União indenizará comerciantes por causa de fiscalização “espetaculosa”
Apesar de a União ter a prerrogativa de apurar fatos e impor sanções fiscais, extrapola os limites legais quando expõe desnecessariamente os investigados durante o ato de abordagem e apreensão de mercadorias. O fundamento levou a 4ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região a acolher Apelação de uma pequena loja de utilidades domésticas de Pato Branco (PR), que teve negado pedido de indenização pela abordagem abusiva e ‘‘espetaculosa’’ dos agentes da União em seu estabelecimento. Com a reforma parcial da sentença, a microempresa irá receber, a título de reparação, R$ 50 mil dos cofres da União.
De acordo com o entendimento dos desembargadores, os excessos da fiscalização comprometem a ação legítima da Administração Federal, transformam-se em espetáculo público e dão margem a pedidos de indenizações por danos morais, pelos prejuízos causados à imagem da empresa investigada. Afinal, a responsabilidade civil do estado, por atos de seus agentes, está consagrada no artigo 37, parágrafo 6º, da Constituição.
Para os integrantes do colegiado, a operação de fiscalização foi feita com bastante estardalhaço, pois os policiais fecharam a rua e usaram viaturas com sirenes ligadas. Além disso, os policiais entraram na loja ostentando armas de grosso calibre em um ambiente que não oferecia perigo.
Além disso, segundo o processo, os policiais e os auditores fiscais, sem se identificar, apreenderam todas as mercadorias que supunham ser importadas, mesmo aquelas cujas notas fiscais estavam nas mãos dos proprietários.
‘‘Comprovado o nexo de causalidade entre a conduta da Receita Federal, com apoio da polícia (exposição desnecessária dos investigados durante a abordagem e apreensão) e os danos causados à empresa autora (a qual foi submetida à situação vexatória quando da operação que apreendeu parte de sua mercadoria sem discrição nem critério plausível, causando-lhe o estigma de ‘contrabandista’), configurada a responsabilidade da ré quanto a estes’’, registrou o acórdão, lavrado na sessão de 26 de outubro.
O caso
O imbróglio teve início quando a Receita Federal em Cascavel (PR) recebeu denúncia da Ouvidoria do Ministério da Fazenda de que a empresa autora estaria vendendo mercadorias originárias da China irregularmente. Assim, em 19 de janeiro de 2012, com a ajuda de policiais federais fortemente armados, os agentes do Fisco se dirigiram ao local, causando grande alvoroço na região.
Apesar de todos os produtos estarem cobertos por notas fiscais de importação regular, as mercadorias de procedência estrangeira foram apreendidas, sem nenhum mandado de procedimento fiscal. Destas, 97,2% foram devolvidas em duas oportunidades: em 23 de fevereiro e em 4 de abril de 2012. A parcela dos produtos não devolvidos foi objeto de impugnação administrativa, que foi rejeitada pela Receita Federal.
Depois da fiscalização, a empresa ajuizou ação de danos morais e materiais contra a União. O dano material fundamentado nas despesas empenhadas com o transporte das mercadorias devolvidas pela Delegacia da Receita Federal, que estavam em Cascavel. É que, além de ter ficado com as prateleiras praticamente vazias, a ação lhe causou humilhação.
Meros atos fiscalizatórios
O juiz Rafael Webber, da 1ª Vara Federal de Pato Branco, não viu, na conduta da União, qualquer ilícito que desse causa à responsabilização civil e, por consequência, à reparação por danos morais ou materiais. Notou que foram encontradas no local mercadorias de origem chinesa com claros indícios de descaminho, que não atendiam as normas técnicas específicas para importação ou comercialização no Brasil. Assim, a retenção destas mercadorias estaria amparada no artigo 794 do Regulamento Aduaneiro (Decreto 6.759/2009). Ainda mais porque os indícios foram confirmados por laudo técnico.
Quanto à alegação de que a operação de fiscalização foi exagerada, por mobilizar um grande número de funcionários da Receita Federal e da Polícia Federal, disse que o argumento não se sustenta. “Primeiro, porque operação foi realizada de forma conjunta em quatro empresas sediadas em Pato Branco/PR, cujos sócios pertenciam à mesma família, sendo que o número de produtos a serem fiscalizados era demasiadamente grande. Segundo, a própria complexidade do trabalho de fiscalização, o qual demanda análise minuciosa de documentos e produtos, depende de um procedimento que exige uma maior restrição dos direitos fundamentais do particular frente à coletividade. Terceiro, as fotos anexadas ao processo não demonstram qualquer atitude arbitrária por parte dos fiscais e policiais que participaram da operação, mas meros atos fiscalizatórios decorrentes do poder de polícia”, explicou na sentença.
Para o juiz, a divulgação temerária na imprensa e nas redes sociais da atividade fiscalizatória é circunstância alheia aos atos perpetrados pela Administração Pública. Assim, eventuais prejuízos decorrentes da divulgação equivocada dos fatos não têm relação de causalidade com a atuação dos agentes públicos. “Desse modo, se algum dano houve, a respectiva indenização deve ser buscada frente àqueles que procederam de maneira arbitrária, divulgando fatos e opiniões não correspondentes ao poder de polícia legitimamente exercido pelos fiscais da Receita Federal e pela Polícia Federal”, concluiu.
Em busca de sensacionalismo
O desembargador Luís Alberto D’Azevedo Aurvalle, relator da Apelação, afirmou que a ação foi abusiva. Primeiro, informou que cerca de 90% das mercadorias acabaram devolvidas, pela inexistência de qualquer irregularidade. O pequeno percentual de produtos apreendidos, sujeitos à pena de perdimento (brinquedos, cosméticos, mochilas etc.), foram importados regularmente. Neste caso, apontou, as irregularidades se deram por desatendimento às normas de segurança e do Instituto Nacional de Metrologia, Qualidade e Tecnologia (Inmetro).
Citou ainda os fundamentos do voto proferido na Apelação Cível 5002283-52.2012.404.7012, do desembargador Fernando Quadros da Silva, da 3ª Turma. Este julgado tratou de igual realidade fática, envolvendo três outros estabelecimentos localizados na mesma rua e pertencentes à mesma família. E, em todos, a conduta dos agentes da PF e da Receita, segundo Silva, seguiram o mesmo padrão.
“Quando adentraram ao recinto fiscalizado, os auditores não se identificaram (o que deveriam ter feito de imediato), não avisaram o porquê da operação (deixando as pessoas perplexas, sem saber o que estava acontecendo), ordenaram que os clientes saíssem e ninguém mais entrava ou saía da loja (ação autoritária), ao serem questionados, gritavam aos funcionários e proprietários que calassem a boca (impondo medo de que pudessem ser presos)”, anotou Silva naquele acórdão.
O desembargador observou que não cabe ao Poder Judiciário ditar normas para controlar a fiscalização da Receita Federal, sequer fiscalizar a atuação da polícia. Mas disse há um limite para que seus agentes atuem. “Ao que se apresenta, parece-me que os auditores que coordenaram, supervisionaram e participaram da operação buscavam o sensacionalismo no momento. Se a operação da Receita era no intuito de recolher mercadorias ilegais, onde está a justificativa para o uso do expediente agressivo dos auditores e as armas longas?”, questionou naquele acórdão.
Por: Jomar Martins, correspondente da revista Consultor Jurídico no Rio Grande do Sul.
Fonte: Revista Consultor Jurídico