoneradas as multas isoladas por falta de recolhimento de estimativas, uma vez que, cumulativamente foram exigidos os tributos com multa de ofício, e a base de cálculo das multas isoladas está inserida na base de cálculo das multas de ofício, sendo descabido, nesse caso, o lançamento concomitante de ambas. |
1803-01.263 |
10/04/2012 |
APLICAÇÃO CONCOMITANTE DE MULTA DE OFÍCIO E MULTA ISOLADA NA ESTIMATIVA Incabível a aplicação concomitante de multa isolada por falta de recolhimento de estimativas no curso do período de apuração e de ofício pela falta de pagamento de tributo apurado no balanço. A infração relativa ao não recolhimento da estimativa mensal caracteriza etapa preparatória do ato de reduzir o imposto no final do ano. Pelo critério da consunção, a primeira conduta é meio de execução da segunda. O bem jurídico mais importante é sem dúvida a efetivação da arrecadação tributária, atendida pelo recolhimento do tributo apurado ao fim do ano-calendário, e o bem jurídico de relevância secundária é a antecipação do fluxo de caixa do governo, representada pelo dever de antecipar essa mesma arrecadação. |
Conforme pode ser observado, os precedentes citados veiculam entendimento uniforme da jurisprudência administrativa no sentido da impossibilidade jurídica de cumulação de multa isolada em virtude de ausência de recolhimento de estimativas e multa de ofício sem fazer, contudo, nenhuma restrição temporal sobre a aplicabilidade deste entendimento.
Ocorre que, novamente, na redação da mencionada proposição, há uma clara intenção de limitar a aplicação do mencionado entendimento para os fatos ocorridos até 21 de janeiro de 2007, o que, repise-se, não guarda consonância com a jurisprudência. Com isto, pretende-se criar uma limitação temporal que não consta nos precedentes que dão respaldo à proposição da súmula.
Registre-se, porém, que tal equívoco na redação, caso seja acolhido, poderá levar a uma alteração no entendimento pacificado na Primeira Turma da Câmara Superior de Recursos Fiscais e não pode dar suporte à aprovação de súmula, uma vez que a súmula é o extrato do entendimento reiterado e pacífico da jurisprudência, o que não configura o caso como acima já ficou demonstrado.
Importa alertar que existe uma tese capitaneada por uma corrente minoritária do Carf que defende a possibilidade de aplicação concomitante da multa isolada por estimativa e multa de ofício, após a edição da Medida Provisória 351/2007, publicada no DOU em 22 de janeiro de 2007, posteriormente convertida na Lei nº 11.488/2007. Para esses, a referida norma permite a aplicação concomitante de multa isolada e de ofício, mesmo após o encerramento do ano-calendário, de modo que o entendimento pela impossibilidade de cumulação deve ficar restrito aos fatos ocorridos até 21 de janeiro de 2007.
Todavia, a referida tese não vem sendo aceita pela 1ª Turma da Câmara Superior de Recursos Fiscais, como por exemplos nos Acórdãos: 9101-01.113[3], julgado em 2 de agosto de 2011 e 9101-00.504, julgado em 26 de janeiro de 2010 e em outros julgados publicados no ano de 2013, como: Acórdão 9101-001693, julgado em 16/07/2013.
Com isso, a redação da proposição, ao restringir a impossibilidade de cumulação a fatos anteriores a 22 de janeiro de 2007, caminha no sentido oposto a jurisprudência da própria Câmara Superior de Recursos Fiscais.
Ademais, caso a proposição venha a ser aprovada, há de se reconhecer a sua invalidade, haja vista a existência de vício no procedimento de aprovação em virtude do descumprimento do comando estabelecido no parágrafo 1º do artigo 73 do RICarf. Vale repetir, os precedentes que instruem uma proposição de súmula devem corroborar com o entendimento proposto e não ir em sentido diametralmente oposto, como no caso da proposição aqui apontada, motivo pelo qual se deve reconhecer o vício no procedimento de aprovação.
Diante desse cenário de verdadeiro Déjà vu tributário, cabe-nos, novamente, o alerta para a necessidade de alteração da redação da proposição 9, para que ela retrate a jurisprudência que não coloca limite temporal ou que ela não seja aprovada nos moldes propostos na citada Portaria Carf 27/2012.
[1] Art. 72. As decisões reiteradas e uniformes do Carf serão consubstanciadas em súmula de observância obrigatória pelos membros do CARF. Parágrafo 1° – Compete ao Pleno da CSRF a edição de enunciado de súmula quando se tratar de matéria que, por sua natureza, for submetida a duas ou mais turmas da CSRF. Parágrafop 2° – As turmas da CSRF poderão aprovar enunciado de súmula que trate de matéria concernente à sua atribuição. Parágrafo 3° – As súmulas serão aprovadas por 2/3 (dois terços) da totalidade dos conselheiros do respectivo colegiado. Parágrafo 4° – As súmulas aprovadas pelos Primeiro, Segundo e Terceiro Conselhos de Contribuintes são de adoção obrigatória pelos membros do CARF.
[2] Art. 73. (…)Parágrafo 1° – A proposta de que trata o caput será dirigida ao Presidente do CARF, indicando o enunciado, devendo ser instruída com pelo menos 5 (cinco) decisões proferidas cada uma em reuniões diversas, em pelo menos 2 (dois) colegiados distintos.
[3] Ementa: APLICAÇÃO CONCOMITANTE DE MULTA DE OFÍCIO E MULTA ISOLADA – MATÉRIA PACIFICADA – ARTIGO 67, § 10º DO RICARF . Incabível a aplicação concomitante de multa isolada por falta de recolhimento de estimativas no curso do período de apuração e de ofício pela falta de pagamento de tributo apurado no balanço. A infração relativa ao não recolhimento da estimativa mensal caracteriza etapa preparatória do ato de reduzir o imposto no final do ano. A primeira conduta é meio de execução da segunda. A aplicação concomitante de multa de ofício e de multa isolada na estimativa implica em penalizar duas vezes o mesmo contribuinte pela imputação de penalidades de mesma natureza, já que ambas estão relacionadas ao descumprimento de obrigação principal que, por sua vez, consubstancia-se no recolhimento de tributo.
Por Mary Elbe Gomes Queiroz e Antonio Carlos F. de Souza Júnior
Mary Elbe Gomes Queiroz é advogada tributarista, pós-doutora em Direito Tributário pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (Portugal) e sócia do Queiroz Advogados Associados.
Antonio Carlos F. de Souza Júnior é advogado, sócio do Queiroz Advogados Associados, professor do curso de pós-graduação do IBET/IPET, mestre em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco.
Fonte: Revista Consultor Jurídico