Acidentes de Trânsito: Fatores Determinantes – Aspectos Jurídicos

Por: Carlos Augusto Mota Lima – advogado

Em meados do ano de 1997, havia grande expectativa da entrada em vigor do novo Código de Trânsito Brasileiro, neste ano, passou a vigorar a lei nº 9.503/97 que tinha como premissa reduzir, massivamente, os acidentes de trânsito em todo território nacional, mas não foi bem o que aconteceu, portanto, questiona-se até onde uma lei pode mudar determinada realidade social? A lei, seja ela qual for, ao entrar no ordenamento jurídico traz um propósito, tem uma finalidade específica, assim, pergunta-se: é possível mudar a realidade social a partir da criação de uma lei? Ou é a realidade social quem promove as mudanças, alterando as respectivas leis? Evidente que as duas premissas são possíveis, sendo a primeira, menos comum, em tese, a dinâmica social é quase sempre responsável pelas mudanças no mundo jurídico, lembrando que a norma é fruto de um acordo social e nasce, somente, mediante a existência de algum acontecimento relevante. No caso específico, tivemos uma fracassada tentativa de alterar a realidade social, visando redução do elevados número de mortes, por acidentes de trânsito, com a criação de regras jurídicas, assim, nasceu o Código de Trânsito Brasileiro(CTB).

Hoje, com mais de 25 anos de existência, em nada ou quase nada, mudou a realidade violenta do trânsito nas rodovias brasileiras, numa clara demonstração ao Congresso Nacional, ao Poder Legislativo, que violência, seja qual for sua modalidade, não se combate somente com a criação de leis. A ideia de pacificar as relações sociais, os conflitos de toda ordem, através da criação de normas, fez do Congresso Nacional uma fábrica de leis, vivemos, digamos, uma diarreia legislativa, são tantas leis que seria humanamente impossível lembrá-las, ou citá-las. Atualmente, temos em média, mais de 30 mil leis em atividade no ordenamento jurídico brasileiro. Neste aspecto, o Código de Trânsito é só mais uma dessas tantas que caiu no esquecimento, sem qualquer reflexo na redução dos acidentes com mortes violentas nas rodovias brasileiras, em outras palavras, a lei não cumpriu sua função social. E qual a razão de tantos acidentes? De tantas mortes no trânsito? Como dito ao norte, nenhuma forma de violência se combate ou se reduz a níveis toleráveis de convivência humana, a partir da criação de leis, esse é um ponto importante, assim como não é possível combater qualquer forma de violência sem que saibamos a origem dessa violência, sem isso é malhar em ferro frio, em nada mudará a realidade social, esse raciocínio, serve para todas as formas de violência, entendendo-se esta, como gênero, da qual temos diversas formas de manifestações,  como por exemplo, a doméstica, a urbana, ambiental, contra idosos, contra crianças, violência policial, carcerária, no trânsito, enfim, a pergunta é: como combatê-las? Como reduzir os índices de violência nas diversas modalidades? Vamos nos ater a modalidade de violência no trânsito, portanto, quais os fatores responsáveis por essa modalidade de violência? Em primeiro lugar, vale destacar que acidentes não acontecem por acaso, muitas pessoas acabam se acidentando e acham que isso foi, por exemplo, azar, falta de sorte, isso não é verdade. Acidentes, seja qual for sua natureza é fruto de condutas humanas voluntárias, comprovadas por estudos científicos, que não acontecem por acaso, assim, podemos citar como exemplo a seguinte propositura: imaginemos um recipiente com cem bolas, sendo noventa e nove brancas e uma preta com as mesmas dimensões, pergunta-se, quem apostaria que ao chacoalhamos o recipiente a pessoa tiraria, na primeira tentativa, a bola preta? Certamente ninguém, entretanto, quem apostaria que se essa operação for repetida, por várias vezes, a pessoa nunca tiraria a bola preta? A resposta, também, seria ninguém. Com relação aos acidentes, em qualquer âmbito, principalmente os de trânsito, acontece a mesma dinâmica, estamos falando de probabilidade, portanto, para cada noventa e nove tentativas temos uma chance concreta de tirar a bola preta, em outras palavras, de sofrermos um acidente, como se constata, acidente não acontecem por acaso, são frutos de ações mal sucedidas, de probabilidades, se compararmos isso, por exemplo, com uma pessoa que tenha por hábito levantar a roda dianteira de sua motocicleta, essa pessoa fará isso por diversas vezes, mas certamente, em algum momento vai se acidentar, vai tirar a bola preta, isso é fato, isso é matemático e não podemos atribuir ao acaso ou azar, no mesmo sentido, para alguém que utiliza, em sua residência, uma escada faltando um dos degraus, essa pessoa, poderá utilizá-la diversas vezes até que um dia esqueça e se acidente, isso é previsível é probabilidade e não falta de sorte. Esse é o primeiro aspecto relevante. Num segundo momento, temos que compreender que acidentes tem dois fatores determinantes denominados de: a) atos inseguros, b) condições inseguras. O que significa atos inseguros? Os atos inseguros, são frutos da nossa capacidade de autodeterminação, está ligado ao nosso estado anímico, ou seja, ligado a nossa alma, algo imaterial, portanto, depende de nosso comportamento, podemos citar como exemplo, alguém que opera uma máquina sem conhecimento, sem a habilitação necessária ou embriagado, isso acontece com frequência, onde pessoas, sem a habilitação necessária, dirigirem veículos ou operam máquinas em nossas rodovias Brasil a fora. Essa vertente, esses atos inseguros, como estão ligados à pessoa, ao estado de alma, a forma mais comum de combatê-los é através da educação. Em relação ao trânsito, isso acontece com a divulgação de campanhas massivas pelos governos (união e estados) nos meios de comunicação, ou, no caso da indústria, com palestras, cartazes e outras fontes de informação, lembrando que, a depender do número de funcionários de uma empresa é obrigatório a criação da CIPA (comissão Interna de Prevenção de Acidentes). No tocante às condições inseguras, existe uma maior dificuldade, isso em todos os sentidos, abrangendo todas as atividades, inclusive, o trânsito. E por quê? Quando se trata de condições inseguras, isso representa, investimentos bilionários, para exemplificar, imaginemos uma linha de produção de veículos automotores, fábricas gigantes, para redução de acidentes no local de trabalho, são necessários investimentos em alta tecnologia, modernizando máquinas e equipamentos, instalação de sensores e dispositivos de proteção evitando que trabalhadores sejam vítimas de graves acidentes, isso acaba por inviabilizar empresas e indústrias de trabalharem na redução de acidentes, utilizando-se desta via, pois já são penalizados, com enormes cargas tributárias, por isso optam, pela primeira via que requer, baixos  investimentos na área da educação e distribuição de equipamento de proteção individual.

