Ministros e advogados apontam inconsistências em propostas do MPF
O pacote anticorrupção anunciado pelo Ministério Público Federal na sexta-feira (20/3) não caiu bem. Segundo o MPF, o objetivo das dez medidas anunciadas — que serão entregues em anteprojetos de lei ao Congresso — é aprimorar a prevenção e o combate à corrupção e à impunidade. No entanto, para ministros do Supremo Tribunal Federal, advogados e até membros do Ministério Público ouvidos pela revista Consultor Jurídico, algumas propostas são inócuas, além de inconstitucionais.
O ponto que mais chamou atenção é a pretensão de utilizar uma “prova” ilícita no processo penal. “Para dizer o mínimo, a proposta é lastimosa”, classifica o advogado, professor e diretor da Revista Brasileira de Direito Processual Lúcio Delfino. “A aprovação dessa proposta significa a abertura de uma janela para a prática incontrolável de arbitrariedades, em benefício exclusivo do Estado policialesco. Melhor mudar o nome da proposta formulada pelo MPF para ‘pacote anti-devido-processo-legal”, diz. Delfino lembra que a proibição do uso de provas ilícitas é uma cláusula pétrea da Constituição. “Não é mera formalidade, como advogam alguns, mas garantia material assegurada constitucionalmente a todo e qualquer cidadão”, completa.
A questão, inclusive, já foi discutida pelo Supremo Tribunal Federal, como lembram os ministros Marco Aurélio e Gilmar Mendes. “Precisamos nos perguntar o que eles esqueceram na hora de formular essa proposta. E a resposta é clara: a Constituição”, diz Mendes. Já Marco Aurélio aponta que a sugestão de aceitar provas ilícitas é “acreditar em uma Justiça na qual os fins justificariam os meios”.
Ao justificar a proposta, o Ministério Público Federal alega que as provas obtidas por meios ilícitos não podem automaticamente prejudicar todo o processo. “É preciso fazer uma ponderação de interesses e verificar em que medida a eventual irregularidade na produção da prova pode indicar prejuízo à parte. Se não houver algo que evidencie prejuízo à defesa, nada justifica a exclusão dessa prova”, afirmou o subprocurador-geral da República Nicolao Dino Neto, chefe da Câmara de Combate à Corrupção.
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No entanto, a justificativa não é o bastante nem mesmo para membros do Ministério Público. Roberto Livianu (foto), promotor de Justiça e doutor em Direito, lembra que a missão constitucional do MP é garantir a aplicação da Constituição. “É preciso trabalhar com provas 100% lícitas, também porque o uso de qualquer meio de prova questionável gerará um campo de ataque ao MP, o que não é desejável.”
Lenio Streck, professor e advogado, recentemente aposentado do Ministério Público, afirma que a relativização do uso da prova ilícita contamina o conjunto de sugestões enviados pelo MPF. “Isso pegou muito mal. Ainda há juízes em Berlim e penso que ainda há promotores em terrae brasilis que estão preocupados com a cláusula pétrea que a proibição de uso de prova ilícita. Qual é o problema fulcral? A próxima vitima pode ser você. Hoje é bom relativizar a prova para pegar corruptos, lavadores de dinheiro. Amanhã isso será usado para qualquer coisa. Não se transige com garantias fundamentais. Ou eles valem ou não valem”, diz.
O criminalista Pierpaolo Cruz Bottini, ex-secretário da Reforma do Judiciário, corrobora o pensamento de Streck: “Não pode essa questão de fazer uma medição de viabilidade da prova pelos benefícios processuais e não pela pela lei. Isso é muito perigoso e não dá certo em nenhum lugar do mundo. Ou é legal ou não é”. Para Bottini, é muito perigoso admitir que o Estado pratique certas ilegalidades. “A justificativa de você poder admitir provas ilegais quando não causam prejuízo à defesa não está correto, a prova ilegal traz prejuìzo a sociedade, ao Estado Democrático de Direito”.
