CULTURA POPULAR: “VIRAR A CASACA”
No nosso português de cada dia, usamos a expressão “VIRAR A CASACA” para designar pessoas oportunistas e aproveitadoras, que se valem das chances que lhes parecem favoráveis para, sem qualquer vergonha, pudor ou escrúpulo, trocarem de lado exclusivamente em busca de vantagens pessoais.
Trata-se de desvio de conduta de gente rasa, sem ética ou princípios, de moral opaca, sem apreço pela palavra empenhada ou por compromissos antes assumidos, desde que obtenham com a troca qualquer ganho. Há sempre um componente de traição no que fazem, pois são capazes de “vender a mãe”, para a satisfação de suas particulares ambições ou alcance de benefícios, sejam eles materiais, sociais ou emocionais, ainda que modestos.
A origem dessa expressão remonta ao rei da Sardenha no Século XVIII, Carlos Emanuel III de Sabóia (1701 – 1773), que para proteger seu ameaçado patrimônio territorial das pressões da França e da Espanha, aliava-se a uma ou à outra ao sabor de suas conveniências – e para evidenciar isso mudava as cores da sua casaca, de acordo com as cores da bandeira do país com quem naquele momento se alinhava.
Essa troca constante das casacas por ele usada, passou a ser sinônimo de oportunismo, consagrando a expressão “VIRAR A CASACA”, lembrada sempre que presenciamos, mesmo quatro séculos depois, essa famigerada atitude interesseira em alguém que só demonstra interesse quando acredita que terá alguma coisa a receber em contrapartida.
Mas não foi somente a realeza que contribuiu para consolidar no Brasil essa expressão, sempre utilizada com escárnio em relação a quem troca de lado com a mesma rapidez com que a maioria troca de roupa. Para essa expressão idiomática, o futebol e a política também deram o seu contributo.
O valor cultural do futebol no Brasil é imenso e vai além da simples prática esportiva. Trata-se de uma paixão nacional que permeia a cultura, a identidade e a história do país, influenciando diversos aspectos da sociedade. É uma manifestação cultural que une pessoas de diferentes origens, criando um involuntário senso de irmandade, parte integrante da vida brasileira que influencia a moda, a música, a arte e especialmente a linguagem.
O futebol, que nos legou a expressão “ONDE A CORUJA DORME” (já abordada nesta série de crônicas divulgadas às terças-feiras), costuma tachar um torcedor que passa a simpatizar e até torcer pelo time rival como “vira casaca” – e esse é o preço que ele paga por essa prática rasteira.
O genial Chico Buarque, ao contrapor uma velha amizade à rivalidade clubística, deu uma força ao tema. O quilométrico título da música “ILMO SR. CIRO MONTEIRO OU RECEITA PRA VIRAR CASACA DE NENÉM”, é uma carta ao famoso cantor e compositor Ciro Monteiro, abordando a disputa de preferência entre dois famosos times de futebol, mas o compositor o faz de maneira bemhumorada, destacando a amizade e o respeito mútuo entre os dois amigos, situada acima e além de suas diferenças pessoais.
Chico é tricolor da gema e agradece a Ciro Monteiro, flamenguista doente, por um presente dele recebido: uma camisa rubro-negra. No entanto, ele brinca que o presente é “de grego”, uma expressão que tipifica uma dádiva que traz mais problemas do que benefícios. A música revela como Chico habilmente transformou a camisa rubro-negra (do Flamengo) em uma tricolor (do Fluminense), mostrando criatividade e lealdade ao seu time, para não incorrer na odiosa viração de casaca:
“AMIGO CIRO//MUITO EU TE ADMIRO//O MEU CHAPÉU TE TIRO//MUITO HUMILDEMENTE//MINHA PETIZ AGRADECE//A CAMISA QUE LHE DESTE//À GUISA DE GENTIL PRESENTE//MAS, CARO NEGO//UM PANO RUBRO-NEGRO// É PRESENTE DE GREGO//NÃO DE UM BOM IRMÃO//NÓS SEPARADOS//NAS ARQUIBANCADASTEMOS SIDO TÃO CHEGADOS//NA DESOLAÇÃO//AMIGO VELHO//AMEI O TEU CONSELHO//AMEI O TEU VERMELHO//QUE É DE TANTO ARDOR//MAS QUIS O VERDE//QUE TE QUERO VERDE//É BOM PRA QUEM VA/I/TER DE SER BOM SOFREDOR//PINTEI DE BRANCO O TEU PRETO//FICANDO COMPLETO O JOGO DE COR//VIREI-LHE O LISTRADO DO PEITO//E NASCEU DESSE JEITO//UMA OUTRA TRICOLOR”…
Por fim, a política disciplinou a prática da mudança de lado, ao regulamentar as regras para que parlamentares insatisfeitos com seus partidos políticos, se bandeassem para o aconchego dos que ontem eram adversários, instituindo as “janelas partidárias” a cada ano eleitoral e desde que ultimada a mudança seis meses antes do dia do pleito, dentro do prazo de 30 dias para o trânsfuga pular fora do barco, sem risco de perder o mandato.
Tal regra veio no bojo da reforma eleitoral de 2015 e se consolidou como uma medida segura para a troca de legenda, depois do TSE assentar que o mandato pertence ao partido e não ao candidato eleito. Estabeleceu também a chamada “fidelidade partidária” para cargos nas eleições proporcionais (deputados estaduais, federais e vereadores). E como toda regra tem exceção, foi permitido também que fora da “janela partidária”, o político pode “virar a casaca” nas hipóteses de justa causa, entendida esta como a discriminação pessoal ou o desvio do programa partidário, sob pena de perda do mandato.
Na vida real não há janelas partidárias e salvo raríssimas exceções, a fidelidade pode e deve ser esperada e casos específicos, mas não é exigível de quem quer que seja, pois vai do caráter de cada um manter-se firme em seus compromissos, procedimentos, condutas e ideologias. Somos às vezes surpreendidos por infidelidades, até de pessoas aparentemente respeitáveis e insuspeitas, que sem justificativas plausíveis decidem “VIRAR A CASACA”, buscando avidamente alcançar suas metas individuais a qualquer custo, mesmo incorrendo na conduta desonrosa e rasteira da falsidade e da traição.
O Impacto