Repasses de R$ 101 milhões da Secretaria de Esporte e Lazer do Pará sob suspeita
Um robusto documento protocolado no Tribunal de Contas do Estado do Pará (TCE/PA) pelo Ministério Público de Contas (MPC/PA) lança um olhar crítico e preocupante sobre a gestão de recursos públicos pela Secretaria de Estado de Esporte e Lazer (SEEL).
A Representação, elaborada pela 8ª Procuradoria de Contas, expõe um quadro de aparentes e sistemáticas violações à Lei nº 13.019/2014, conhecida como Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil (MROSC), e aos decretos estaduais que regem as parcerias com Organizações da Sociedade Civil (OSCs) no Pará.
O foco da denúncia recai sobre os termos de colaboração e fomento celebrados em 2022, um ano em que a SEEL figurou como a unidade gestora que mais destinou recursos a essas entidades, com 82 termos firmados e repasses que superaram a vultosa cifra de R$ 101 milhões.
As falhas apontadas pelo MPC/PA vão desde a forma de seleção das entidades até a ausência de transparência e problemas na comprovação de requisitos legais básicos.
O valor citado acima representaria 47% do total repassado por órgãos estaduais para parcerias com OSCs naquele ano. A escala dos repasses torna a gestão da SEEL um ponto crucial para a fiscalização do uso de dinheiro público.
A exceção como regra na SEEL
O MROSC fala sobre a seleção de entidades, conhecida como chamamento público. A lei e os decretos estaduais detalham as regras para esse processo, assegurando o acesso democrático aos recursos públicos.
No entanto, a Representação do MPC/PA denuncia que, no âmbito da SEEL, o chamamento público deixou de ser a regra e se tornou, na prática, uma exceção. O órgão de controle apurou que a Secretaria recorreu massivamente às hipóteses legais de dispensa e inexigibilidade de chamamento.
A análise de processos referentes a parcerias de alto valor em 2022 revelou que, em diversos casos, as justificativas citavam simultaneamente o Art. 29 (que trata de recursos provenientes de emendas parlamentares) e o Art. 31, II (que se refere à inexigibilidade por entidade autorizada em lei ou subvenção).
A cumulação desses dispositivos, segundo o MP, é indevida porque tratam de hipóteses distintas e excludentes para a dispensa ou inexigibilidade do chamamento.
Ainda conforme o órgão ministerial, ao misturar as bases legais, a SEEL obscurece a real razão pela qual o chamamento público foi evitado, impedindo a adequada fiscalização. “Tal situação impede, inclusive, de aferir qual é a real origem da não realização do chamamento público, pois, ao cumular dispositivos, não deixa claro se a parceria é, de fato, decorrente de emenda parlamentar ou de hipótese de inviabilidade de competição”, afirma a Representação.
Justificativas genéricas e a falta de detalhes essenciais
Segundo o MP, mais alarmante ainda é a qualidade das justificativas apresentadas pela SEEL. O MROSC e Decreto Estadual exigem que a ausência de chamamento público seja por dispensa ou inexigibilidade seja devidamente motivada. Essa motivação deve demonstrar a situação fática que se enquadra na exceção legal, a razão da escolha da organização da sociedade civil e a justificativa do valor previsto.
O MPC/PA, no entanto, encontrou “procedimentos adotados pela SEEL (…) bastante genéricos, cujos modelos, ao que parece, são utilizados para todas as parcerias”. As justificativas analisadas muitas vezes repetiam os termos da lei sem apresentar os aspectos fáticos concretos que levariam à inviabilidade da competição ou que justificassem a escolha daquela entidade específica. Em alguns casos, nem sequer havia menção à suposta lei autorizativa que fundamentaria a inexigibilidade.
Mesmo nas parcerias supostamente oriundas de emendas parlamentares, onde a OSC pode ser nominalmente identificada no orçamento, o MPC/PA sustenta, com base em doutrina e jurisprudência, que ainda assim é fundamental justificar as bases da escolha. A sociedade e os órgãos de controle têm o direito de saber o porquê de determinada entidade, sem passar pelo processo competitivo, ser a beneficiária de vultosos recursos públicos. “Não há razão para que tais circunstâncias sejam silenciadas”, pontua o documento.
A Representação adverte que a MROSC e seus regulamentos não foram criados para legitimar a celebração direta de parcerias de forma discricionária, mas sim para torná-la um mecanismo transparente e devidamente justificado quando as hipóteses legais realmente se configurarem.