Com relação aos acidentes de trânsito, não é diferente, o governo federal é responsável pela manutenção, fiscalização, duplicação, sinalização de todas as rodovias federais onde o volume de tráfego é imenso, sendo que temos, somente, 1,72 milhão de quilômetros de rodovias, desses só 213,5 mil (12,4%) são pavimentadas, do total, somente, 65,6 mil quilômetros são rodovias federais, sendo que apenas 7 mil quilômetros são duplicadas. (https://www.google.com). Como se constata, as rodovias brasileiras são precárias, com baixo índice de vias duplicadas, sem sinalização adequada na maior parte da malha, com destaque para a falta de manutenção, predominando buracos em grande parte da malha rodoviária, descaso absoluto, que se reflete, inclusive, na economia, já que o transporte de cargas no Brasil, são feitos pelas rodovias, encarecendo o frete, obrigando as empresas transportadoras fazerem pesados investimentos em manutenção preventiva da frota, entretanto, o que gera perdas irreparáveis são as mortes. Diariamente vidas são ceifadas nas rodovias, famílias inteiras, especialmente em feriados prolongados, isso em razão das precárias condições de trafegabilidade dos veículos, estamos falando só das rodovias federais, agora imaginemos isso nos estados e municípios Brasil afora? Quem são os responsáveis? O governo federal, claro, sem afastar a responsabilidade de cada cidadão, portanto, quando falamos de condições inseguras como fator gerador de acidentes, estamos falando da omissão do governo federal em investir na manutenção das rodovias, quer sinalizando, duplicando os pontos críticos, tapando buracos, tudo isso visando a redução dos acidentes, mas, como isso representa investimentos bilionários por parte dos governos (união e estados), estes,  acabam optando pela primeira premissa, mas viável economicamente, então de alguma forma culpam os motoristas e se limitam a fazer campanhas educativas, não que isso seja desprezível, ou menos importante,  ao contrário, são tão necessária quanto os investimentos na manutenção e duplicação das rodovias federais, sem isso, continuaremos batendo todos os recordes em acidentes de trânsito

