Julgadores devem se livrar do livre convencimento
Pensem na seguinte situação: Um determinado edital de concurso prevê a realização de teste de aptidão física (TAF) de caráter eliminatório para algumas carreiras de conteúdo estritamente técnico, como perito criminalístico, perito médico legal, perito odonto-legal e perito técnico da Policia Civil do Estado da Bahia. Alguns candidatos são reprovados no TAF e, sentindo-se lesados e baseados em precedente oriundo do Supremo Tribunal Federal[1], impetram mandados de segurança.
Por força do edital, tais atos são de competência de dois Secretários de Estado (Secretários da Administração e de Segurança Pública do Estado da Bahia), de modo que a competência originária para processar e julgar tais mandados de segurança recai sobre o Tribunal de Justiça do Estado da Bahia (TJBA). Diversos mandados de segurança suscitando a inexigibilidade do TAF para estas carreiras são distribuídos, com 11 desembargadores diferentes relatando as diversas ações constitucionais distribuídas.
Ora, estamos diante de 11 magistrados de 2º grau do TJ-BA, ou seja, de 11 desembargadores vinculados a um mesmo Tribunal. Todos eles estão julgando mandados de segurança fundados num mesmo argumento central e num mesmo precedente fixado pelo STF e de publicação bastante recente (ano de 2013). Podemos, portanto, supor que nos depararemos com uma unicidade de entendimentos, correto? Errado. Isto porque, dos 11 desembargadores que enfrentaram os pedidos de antecipação de tutela formulados no âmbito das ações constitucionais com o objeto mencionado, oito deles deferiram tal pleito, enquanto três entenderam pelo indeferimento deste comando liminar[2].
Ou seja, conforme variasse o entendimento do magistrado responsável pela análise de pedido de antecipação de tutela consistente na reinserção de candidatos de um mesmo certame ao concurso do qual foram eliminados, no bojo de mandados de segurança fundados em fatos e fundamentos quase idênticos, este candidato teria (ou não) seu pleito deferido.
Não estou, aqui, discutindo o mérito das decisões ou a validade dos argumentos destes candidatos. Não é este o objeto do presente artigo. Minha estupefação é com este fenômeno, onde pedidos submetidos a um mesmo Tribunal, fundados num mesmo precedente oriundo do STF, com um mesmo quadro fático, são julgados de forma distinta, conforme varie o magistrado responsável pela apreciação destes pedidos.
Seria este o objetivo do legislador de 1973, com o art. 131 do ainda vigente Código de Processo Civil (CPC), do qual decorre aquilo que a doutrina pátria convencionou classificar como “princípio do livre convencimento motivado”? Penso que não. Se eu estiver errado, então penso que, quem estava errado, era o legislador e, agora, os magistrados.
Situações como a retratada nos parágrafos anteriores dizem muito sobre a forma como os nossos magistrados encaram os precedentes e traduzem uma das principais dificuldades dos advogados que atuam num sistema capaz de produzir um cenário como este: como orientar seus clientes sobre os posicionamentos das nossas cortes. Esta dificuldade e preocupação foi muito bem exposta por Luiz Guilherme Marinoni, na sua obra “Precedentes Obrigatórios”, ao enumerar razões (e correlaciona-las com princípios fundamentais) para se seguir os precedentes[3].
Imaginemos como os advogados dos três candidatos referidos no exemplo podem ser vistos por seus clientes, quando estes sabem que, pelo menos outros 11 (onze) candidatos, em situação idêntica àquela que se encontram, tiveram seus pedidos liminares deferidos e estão de volta ao certame.
O jurista paranaense ainda cita interessante julgado do Superior Tribunal de Justiça, onde o então Ministro Humberto Gomes de Barros exprimiu de forma contundente a necessidade dos Tribunais de seguirem a jurisprudência[4]. Na ementa é possível notar uma certa angústia na manifestação do Ministro, algo que supera uma, ainda que importante, preocupação. Vejam que ele chega a usar-se de uma forte hipérbole: “Se nós os integrantes da Corte não observarmos as decisões que ajudamos a formar, estaremos dando sinal, para que os demais órgãos judiciários façam o mesmo. Estou certo de que, em acontecendo isso, perde sentido a existência de nossa Corte. Melhor será extingui-la”.
Vendo a data de publicação do julgado (7 de outubro de 2002), notamos que preocupação com a necessidade (ou não) desta obediência, pelos magistrados, à jurisprudência (ou aos precedentes judiciais, termo bastante em voga atualmente, para o bem ou para o mal), não é um fenômeno recente.
Em certa medida, esta preocupação se refletiu até na nossa legislação, notadamente com as Leis n° 11.417, de 19 de dezembro de 2006 e n° 11.672, de 08 de maior de 2008, que, respectivamente, instituíram as súmulas vinculantes do STF e os recursos repetitivos no STJ.