Requisitos ignorados: entidades sem tempo e sem endereço real
Além dos problemas na seleção, a fiscalização preliminar do MPC/PA revelou indícios de que algumas OSCs parceiras da SEEL em 2022 sequer atendiam aos requisitos legais básicos de elegibilidade para firmar parcerias com o poder público.
Um dos requisitos cruciais é a exigência de que a OSC possua, no mínimo, dois anos de existência com cadastro ativo no CNPJ. Esta regra visa garantir que a entidade possua um mínimo de estrutura e histórico de atuação antes de gerir recursos públicos.
A Representação cita o caso da Federação dos Empresários, Produtores e Empreendedores Culturais do Estado do Pará, CNPJ nº 40.978.682/0001-26. Essa entidade celebrou cinco termos de fomento com a SEEL em 2022, que juntos totalizaram R$ 10.025.000,00 (conforme tabela detalhada na Representação). Entretanto, uma consulta ao comprovante de inscrição e de situação cadastral no site da Receita Federal revelou que a data de abertura deste CNPJ é 08/02/2021. Ou seja, em 2022, a entidade não possuía os dois anos de existência exigidos pela lei para firmar parcerias, tornando-a, em tese, inelegível.
Outro requisito legal fundamental é a comprovação de que a organização da sociedade civil funciona no endereço por ela declarado. Esta exigência busca assegurar que a entidade possui uma sede operacional real, que pode ser fiscalizada e contatada, e não apenas um endereço fiscal fictício.
A Representação critica o fato de que a própria lista de documentos exigidos pela SEEL, encaminhada ao MPC/PA, apenas repetia o texto legal (“Cópia de documento que comprove que a organização da sociedade civil funciona no endereço por ela declarado”) sem especificar que tipo de documento seria aceito como prova efetiva (como contas de consumo, contrato de locação, etc.), o que, segundo o MPC/PA, seria a decorrência lógica da interpretação do dispositivo.
A investigação foi além e utilizou ferramentas públicas para checar a realidade dos endereços. Uma pesquisa via Google Maps nos endereços declarados por algumas das OSCs que mais receberam recursos da SEEL em 2022 revelou situações que, no mínimo, levantam suspeitas sobre o funcionamento real das entidades nesses locais.
O Instituto de Defesa e Proteção do Consumidor do Estado do Pará – IDC/PA (CNPJ: 21.848.708/0001-77) celebrou um termo de fomento de R$ 3.500.000,00 com a SEEL em 2022. O endereço constante em seu CNPJ é TV. Dom Pedro I, nº 810, Bairro Umarizal, Belém. Imagens do Google Maps anexadas à Representação mostram uma fachada que, visualmente, parece ser de um prédio comercial pequeno ou misto, com indicação de “VENDE-SE APARTAMENTO” e lojas no térreo, mas que não sinaliza claramente a operação de uma entidade da sociedade civil de grande porte.
Situação semelhante foi verificada com a Associação Beneficente e Cultural de Outeiro – ASBECO, atualmente denominada Instituto Pescador Beira Mar (CNPJ 10.927.727/0001-72). Esta entidade celebrou três termos de fomento com a SEEL em 2022, somando mais de R$ 8 milhões. O endereço registrado é R. Irmãos Soranso, 388, São João do Outeiro, Belém. A imagem do Google Maps mostra uma residência com muros e portões fechados, sem qualquer identificação visual que sugira a existência e operação de uma organização da sociedade civil com vultosos contratos públicos.
Por fim, a Representação cita a Associação Recreativa Beneficente Cultural Gaviões da Vila (CNPJ 07.810.113/0001-00), que recebeu R$ 1.800.000,00 em um termo de fomento em 2022. O endereço declarado é R. Dois de Dezembro, 623, Cruzeiro/Icoaraci, Belém. A imagem do Google Maps mostra o que parece ser uma residência ou pequeno imóvel, novamente sem qualquer sinalização visível de que ali funcione uma entidade de grande porte que gerencia milhões em recursos públicos.
Essas constatações, segundo o MPC/PA, sugerem que a SEEL pode ter celebrado parcerias sem a devida diligência na verificação dos requisitos essenciais das OSCs, impactando a legalidade dos contratos e a efetividade do controle sobre a destinação dos recursos.
Transparência pública deficiente em múltiplas frentes
Um dos pilares da MROSC é a transparência. A lei impõe uma série de obrigações tanto para a administração pública concedente quanto para as OSCs parceiras, visando garantir que a sociedade civil e os órgãos de controle tenham amplo acesso às informações sobre as parcerias e o uso dos recursos.