O advogado José Carlos Cal Garcia Filho aponta que a Constituição e o Código de Processo Penal têm regras muito claras quanto à exclusão da prova ilícita, as quais não comportam ponderação ou flexibilização. “A proposta evidencia claro utilitarismo ou pragmatismo jurídico. Contraditoriamente, partindo da premissa da ilicitude das provas, o MP quer combater a impunidade de infrações penais com a declarada impunidade de violações a regras constitucionais e legais”, diz. “Certamente, o MP não faria esse tipo de proposta se tivesse mais cuidado com o controle das investigações. O número de processos anulados nos tribunais superiores é consequência da ausência de custódia da legalidade na produção da prova”, critica.
Prisão preventiva
Um outro item proposto pelo Ministério Público Federal prevê a prisão preventiva para assegurar a devolução do dinheiro desviado. Para o criminalista Marcelo Leonardo a medida é um contra-senso. “É absurdo propor no país cuja constituição proíbe a prisão por dívida, uma proposta de prisão preventiva a obrigar pessoas a supostamente devolver dinheiro”, afirma. Para ele, o que o MPF propõe é o que ele já está fazendo na operação “lava jato”, na qual o advogado defende o vice-presidente da empreiteira Mendes Junior, Sérgio Cunha Mendes, que está preso preventivamente.
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Pierpaolo Bottini (foto) observa que, pela lei atual, nos casos em que há indícios concretos de que está havendo dilapidação de patrimônio o juiz já pode decretar prisão preventiva. “O que querem na verdade fazer é uma presunção de que se você não encontrar os valores supostamente desviados, justificaria a prisão preventiva. Isso fere profundamente qualquer parâmetro de presunção de inocência”, afirma.
Na opinião de Lúcio Delfino, a proposta da prisão preventiva fere a Constituição. “Se ninguém pode ser considerado culpado até o trânsito em julgado, como reza nossa Constituição Federal, como admitir a validade de prisões com fins de evitar dissipação do dinheiro desviado?”, questiona. Para ele, não há devido processo quando o acusado é tratado como se culpado fosse.
Já Roberto Livianu defende a proposta do MPF. Ele aponta que a prisão preventiva é processual e não viola a presunção da inocência. “Todos, inclusive assassinos, têm a inocência presumida até que se encerre o processo. No entanto, se podem impedir o bom andamento do processo ou geram risco à ordem pública, há o instrumento da prisão preventiva”.
No entanto, o advogado e professor Cal Garcia Filho afirma que o MP e o Judiciário já dispõem instrumentos altamente eficazes para prevenir a dissipação do patrimônio do suspeito ou, ainda, recuperar o produto da infração, tais como as medidas cautelares patrimoniais e os acordos de cooperação jurídica internacional. “Utilizar da prisão preventiva para essa finalidade soa como verdadeira extorsão legalizada: coação sobre a corpo do indivíduo a fim de que ele devolva o dinheiro ou ofereça os meios para que se proceda à recuperação”, diz.
Mudanças no sistema recursal
No documento apresentado pelo MPF, o órgão defende ainda mudanças nos recursos dos processos penais. Uma das sugestões é acabar com os Embargos Infringentes, que permitem a rediscussão de decisões colegiadas quando não há consenso entre os julgadores. Na Ação Penal 470, o processo do mensalão, esse recurso permitiu que o Supremo Tribunal Federal recuasse de condenações por formação de quadrilha e lavagem de dinheiro, por exemplo.
Outras medidas são a aplicação imediata de condenações quando for reconhecido abuso no direito de recorrer; o fim dos Embargos de Declaração de Embargos de Declaração; e a criação de um recurso em que o Ministério Público poderia discutir Habeas Corpus dentro do próprio tribunal que concede a ordem, para “uma paridade de armas” quando discordar da liberdade.
