Cobrança de honorários pela União viola regras processuais
Em meio aos debates legislativos sobre o novo Código de Processo Civil, despertou minha atenção os que tratam do direito dos advogados de receberem honorários. Parecia, até então, uma questão elementar. Mas o problema era mais profundo e obscuro que imaginava. A cobrança de honorários pela União atenta contra as garantias fundamentais que protegem o patrimônio do povo brasileiro e subverte o esquema de divisão de poderes estabelecidos na Constituição Federal.
O patrimônio é um dos instrumentos de realização da personalidade humana. A Constituição Federal, que consagrou a dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos da República (artigo 1º, III da CF), cercou-a de direitos e garantias, seja numa perspectiva individualista, seja numa perspectiva social-redistributiva, que consagram bens e obrigações suscetíveis de valoração econômica que constituem o arcabouço jurídico do patrimônio.
A propriedade (artigo 5º, XXII e XXIII CF), a herança (artigo 5º, XXX da CF), os direitos patrimoniais do autor (artigo 5º, XXVII da CF), somente para citar alguns direitos do rol dos direitos fundamentais, são direitos patrimoniais cuja estruturação não pode sequer ser reduzida ou suprimida por lei, porque o povo brasileiro, em decisão soberana da Assembleia Constituinte, os colocou a salvo das maiorias legislativas que, de tempos em tempos, se formam no Congresso Nacional.
A Constituição Federal sinalizou que o patrimônio tem uma função de permitir o desenvolvimento da autonomia privada e a plena realização da personalidade humana[1], o que justifica inclusive a proteção dos mais pobres, mediante a proteção da teoria do patrimônio mínimo ou os programas de distribuição de renda do Governo Federal. Sem patrimônio, não há dignidade.
Como a sociedade brasileira escolheu ser regida pela livre iniciativa e pelos valores sociais do trabalho, que são, ao mesmo tempo, um fundamento republicano e princípios da ordem econômica (artigo 1º, IV e artigo 170, caput, da CF), estado e cidadãos devem se submeter à vontade da Constituição.
O problema dos honorários dos advogados públicos, na dogmática dos direitos fundamentais, se coloca justamente diante do completo desrespeito da União sobre os direitos fundamentais dos brasileiros, em especial sobre as regras que disciplinam a atividade financeira do Estado, ou melhor, como ele pode obter dinheiro diante dos direitos e garantias individuais e do espaço reservado à livre-iniciativa.
Na Idade Média, João Sem-Terra, Rei da Inglaterra, assinou a Magna Carta, conferindo aos ingleses o direito de serem tributados apenas mediante o consentimento do Parlamento. No Brasil, a Constituição da República proibiu o Estado de obter dinheiro, intervindo na ordem econômica ou investindo contra o patrimônio das pessoas, sem lei que o autorize.
No entanto, a União, no afã arrecadatório para cumprir o superávit primário, age à míngua de qualquer autorização legal e investe contra a propriedade de particulares com os meios mais agressivos de execução forçada, como a penhora, a adjudicação e ou até mesmo a alienação de bens privados em hasta pública, para cobrar, em seu próprio nome, os honorários dos advogados da União.
Os meios típicos de constrição encontram, é verdade, previsão legal nas regras da execução civil do CPC. Todavia, não tem a mesma sorte a pretensão da União: a cobrança em favor de si própria dos honorários de advogado está completamente fora do desenho constitucional dado ao Estado para obter recursos, que prescinde, em qualquer caso, de lei.
Com efeito, a atividade financeira do Estado[2], que consiste na obtenção de dinheiro para custear as necessidades públicas, está plenamente submetida à Constituição, que disciplina a atuação desse ente todo poderoso — o Estado — nas relações e interferências sobre as atividades econômicas particulares, atrelando-as sempre à legalidade, que representa a primeira garantia contra o arbítrio.
O Estado pode obter dinheiro quando explora atividades econômicas, que estão reservadas aos particulares por força da livre-iniciativa, se necessário for para atender imperativos de segurança nacional ou relevante interesse público, conforme definido em lei (artigo 173 da CF).
O Estado também pode fazer dinheiro exigindo dos particulares tributo sobre fatos de repercussão econômica (artigo 150, I da CF), ou mesmo mediante o endividamento público, pela emissão de títulos, pela realização de operações de crédito ou concessão de garantias (artigo 48, II da CF).