Contudo, apesar de entender tais leis como evoluções e válidas tentativas de fazer valer o entendimento jurisprudencial emanado das duas altas cortes, penso que os nossos magistrados, sejam eles de 1º ou 2º graus, e ministros, sejam eles de STF ou STJ, em boa parte, continuam enfrentando os processos da forma como enfrentavam antes do advento das citadas leis, ou seja, fundados no “livre convencimento”, com grandes aspas.
Creio que, neste ponto, me filio às preocupações do Dr. Lênio Streck, que, há muito, demonstra em seus textos preocupação com questões como esta. Termos como protagonismo, solipsismo judicial, ponderação e discricionariedade permeiam inúmeros de seus textos[5]. Streck preocupa-se como os magistrados brasileiros encaram a aplicação das leis, como estes mesmos magistrados, por muitas vezes, relativizam as leis (e, por que não, em parênteses próprios, os precedentes das instancias superiores) a fim de tentar amoldar uma situação ao entendimento que já mantinham antes mesmo da dedução do caso especifico em juízo.
É a deturpação da subsunção.
Esta preocupação “streckiana” atingiu até mesmo o então Projeto do Novo Código de Processo Civil (NCPC), quando o autor gaúcho enxergava mais uma etapa do processo que chamou de “commonlização” do Direito brasileiro[6].
Se por um lado Streck reconhece que o então Projeto trazia uma regulamentação da aplicação dos precedentes judiciais (ele chamou de “modelo de como seguir precedentes”), afirmou que este mesmo processo trazia um problema grave, que consistia na imposição do efeito vinculante das decisões emanadas de STF e STJ às instancias inferiores, sem impor-lhes o mesmo ônus. Ou seja, o Projeto do novo CPC mantinha as bases para aqueles problemas já mencionados (protagonismo, solipsismo judicial, etc.).
Não cabem cortes epistemológicos para discutir estes conceitos, já que não é este o objeto do presente artigo. O que se pretende, com as críticas de Lênio Streck ao projeto, naquela oportunidade, é fazer uma conexão com o rumo que este mesmo (então) projeto tomou. Expliquemos.
Já no mês seguinte à crítica, em novo artigo[7], Streck viu avanços naquele Projeto que, então, criticava, destacando que a mencionada crítica (STF e STJ desvinculados do dever de seguir os precedentes) “agora está sanada, porque o “andar de cima” está jungido a sua própria jurisprudência. E não poderá mudá-la a seu talante. Vitória da hermenêutica e da democracia”.
Aqui, também, concordo com Streck (e festejo Freddie Didier, Dierle Nunes e os demais que contribuíram para elaboração do novo CPC), já que o novo CPC seguiu neste rumo e dá um passo importante na forma como os nossos Tribunais, em todas as instancias, devem tratar os precedentes judiciais, valendo destacar que os artigos 926 e 927 da nova lei processual dão o tom acerca da necessidade de se observar os precedentes. Além disso, o art. 489, ao fixar os elementos essenciais da sentença, ao menos torna difíceis decisões que ignorem totalmente as questões submetidas pelas partes.
Situações como a descrita no início deste texto, infelizmente, devem continuar a ocorrer em diversos Tribunais brasileiros. Afinal, sem juízos de valores, esta é a característica geral dos nossos magistrados, criados e educados dentro deste sistema estritamente fundado no chamado “livre convencimento”, onde a figura do juiz é o centro do processo, analisando livremente o conteúdo probatório e a legislação relativa às questões deduzidas em juízo, podendo valer-se, ou não, de entendimentos emanados dos próprios Tribunais aos quais estejam vinculados ou mesmo das cortes superiores.
Honestamente, não penso que o exemplo proposto, para o mal ou para o bem, seja uma responsabilidade específica dos magistrados que proferiram as decisões diferentes no âmbito de um mesmo concurso e diante de idênticos fundamentos. Apenas penso que estes magistrados são fruto de uma doutrina e ordenamento jurídico que os conduz para situações como esta. Vejam que, dos 11 casos citados, oito decidiram em consonância com o precedente do STF, o que representa a maioria. Isso não os torna melhores ou piores do que os outros três desembargadores. Apenas diferentes.
A grande esperança, contudo, é que, com o advento de um novo Código de Processo Civil, fundado em ideias mais arejadas, com influências externas importantes, aos poucos, possamos ver uma renovação desta forma de encarar o processo. Tenho a certeza que, assim, situações como a relatada se tornarão ainda mais raras.