A paridade de armas alegadas pelo MPF para justificar as medidas é justamente o argumento utilizado pelos advogados para criticá-las. Segundo o advogado Cal Garcia Filho, a reforma do sistema processual precisa ser sistemática, sem alterar a relação de freios e contrapesos, o necessário equilíbrio de armas entre as partes processuais. “O MP visa, apenas e tão só, diminuir os instrumentos e recursos disponíveis à defesa sem oferecer nada que possa reequilibrar a balança” afirma, apontando que a acusação dispõe de numerosos e diversos instrumentos para o exercício da sua função e seu papel de parte.
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No mesmo sentido Lenio Streck (foto) afirma: “tudo o que é ad hoc pode ser perigoso. Até as pedras sabem que precisamos alterar o sistema recursal. Mas ele não deve mudar apenas para facilitar a vida do Estado e dos organismos encarregados de combate ao crime”. O jurista observa que os recursos são garantias do cidadão, e não o contrário. Em sua opinião, os embargos infringentes em favor do MP até podem ser uma boa medida, desde que acompanhada de uma série de outras medidas. “Não se pode restringir Habeas Corpus e recursos extraordinários. Habeas Corpus é um remédio constitucional. Não vamos inventar a pólvora agora voltando aos tempos do Estado de Exceção. Falta só dizerem que para alguns crimes não caberá Habeas Corpus”, diz.
Para o advogado Fábio Medina Osório, que também já foi membro do Ministério Público, a ideia de fulminar a previsão dos Embargos Infringentes não é boa, “pois trata-se de recurso que dá plenitude aos direitos de defesa. Não se pode restringir recursos contra condenações, pois o crivo do Judiciário deve ser o mais amplo possível”, diz.
Além das críticas às mudanças no sistema recursal, o criminalista Marcelo Leonardo questiona a proposta de ajustar o sistema prescricional para evitar impunidade nos casos em que não há inércia da partes. “Quer se premiar a ineficiência do sistema penal do Estado com a ampliação dos prazos de prescrição para que nem a policia, nem o MP e nem o Judiciário se preocupem em cumprir prazos para encerrar o processo”, diz.
Já aos olhos do promotor Roberto Livianu, as mudanças propostas são salutares. O sistema brasileiro, diz ele, permite a “eternização do processo”. “Penso que medidas que visem alcançar celeridade do processo são importantes e íteis. Embargos Infringentes, por exemplo, não são essenciais para as garantias da ampla defesa. Pode-se abrir mão disso em prol de uma Justiça mais célere”, afirma.
Outras medidas
Umas das propostas do MPF é aumentar a pena para os casos de corrupção e tornar a corrupção de altos valores crime hediondo. Para Marcelo Leonardo, essa sugestão é uma tentativa do parquet de desenterrar velhas propostas que em nada contribuem para a redução do ato. “Se transformar tipo penal em crime hediondo fosse eficiente desde a edição da Lei de Crimes Hediondos, em 1990, deveríamos ter estatísticas apontando a queda naquelas condutas ali tipificadas e não existe nenhuma estatística dessa redução”, diz. Segundo ele, elevar penas também nunca foi forma de reduzir criminalidade. “Nesse sentido se tem até a experiência de estados americanos que preveem a pena de morte enquanto outros não, e não há nenhuma estatística comprovando que onde há pena capital tenha redução criminalidade”, afirma.
Para o advogado Fábio Medina Osório, o que pode fortalecer mecanismos de combate e prevenção à corrupção aparentemente não foi abordado no pacote do MPF. Como exemplo ele cita transformar os contratos administrativos em contratos digitais. “Tal providência ensejaria maior transparência no setor público e poderia reduzir níveis de corrupção e de ineficiência”, diz.
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A ideia de que faltam novas leis também é rebatida pelo ministro Marco Aurélio (foto), que resume seu pensamento sobre os “pacotes anticorrupção” feitos pelo MPF e pelo governo federal: “Já temos um entulho legislativo. Não precisamos de leis, mas de de um banho de ética. Todo mundo tem agora um milagre para chegarmos a novos dias. No campo formal, o Brasil está cheio. Quero saber da realidade”.
Por: Tadeu Rover, repórter da revista Consultor Jurídico.
Fonte: Revista Consultor Jurídico