É sempre a lei que permite o Estado auferir receita, seja pela exploração direta de atividades econômicas ou de seu patrimônio (receitas originárias), seja mediante gravames impostos à atividade dos particulares ou pelo endividamento público (receitas derivadas). A atividade financeira do Estado, por razões que chegam a ser óbvias diante do seu poder em face do cidadão, está estritamente e inexoravelmente atrelada à legalidade.
No entanto, passadas mais de duas décadas desde a entrada em vigor da Constituição Federal de 1988, a União retirou milhões de reais do patrimônio dos brasileiros à revelia das exigências constitucionais: trata-se da apropriação dos honorários dos advogados da União devidos nas ações que tramitam na Justiça Federal e nas ações previdenciárias do INSS e execuções da Fazenda Nacional que tramitam na Justiça dos Estados.
Conquanto não se desconheça que há jurisprudência[3] que entende que os honorários de advogado devem integrar o patrimônio da Administração Pública, não há qualquer lei que autorize a União a fazê-lo ou que lhe atribua a titularidade da verba. Na verdade, a única lei que existe sobre o assunto reconhece, literalmente, os honorários como direito autônomo do advogado (artigo 23 da Lei 8.906/94), sem fazer qualquer distinção entre advogados públicos e privados.
A relevância dessa constatação implica a impossibilidade de cobrança de honorários de advogado daquele que sucumbiu numa ação judicial contra a União, suas autarquias e fundações por ilegitimidade de parte e pela violação ao devido processo legal constitucional.
Explicarei melhor.
Os honorários de advogado são verba de caráter alimentar e se destinam a remunerar o trabalho daquele que exerceu, no processo, uma função essencial à Justiça. Sua natureza é eminentemente processual. Não decorre da exploração direta de atividade econômica ou da exploração do próprio patrimônio do Estado. Não decorre de exações sobre a atividade ou o patrimônio particular. Não decorre de obrigações creditícias. O fato gerador dos honorários é a causalidade: são pagos por quem deu causa à instauração de processo contra o ente federal. Honorários de advogado, portanto, decorrem do sistema processual e são um traço peculiar da profissão de advogado quando atua perante o Poder Judiciário, sem paralelo em outros ofícios.
Com efeito, quando se trata de um particular, a verba deve ser paga a seu advogado, incorporando-se a seu patrimônio, sobre o qual adquire a disponibilidade econômica e jurídica desse dinheiro.
Quando se trata de um ente público, a verba também deve ser paga ao advogado, como já ocorre com os jetons (artigo 1º da Lei 9.292/96), que constituem, segundo a Controladoria-Geral da União[4], honorários correspondentes à “remuneração percebida por servidores públicos federais em razão da participação como representantes da União em Conselhos de Administração e Fiscal ou órgãos equivalentes de empresas controladas direta ou indiretamente pela União”.
Ora, o órgão de controle e transparência do Governo Federal não vê qualquer empecilho no recebimento de honorários por servidores federais. Resta saber porque os advogados públicos não recebem os honorários que decorrem do seu próprio esforço e as consequências processuais desse estado de coisas.
Honorário significa honrar o trabalho. Por ter natureza alimentar, num sistema de divisão dos ônus de sucumbência processuais, sua percepção é incompatível com as receitas do ente público. Honorários, no direito financeiro, são ingressos, que correspondem “à entrada de dinheiro que ulteriormente será restituído, como ocorre no empréstimo e nos depósitos”[5].
Por isso, não basta que a lei atribua os honorários à própria União para resolver a atual impossibilidade de sua cobrança por ilegitimidade ativa ad causam. A lei apenas poderia conferir à Fazenda Pública a qualidade de substituta processual na execução da verba (artigo 6º do CPC), cuja destinação, por essência, é incompatível com a atividade financeira da União, cujas origens estão no texto da Constituição.
É oportuno registrar que, no julgamento das Reclamações 5.133, 7.181 e 13.195, o Supremo entendeu que os advogados públicos federais estão abrangidos pela ressalva do parágrafo único do artigo 14 do CPC, que diz, literalmente, o seguinte: “ressalvado os advogados que se submetem exclusivamente aos Estatutos da OAB (…)”.