As mortes no trânsito, são significativas, com consequências jurídicas nem sempre toleradas pela população, esse, talvez, seja o maior dilema que vivemos atualmente, isso porque, sempre que alguém morre em decorrência de algum acidente, em especial quando é constatado a embriaguez do motorista causador, cria na família vitimada, uma enorme sensação de impunidade, de revolta, ao tomar conhecimento que o infrator  homicida, pagou pequena fiança e saiu da prisão, dando a entender que a vida ceifada não tem nenhum significado do ponto de vista jurídico. Os aspectos jurídicos relacionados a esse tema são complexos, até para os operadores do direito, existe certa dificuldade de compreensão, imagina para o cidadão comum. Compreender as razões jurídicas que leva uma pessoa, que acabou de matar alguém na direção de um veículo automotor, ser liberada após o pagamento de fiança, sob a rubrica de ter praticado um crime culposo não é tarefa simples, para a maioria esmagadora, seja qual for a tese de defesa,  jamais aceitarão essa condição, afinal, perder um ente querido em decorrência de um acidente de trânsito, praticado por um motorista completamente embriagado, para logo a seguir, vê-lo, livre como se nada tivesse acontecido, não é fácil, entretanto, é  necessário compreendermos que a lei penal disciplina a matéria e deve ser aplicada pelo poder judiciário.

Com o surgimento do Código de Trânsito Brasileiro, aparentemente passamos a ter duas modalidades de culpa, isso parece contrariar o próprio ordenamento jurídico, Na verdade, temos crimes culposos previstos no Código Penal Brasileiro e no Código de Trânsito, assim, quando a morte ou lesão corporal for em decorrência de acidentes de trânsito de alguém que esteja na direção de veículo automotor, esses crimes são apurados a luz do Código de Trânsito, ou seja, da lei especial, as outras formas de culpa a competência é da lei geral, aplica-se às regras do Código Penal Brasileiro. Neste sentido, nos leva a errônea compreensão de existência de duas modalidade de culpa, uma de competência do Código de Trânsito e outra disciplinada no Código penal, o que não é verdade, a culpa é uma só é fruto de uma conduta voluntária, causadora de um ato lesivo (morte ou lesão), sem que o agente causador tenha direcionado sua vontade em busca da produção desse resultado, em outras, palavras, crimes culposos resultam de uma violação de dever objetivo de cuidado, o assunto não é de fácil  compreensão, como exemplo, podemos citar alguém que ao dirigir seu veículo, tenta passar uma mensagem de celular, ou , quiçá, tenta sintonizar o som do veículo, de repente, acaba atropelando um transeunte matando-o, perceba que o motorista não utilizou o veículo como arma para atropelar a pessoa, mas, sem dúvida, violou um dever de cuidado objetivo que todos nós temos que ter perante a sociedade em que vivemos. Em todas nossas ações, condutas, precisamos nos policiar para não violarmos normas de dever de cuidado objetivo. Quando isso ocorre é necessário verificarmos se essa violação configura uma conduta que esteja sob a tutela da lei penal, ou seja, é necessário um juízo de valor sobre a conduta, o que é feito no devido processo legal e isso ocorre quando a pessoa viola o dever de cuidado por ser negligente, (conduta a menos), ou quando age com imprudente, (conduta a mais) ou ainda, quando age com imperícia (falta de capacidade técnica), essas são as janelas, pelas quais cometemos crimes culposos, essas condutas, embora sejam voluntárias, não são direcionadas visando o resultado lesivo, assim, os crimes culposos são denominados tipo penal aberto, exigindo, para sua configuração um juízo de valorar dessa conduta para sabermos se o agente, de fato, agiu com negligência, imprudência ou imperícia, pois, embora oriundos de condutas voluntárias, estão despidos do ato volitivo e cognitivo da pessoa, o que torna essa conduta menos reprovável, juridicamente falando, com reflexos em penas brandas e medidas mais benevolentes, o que, para muitos, gera um inconformismo sem precedentes.