Para finalizar (e satisfazer os mais curiosos), destaco que, dos três mandados de segurança com liminares indeferidas, dois foram julgados. O primeiro, com a concessão da segurança, o segundo, com a denegação. Vejam que, dos 11 processos citados como exemplos, seis tiveram o mérito apreciado, sendo certo que, mesmo com a identidade de objeto e tramitando num mesmo Tribunal, ainda tivemos uma denegação de segurança, contra cinco concessões. Destaco: não há menção, no acórdão em que houve denegação da segurança, ao precedente do STF aqui mencionado.
É… Que venha, e logo, o Novo Código de Processo Civil.
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[1] CONCURSO PÚBLICO PROVA DE ESFORÇO FÍSICO. Caso a caso, há de perquirir-se a sintonia da exigência, no que implica fator de tratamento diferenciado, com a função a ser exercida. Não se tem como constitucional a exigência de prova física desproporcional à cabível habilitação aos cargos de escrivão, papiloscopista, perito criminal e perito médico-legista de Polícia Civil. (STF – RE: 505654 DF , Relator: Min. MARCO AURÉLIO, Data de Julgamento: 29/10/2013, Primeira Turma, Data de Publicação: ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-225 DIVULG 13-11-2013 PUBLIC 14-11-2013).
[2] Tiveram liminares deferidas os mandados de segurança 0018836-21.2014.8.05.0000, 0020081-67.2014.8.05.0000, 0018353-88.2014.8.05.0000 (segurança definitiva concedida), 0019707-51.2014.8.05.0000, 0019079-62.2014.8.05.0000 (segurança definitiva concedida), 0019727-42.2014.8.05.0000, 0020084-22.2014.8.05.0000 (segurança definitiva concedida) e 0002050-62.2015.8.05.0000 (segurança definitiva concedida). Tiveram as liminares indeferidas os mandados de segurança 0019148-94.2014.8.05.000, 0020563-15.2014.8.05.0000 e 0022323-96.2014.8.05.0000. Todas as decisões foram obtidas em consultas públicas realizadas no site do TJBA (esaj.tjba.jus.br).
[3] “O leigo, quando comparece a um escritório de advocacia, tem dificuldade de acreditar que, diante da situação jurídica que lhe interessa, o Judiciário já tomou e continua tomando decisões completamente díspares e contraditórias. Num primeiro momento chega a desconfiar, supondo não estar falando com alguém adequadamente preparado para informá-lo. O advogado, assim, antes de passar ao cliente a inútil informação de que existem várias orientações sobre a questão, tem de se fazer acreditar, demonstrando que o Judiciário, em virtude do sistema de que faz parte, pode decidir casos iguais de maneira desigual – algo sem dúvida difícil de ser explicado.” (MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. 3. ed. rev. atual. e ampliada – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. p. 176).
[4] Íntegra da ementa citada por Marinoni na mesma obra já citada, à p. 118: “PROCESSUAL STJ – JURISPRUDÊNCIA – NECESSIDADE DE QUE SEJA OBSERVADA. O Superior Tribunal de Justiça foi concebido para um escopo especial: orientar a aplicação da lei federal e unificar-lhe a interpretação, em todo o Brasil. Se assim ocorre, é necessário que sua jurisprudência seja observada, para se manter firme e coerente. Assim sempre ocorreu em relação ao Supremo Tribunal Federal, de quem o STJ é sucessor, nesse mister. Em verdade, o Poder Judiciário mantém sagrado compromisso com a justiça e a segurança. Se deixarmos que nossa jurisprudência varie ao sabor das convicções pessoais, estaremos prestando um desserviço a nossas instituições. Se nós os integrantes da Corte não observarmos as decisões que ajudamos a formar, estaremos dando sinal, para que os demais órgãos judiciários façam o mesmo. Estou certo de que, em acontecendo isso, perde sentido a existência de nossa Corte. Melhor será extingui-la”. (STJ – AgRg nos EREsp: 227703 PR 2002/0023176-0, Relator: Ministro HUMBERTO GOMES DE BARROS, Data de Julgamento: 17/06/2002, S1 – PRIMEIRA SEÇÃO, Data de Publicação: DJ 07.10.2002 p. 166).
[5] Vale a leitura do texto “E o professor me disse: Isso é assim mesmo!”, onde Lênio Streck mostra toda sua indignação com o comodismo e acomodação com relação a aceitação deste modelo judicial solipsista.
[6] Vejam que Lênio Streck mostra toda sua preocupação com a forma que o Projeto do NCPC tratava os precedentes.
Por: Carlos Marcos Patrocinio Ribeiro sócio do Patrocinio e Pereira Advogados e integrante do Núcleo de Práticas Jurídicas da Faculdade Ruy Barbosa.
Fonte: Revista Consultor Jurídico