Mais que decidir um caso concreto sobre o afastamento de multa pessoal aplicada a um procurador federal, o Supremo deixou bem claro que as posições processuais do ente público e de seu advogado são distintas. E se são diferentes, há um plexo de direitos e deveres que decorrem dessas posições e não se confundem, a exemplo da titularidade da verba honorária.
Logo, para auferir honorários como receita, que permanece nos cofres públicos em caráter definitivo, necessário seria mudar sua natureza, como fizeram os militares, ao editar o Decreto-lei 1.025/69, criando o encargo legal, no lugar dos honorários, nas execuções fiscais propostas pela Fazenda Nacional. Em outras palavras, para dar licitude à destinação dos honorários do advogado da União à própria União é preciso acabar com os honorários e transformá-los em outra coisa, num modelo que terá reflexos sobre toda a Federação, por se tratar de matéria da competência exclusiva da União (artigo 22, I da CF).
Seja como for, diante do Direito posto, a União não pode cobrar e arrecadar honorários em seu próprio nome por um problema de ilegitimidade ativa ad causam, conforme arts 6º, 295, II, 267, VI, 475-L, IV, 598 e 741, III do CPC.
Em âmbito federal, há outra subversão constitucional. A União, por entender que os honorários são uma res nullius (Parecer GQ 24/94 da AGU), sacrifica o patrimônio do particular, transformando-o, num passe de mágica, em “coisas de ninguém”, quando dele se apropria a título de honorários de advogado. E o pior, essa engenharia jurídica, contou com a aprovação do presidente da República da ocasião, Itamar Franco, na forma do artigo 40 da Lei Complementar 73/93.
Res nullius são coisas sem dono. Como não pertencem a ninguém, adquire sua propriedade o primeiro que delas se apossar (art. 1263 do Código Civil). É curioso e, no mínimo, ilegal e desrespeitoso chamar o dinheiro e os bens dos brasileiros, no montante que se sub-roga na condenação na verba honorária, de coisas sem dono. Nessa lógica perversa, como chegou primeiro, a União, mesmo sem autorização legal, avança contra a propriedade das pessoas, que deveria ter tratamento como um direito humano fundamental, mas as transforma “coisas de ninguém” para dela se apossar e incrementar os números do superávit primário.
Embora o recente Parecer 1/2013/ORLJ/CGU/AGU pretendesse superar a suposta adespotia do dinheiro cobrado pela União a título honorários, dizendo que ele não é mais coisa de ninguém, não conseguiu dizer de quem era até o presente momento porque concluiu que a matéria depende de lei. Na verdade, disse que a única regra legal que existe sobre o tema, o artigo 23 da Lei 8.906/94, não tem incidência sobre os advogados públicos porque o artigo 4º da Lei 9.527/97 “parece ter pretendido afirmar”[6] justamente essa exclusão.
Minha preocupação, no entanto, debruça-se sobre outro aspecto bastante turvado pelo embate da União contra seus advogados espoliados: trata-se dos direitos fundamentais do executado, em especial do cidadão condenado a pagar as despesas decorrentes do ônus de sucumbência, em face da cobrança de honorários pela Fazenda Nacional.
Nesse contexto, o raciocínio elíptico do Parecer 1/2013/ORLJ/CGU/AGU não melhorou a situação. Mesmo não querendo mais tratar o dinheiro extraído do patrimônio particular como coisas de ninguém, a manifestação oficial conclui que lei é necessária para atribuir a titularidade desses haveres à União.
A opinião oficial do Advocacia-Geral da União não poderia ter sido mais contundente para ratificar a minha tese: não existe lei que ampare a apropriação dos honorários de advogado pela Administração Pública e, consequentemente, não existe autorização legal para investir contra o patrimônio dos particulares e obter dinheiro para os cofres públicos. A necessidade de lei reconhecida pelo parecer da AGU representa a assunção oficial, pelo órgão jurídico do Poder Executivo, da violação do devido processo legal constitucional. A União age, inclusive sobre direitos fundamentais, à revelia da lei.
Ora, ninguém deveria ser privado de sua liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal (artigo 5º, LIV da CF). Desde a Idade Média, quando João Sem Terra assinou a Magna Carta, cujo nome é utilizado por nós como sinônimo de Constituição, nasceu uma das mais amplas e relevantes garantias do direito constitucional, que vem sendo desrespeitada, sub-repticiamente, pelo Governo Federal em matérias de honorários, como quem repete um mantra, afirmando que é seu algo que nunca o foi.
