Obra fundamental e coerente marca os 80 anos de Chico Buarque

O tempo é a grande estrela nos 80 anos de Chico Buarque de Hollanda. Celebrado nesta quarta-feira, 19 de junho de 2024, o 80º aniversário do artista carioca flagra o cantor e o compositor em grande forma como cidadão, marchando nas ruas de Paris contra o avanço da extrema direita pelo mundo, e já consolidado como artista que colhe as glórias da obra que alicerça desde 1964 com coerência e sofisticação igualmente extremas.

Ainda citando versos de Tempo e artista, música lançada pelo cantor no álbum Paratodos (1993), o tempo-rei obrou a arte maior de Chico Buarque e modelou o artista ao feitio dele, o tempo, com rugas ao redor do rosto e com a satisfação na alma de ter escrito muitas das páginas mais felizes da história da música brasileira.

Desse molde, resultou um dos cancioneiros mais belos e contundentes da MPB, a sigla que nasceu com Chico e com outros gênios contemporâneos na arte da composição – Caetano Veloso, Edu Lobo, Gilberto Gil e Milton Nascimento, todos já octogenários – que irromperam com força ao longo dos anos 1960 na plataforma inflamada dos festivais da canção.

Nascida oficialmente em 1964, a obra musical de Chico Buarque permaneceu imaculada ao longo dos últimos 60 anos, imune às modas e aos modismos.

Dos sambas e canções iniciais, impregnados de lirismo melancólico, Chico Buarque logo migrou para as músicas combativas nascidas da inspiração daquele que jamais fugiu à luta contra a repressão sofrida pelo povo brasileira entre 1964 – ano em que o artista foi revelado – e 1985.

A ditadura perseguiu Chico, mas Chico também foi um algoz que jamais deu trégua aos opressores, usando a música como arma contra a tirania.

Parceiro do soberano Antonio Carlos Jobim (1927 – 1994) já em 1968, Chico Buarque poderia ter construído sozinho a grande obra por ser letrista preciso e melodista refinado. Mas Chico uniu forças com melodistas do porte de Edu Lobo e Francis Hime para produzir obras-primas para cinema e teatro.

Analisado sob o benefício da perspectiva, o cancioneiro de Chico Buarque parece ter encontrado na resistência a alavanca que acionava a criação mais intensa. As canções e os discos mais populares são os do período que vai de 1966 a 1984.

Contudo, quem tiver sensibilidade musical vai garimpar diamantes verdadeiros na produção do compositor a partir dos anos 1990, década de álbuns mais espaçados como o já mencionado Paratodos (1993) e o menos lembrado As cidades (1998).

É a época das melodias mais intrincadas, dos caminhos harmônicos mais inusitados, dos jogos poéticos mais requintados, embora as letras de Chico sempre soem refinadas em qualquer tempo. Basta citar a engenhosidade da letra de Construção (1971), música-título de álbum emblemático, símbolo da maturidade precoce do compositor.

Porque o fato é que Chico Buarque de Hollanda já apareceu pronto. Tanto que, em 1966, já era rara unanimidade nacional, alçado a contragosto ao posto de popstar. E, em 1968, já era reconhecido como o gênio que sempre foi.

Em tempos mais incorretos politicamente, Chico Buarque também foi um compositor de voz feminina que retratou grandezas e pormenores da alma da mulher em canções de natureza quase sempre dramática, vocacionadas para cantoras teatrais como Maria Bethânia. Se bem que cantoras de todas as naturezas – de Nara Leão (1942 – 1989) a Gal Costa (1945 – 2022), de Simone a Zizi Possi, passando por Cida Moreira e Fafá de Belém – sempre se renderam à música de Chico Buarque.

Com o lápis impreciso, o tempo pôs rugas ao redor da boca do artista, mas não lhe arrebatou a garganta – e, nessa seara, os versos da música de 1993 nunca fizeram sentido. Quando o já octogenário Chico sobe ao palco, a voz, mesmo sem viço, mostra que o cantor se aprimorou na arte de interpretar a própria obra glorificada nos 80 anos do artista.

Mesmo sob ataques disparados pelos detratores da extrema direita de um Brasil ainda polarizado, Chico Buarque de Hollanda já tangencia o infinito alcançado somente pelos gênios.

Fonte: G1
Imagem: Reprodução

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