Na outra ponta, caso a morte ou lesão não sejam oriundas de alguém que esteja na direção de veículo automotor, mas que resultem de violação de um dever objetivo de cuidado, a pessoa responderá por crime culposo, à luz do código penal brasileiro, podemos citar como exemplo, alguém responsável pela construção de um prédio que desaba por não ter adotou as medidas exigidas ou, até, um médico, que submete um paciente a uma cirurgia sem a devida habilitação técnica necessária vindo causar lesões graves ou o óbito do paciente, pratica crime culposo, cuja competência, se desloca para o código penal brasileiro. Como o surgimento das duas leis tratando da mesma matéria, crimes culposos, nos levou a imaginarmos a existência de duas modalidades de culpa, uma com previsão no código de trânsito e outra no código penal, mas isso não é verdade, o crime culposo decorre da violação de dever de objetivo de cuidado, seja no código penal, seja no código de trânsito, na verdade, passamos a ter, digamos, uma modalidade de culpa qualificada, considerando a gravidade da pena, o que causa, uma certa dicotomia, já que o conceito de culpa é um só, entretanto, as penas são diferentes nas duas leis, as do código de trânsito são bem mais graves, por isso, entendo que, estamos falando de uma modalidade, qualificada de culpa, já que o código penal, as penas são bem menores, então, temos tratamento diferentes para uma mesma modalidade de crime causando certa estranheza,  finalmente, sem entrar na complexidade da matéria, apenas, para uma melhor percepção das pessoas que não operam na área do direito, vale destacar que os crimes dolosos são previstos no código penal, cujas penas são elevadas em decorrência de o resultado lesivo ao bem jurídico, ser fruto do querer do agente, portanto, o dolo é um ato consciente, oriundo da vontade e cognição do agente que visa, a qualquer custo o resultado lesivo, diferente da culpa que ocorre pela simples violação de um dever objetivo de cuidado, portanto, o tratamento jurídico é bem diferente e sempre é motivo de muitas críticas.

Poderíamos, para mitigar os efeitos nefastos dessa sensação de impunidade, especialmente quando a morte no trânsito resulta de condutas em que fica comprovado a embriaguez do motoristas e estes, via de regra, são condenados por crimes culposos, lembrando que essa é a posição dominante dos tribunais superiores, salvo algumas exceções,  quando alguns respondem por crime doloso na modalidade de dolo eventual, previsto no código penal brasileiro, consistindo numa conduta em que o agente, embora não dirija sua conduta em busca do resultado, mas, pelas circunstâncias, assume o risco na sua produção. Penso que se houvesse uma reformulação do código de trânsito, em relação a esses crimes, estabelecendo que, qualquer crime na direção de veículo automotor, em que se constatasse a embriaguez do motorista, este, indubitavelmente, responderia pelo crime de homicídio ou lesão corporal na modalidade de dolo eventual, mas certamente, isso seria motivo de acaloradas discussões jurídicas, já que os crimes culposos, seja qual for a situação, ainda que resulte da ingestão de bebidas alcóolicas, sempre exigirá a formulação de um juízo de valor sobre a conduta humana. Por fim, embora, as penas e as medidas aplicadas para quem comete essa modalidade de crime, seja sempre, do ponto de vista do cidadão comum, desarrazoada, em relação ao evento morte, precisamos compreender, também, que alguém, por exemplo, que ingeriu bebida e dirige seu veículo com sua família a bordo e, num cochilo sofre um grave acidente, onde ocorra a morte dos seus familiares e de um terceiro, pergunta-se: era isso que essa pessoa queria? Sua conduta foi dirigida visando esse resultado? Claro que não, mas será que o fato de ingerir bebida alcóolica, por si só, passou a assumir o risco na produção do resultado? Será que agiu com dolo eventual? Eis a questão, portanto, o tema é complexo, precisamos de uma reformulação das normas, mas sem perder o foco que os delitos, em sua maioria, são culposos, com rara exceções, como já dissemos são tratados na modalidade de dolo eventual.

O Impacto

 

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