O vício que infirma a execução dos honorários pela União relaciona-se também com o devido processo legal qualificado, com o devido processo constitucional, que se refere não apenas à observância de um procedimento, mas a todo o esquema de estruturação do Estado e regramento do poder. Segundo Gilmar Ferreira Mendes[7], “o princípio do devido processo legal possui um âmbito de proteção alargado, que exige um fair trial não apenas dentre aqueles que fazem parte da relação processual, ou que atuam diretamente no processo, mas de todo o aparato jurisdicional, o que abrange todos os sujeitos, instituições e órgãos públicos e privados, que exercem, direta ou indiretamente, funções qualificadas, constitucionalmente, como essenciais à Justiça”.
Em toda Constituição Federal, a atividade financeira do Estado está sempre atrelada à lei. Leis são expressão da soberania popular e constituem a primeira barreira ao arbítrio dos governantes, que, nessa matéria, agem, confessadamente, à sua revelia, investindo contra o patrimônio de particulares para cobrar aquilo que não é e não pode ser seu: os honorários dos advogados da União.
Pareceres que valem como Decretos. Propriedades que se tornam coisas de ninguém. Em matéria de honorários de advogado, não foram poucas as ficções jurídicas utilizadas para submeter a Constituição à conveniência dos governantes no poder. Se a Magna Charta Libertatum limitava o poder do rei com o due process of law, a Constituição Federal de 1988 deve limitar o poder da União pelo devido processo legal estabelecido em seu próprio Texto.
A presidente da República tem agora a oportunidade de inovar. Se aprovar o Parecer 1/2013/ORLJ/CGU/AGU, reconhecerá oficialmente que a União desrespeita os direitos e garantias mais fundamentais dos brasileiros para fazer dinheiro. Se não o aprovar — o que esperamos —, pode determinar a aplicação do Estatuto da OAB sobre a questão, o que deveria já estar ocorrendo por se tratar de lei federal, ou editar medida provisória destinando a verba a seus titulares e com isso evitar uma avalanche de ações de repetição de indébito contra a Fazenda Nacional, por ter cobrado, por tanto tempo, honorários dos advogados da União em seu nome, sem autorização legal e com base em argumentos jurídicos frágeis.
Portanto, por afronta à garantia do devido processo legal constitucional e às regras processuais em vigor, em especial os artigos 6º, 282, II, 295, II, 267, VI, 475-L, II e III 598 e 741, II e III CPC, são inexigíveis os honorários de advogado contra os particulares condenados a suportar os ônus de sucumbência nas ações envolvendo a Fazenda Pública Federal, uma vez que a sua cobrança pela União, em nome próprio, carece de base legal. Felizmente, ainda está em vigor o inciso II do artigo 5º da Constituição Federal, segundo o qual “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”.
[1] SAMPAIO, José Adércio Leite; NARDY, Afrânio. “Direito fundamental de propriedade, direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e o princípio constitucional da precaução”. In: FILOMENO, José Geraldo Brito; WAGNER JUNIOR, Luiz Guilherme da Costa; GONÇALVES, Renato Afonso (Orgs). O Código Civil e sua interdisciplinariedade – os reflexos do Código Civil nos demais ramos do Direito. Belo Horizonte: Del Rey, 2004, p. 230.
[2] TORRES, Ricardo Lobo. Curso de direito financeiro e tributário. 18ª ed., Rio de Janeiro: Renovar, 2012, p. 6.
[3] STJ. AgRg no Ag 824399 / GO. Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima. 5ª Turma, DJU 21/05/2007
[4] Disponível em: <http://www.portaltransparencia.gov.br/servidores/SAIBA%20MAIS.pdf> Acesso em 18 de novembro de 2013.
[5] TORRES, Ricardo Lobo. Curso de direito financeiro e tributário. 18ª ed., Rio de Janeiro: Renovar, 2012, p. 185
[6] O art. 23 da Lei nº 8.906/94 encontra-se no título VI do Estatuto da OAB, cuja incidência sobre os advogados públicos não foi afastada pelo art. 4º da Lei nº 9.527/97 que se referiu, expressamente, ao título V do Estatuto.
[7] MENDES, Gilmar; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 3ª ed., São Paulo: Saraiva, 2008, p. 642
Fernanda Ferraz é advogada. Especialista em direito processual civil.
Fonte: Revista Consultor Jurídico