O Art. 10 da Lei nº 13.019/2014 determina que a administração pública divulgue em seu site oficial a relação das parcerias celebradas e seus planos de trabalho, com informações mínimas como data de assinatura, CNPJ da entidade, valor total, valores liberados, situação da prestação de contas e remuneração da equipe. O Art. 32, §1º, exige a publicação do extrato da justificativa para a ausência de chamamento público.
A Representação, no entanto, aponta que a SEEL falhou em cumprir integralmente essas exigências. Embora o site da Secretaria apresente listas de termos de fomento para 2023 e 2024 (as de 2022, objeto da denúncia, aparentemente já não estavam mais disponíveis, em tese pelo decurso do prazo de 180 dias após o encerramento, conforme Art. 10), faltam informações cruciais.
O MPC/PA não conseguiu identificar nos termos listados os planos de trabalho das parcerias, nem detalhes mínimos exigidos pela lei, como a situação da prestação de contas e informações sobre a remuneração da equipe de trabalho.
Além da falta de detalhes, a Representação destaca a ausência da divulgação dos extratos das justificativas para a dispensa ou inexigibilidade do chamamento público no site da SEEL.
A situação não melhora ao nível central do Estado. O MPC/PA constatou que o Portal da Transparência do Estado do Pará também não oferece as informações devidas sobre as parcerias com entidades privadas, apesar das exigências legais e da própria competência atribuída à Auditoria-Geral do Estado (AGE) pelo Decreto Estadual vigente à época. Embora a AGE tenha informado sobre trabalhos em andamento para reformulação do portal e inclusão dessas informações, a Representação aponta que, até a data de sua elaboração, nenhuma mudança visível havia ocorrido no portal.
A opacidade também se estende às próprias OSCs. O MROSC impõe às entidades parceiras o dever de divulgar as parcerias celebradas em seus sites e em locais visíveis em suas sedes. O MPC/PA verificou que muitas das entidades que mais receberam recursos da SEEL em 2022 sequer possuíam site na internet. Quando possuíam (como o Instituto Brasileiro de Desenvolvimento e Gestão – IBDG), a transparência sobre as parcerias era insuficiente. Entidades como a LIGA DESPORTIVA DE BELÉM – LIDEBEL e a LIGA ESPORTIVA DOS BAIRROS DO DISTRITO D’AGUA, que receberam vultosos recursos em 2024 (mencionadas no documento como exemplo da continuidade do problema), não tiveram seus sites eletrônicos correlatos encontrados pelo MPC/PA.
Plataforma eletrônica inexistente e o controle dificultado
Um dos mecanismos mais importantes introduzidos pela Lei nº 13.019/2014 para garantir a transparência e a eficiência na prestação de contas é a plataforma eletrônica única de acesso público para a prestação de contas e registro dos atos da parceria. A lei exige a implementação dessa plataforma desde 2015.
Segundo MP, no entanto, passados quase dez anos da edição da lei que alterou o MROSC para incluir essa exigência, o Estado do Pará ainda não implementou tal plataforma. Isso significa que a prestação de contas, em vez de ser um processo digital e publicamente acessível, ainda depende de trâmites físicos ou sistemas incompletos, reduzindo drasticamente a eficácia da norma e o direito à informação e ao controle social.
A AGE informou ao MPC/PA que a implantação de um módulo específico para gestão de convênios estaria em andamento dentro do novo sistema de Administração Financeira do Estado (SIAFE), mas que lacunas nas especificações haviam causado atrasos. Posteriormente a AGE confirmou que o módulo está sendo implantado, com treinamento de usuários e reuniões com o TCE/PA para integração, com previsão de conclusão para o final de 2024. Apesar dos esforços reportados, para o MP, a demora na implementação da plataforma eletrônica, segundo o MPC/PA, era uma grave falha que impacta a transparência e a racionalidade da gestão pública.
Prestação de contas: o elenco das parcerias sem comprovação
A etapa final das parcerias é a prestação de contas. O MPC/PA solicitou à SEEL informações sobre a prestação de contas dos 20 termos de fomento de maior valor em 2022. No entanto, a Secretaria “permaneceu inerte e nada apresentou até a data do protocolo desta peça, mesmo após reiteração da solicitação”.
A única informação recebida foi um parecer interno referente à análise da prestação de contas de apenas dois termos (018/2022 e 040/2022). Embora isso sugira que houve prestação de contas dessas duas parcerias pelas OSCs, o MPC/PA não recebeu a integralidade dos documentos nem a comprovação de que essas ou quaisquer outras prestações de contas de 2022 foram devidamente analisadas, aprovadas ou, em caso de problemas, encaminhadas ao TCE/PA nos prazos legais.
Por Baía
O Impacto