Sou magistrado, não sou filatelista, muito menos uma máquina!
Por Mário Márcio de Almeida Sousa*
Muitos, muitos anos atrás, mais precisamente em julho do distante ano de 2009, consignei no texto magistratura ajoelhada “que, a pretexto de ‘fazer o Judiciário funcionar’ e ‘dar uma resposta à sociedade”, o CNJ tem-se excedido, tanto ao avançar em áreas que não lhe dizem respeito, como ao estabelecer metas e cobrar resultados que sabidamente não podem ser alcançados, não com as condições atuais da maioria dos fóruns deste país continental — e por isso mesmo multifacetado”.
Para tristeza e agonia de muita gente, eu, nas primeiras fileiras, lamento dizer que a história se repete, só que numa versão muito pior, com um vigor invejável — e igualmente deplorável.
Quase todo dia chega uma cobrança por resultados, um ofício sobre uma “nova prioridade”. Não raro, mais de uma vez. Pouco importa que os juízes e juízas estejam à frente das unidades há semanas, meses, anos ou décadas. Somos todos cobrados como se fôssemos os únicos responsáveis por esse estado de coisas, por terras arrasadas por outras canetas, ou pelas tintas que nelas se conservaram, pouco ou nada fazendo.
Há metas e selos para tudo. Aliás, esses tais selos se tornaram fins em si mesmos, uma verdadeira paranoia, uma obsessão, sobrepondo-se, sem qualquer pudor, aos interesses e angústia que habitam cada processo. O Direito parece ter se tornado um detalhe.
Reitero, a plenos pulmões, que algo deve ser feito para acabar ou, pelo menos, diminuir a chamada morosidade da Justiça nacional, embora seja essa uma missão inglória quando se ajuízam mais de 30 milhões de ações por ano, num país com pouco mais de 200 milhões de habitantes.
Contudo, essa luta não pode ser travada sem a preservação da qualidade das decisões. Justiça tardia é injustiça. Justiça rápida demais é irresponsabilidade.
Jamais estive e por óbvio não estou a defender que magistradas e magistrados não tenham metas de desempenho, mesmo porque as temos a mais não poder. Defendo, sim, que não incorramos na nefasta prática de prometer aquilo que não poderemos dar; que não coloquemos todos os juízes e juízas na vala comum da inoperância, da falta de compromisso com a nobre e honrosa tarefa de julgar; que sejamos cobrados, enfim, na medida das condições que nos forem ofertadas.
Diga-se o que for, engane-se quem quiser, mas essa pressão diuturna e sempre crescente por números, metas e selos é incompatível com uma Justiça verdadeiramente justa. Na seara criminal, então… Servidores e juízes não são máquinas!
Saúde em risco
O CNJ, sempre pródigo em regular a tudo e a todos, decerto tem dados a comprovar a avalanche de licenças médicas por estresse, depressão, pânico, hipertensão, dores crônicas, vícios de toda sorte, estafa, enfim.
Agora mesmo, enquanto escrevo, cansado, mais este desabafo, este verdadeiro grito de “basta, sou humano, não sou uma máquina de julgar!”, sinto o desconforto da taquicardia a da pressão elevada. Amanhã, após encerrar mais uma noite de plantão criminal, com audiências de custódia a me aguardar no final de semana, o contraste médico correrá pelas minhas veias para saber a quantas anda meu trepidante coração.
Não desconheço a honestidade de propósitos e as boas intenções de muitos, mas a coisa já resvala no absurdo. Fico a me perguntar se, Brasil afora, não há quem alerte os tomadores de decisão sobre os riscos dessas posturas. Se eu replicar isso com minha equipe, não demora e serei acusado de assédio moral. Quiçá punido…
Ora, quem, em sã consciência e dotado do mínimo instinto de preservação, haverá de se ocupar em bem julgar se o que importa é julgar muito?
Com todo respeito aos respectivos servidores, não fiz concurso para os Correios, tampouco sou filatelista. Selos não me apetecem. Estudei e estudo para dar prevalência às pessoas, não aos números. Nós, do Poder Judiciário, não somos uma indústria de produção em massa, somos detentores de uma parcela do poder estatal para decidir com calma, prudência e responsabilidade as vidas e os destinos alheios.
Eu, homem de poucas luzes, como diz um querido amigo, já proferi em 2024 algo em torno de 548 sentenças, 1.020 decisões e 980 despachos na vara criminal em que sou titular e nas outras unidades pelas quais respondi. Sem contar a jurisdição eleitoral, as centenas de audiências de instrução, atividades administrativas etc. E não me orgulho disso, porquanto não corresponde ao meu ideal de Justiça. Impossível não errar, não ser injusto nesses tempos estranhos. Como Chaplin representaria um juiz?!
Sem qualquer ranço de arrogância, prepotência e, muito menos de insubordinação, mas com a coragem e a altivez que nunca me faltaram, rogo as mais sinceras vênias para dizer — com ênfase — que, a seguir nessa toada, mais adiante, alguns comandantes poderão até ostentar, orgulhosos, certificados, prêmios, selos e quejandos.
Todavia, tal como Pirro, parte relevante de seus exércitos haverá sucumbido: “…outra vitória como esta e estamos acabados”.
*Mário Márcio de Almeida Sousa, é juiz de Direito no Maranhão, graduado em Direito pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA), pós-graduado em Direito Constitucional pela Unidade de Ensino Superior Dom Bosco (UNDB) e MBA em Poder Judiciário pela Fundação Getúlio Vargas (FGV-Direito-Rio).
Fonte: Revista Consultor Jurídico (Conjur)
As decisões demoram e quando saem, são equivocadas, sem adequada fundamentação, em clara demonstração de que o caso não foi estudado. acredito que falta melhor versão nas varas para melhor julgar e até der às metas do CNJ.