Bill Clinton critica espionagem dos EUA à Petrobras
Em visita ao Rio de Janeiro para o primeiro encontro da fundação Clinton Global Initiative (CGI) na América Latina, o ex-presidente americano Bill Clinton critica, em entrevista exclusiva ao GLOBO, o rastreamento das comunicações da Petrobras: ‘Não deveríamos levantar informação econômica sob o pretexto de segurança’.
Esta é a primeira edição da CGI na América Latina. O senhor escolheu o Brasil e o Rio. Por quê?
Eu já queria vir à América Latina faz algum tempo. Mas, quando Hillary foi convidada a assumir a Secretaria de Estado, me pediram para não fazer estes eventos. São muitos os patrocinadores. Não queríamos dar a impressão de que alguma grande empresa poderia influenciar a política externa americana. Só aqui são mais de uma dúzia de patrocinadores latino-americanos e oito americanos. Simplesmente esperamos alguém manifestar algum tipo de interesse e o prefeito do Rio, Eduardo Paes, se mostrou o mais empolgado. Ninguém parecia estar tão interessado quanto ele, então viemos para cá. Também achei importante vir ao Brasil por conta do progresso que houve no país. Veja, por exemplo, a questão das manifestações. Nos últimos anos, 70 milhões de pessoas deixaram a extrema pobreza na América Latina. Destes, 50 milhões chegaram à classe média. E pouco mais de metade destes 70 milhões são brasileiros. Claro, ainda há muitos desafios mas, aqui no Brasil, sinto uma predisposição a trabalhar em cooperação.
Há dois anos, fui convidado a uma reunião dos produtores de etanol brasileiros. Disse que viria com prazer mas perguntei por que me queriam. Porque, eles me responderam, sentem contribuir indiretamente para as mudanças climáticas. Poucos países usam tanto etanol de cana, em oposição à gasolina, quanto o Brasil. É o biocombustível mais limpo que existe. Mas quanto mais plantam cana, mais empurram as plantações de soja e a pecuária na direção da floresta, que vai sendo desmatada. Um tempo depois, participei de uma conferência de sustentabilidade em Manaus. Estavam todos lá: governo, ONGs, grandes empresas, agropecuaristas, índios, e eles estavam espalhados pela sala, misturados. Conversavam. Reconheciam que tinham um problema complexo por resolver e que, sem cooperação, nada sairá. A economia brasileira cresce e, no continente, os únicos locais que tiveram grande queda na desigualdade de renda foram Brasil e México. As manifestações são um resultado natural deste processo recente.
Conforme as pessoas começam a deixar a pobreza, ela vão querer mais. Querem governos transparentes, querem o fim da corrupção, querem oportunidades de melhorar a própria vida. É saudável. Veja a diferença entre o Brasil e a Síria. Perante outros países do Oriente Médio, a Síria era um lugar mais secular, com mais espaço para mulheres. Evidentemente que, para nós americanos, o fato de que tinham uma aliança com o Irã e com o Hezbolá, que permitiam o fluxo de armas para o Líbano, nos incomodava. Mas, para a população síria, não era um país particularmente ruim. Havia espaços. E o povo foi às ruas pedindo mais liberdade, mais oportunidades, justamente porque havia este espaço. O que ocorreu lá e o que ocorreu aqui? O presidente Bashar al-Assad enviou o exército e, de repente, tinha uma guerra civil com a qual lidar. A presidente Dilma Rousseff, por sua vez, disse ‘vocês têm razão, vamos tentar descobrir como resolver os problemas’. É por isso que estamos no Brasil. Falo como alguém de fora que acompanha a situação. Tanto as manifestações quanto a maneira como o governo respondeu a elas são, a longo prazo, indícios positivos.
O Brasil fez grandes progressos a respeito da distribuição de renda, mas educação ainda é um problema. Os EUA viveram problemas semelhantes, porém houve uma grande transformação nas décadas de 1950 e 60. Há lições para nós na experiência americana?
Vocês podem aprender com nossos sucessos mas também com o que fizemos errado. Após a Segunda Guerra Mundial, tivemos muita sorte. A Europa e o Japão estavam dizimados e nós éramos a potência industrial que crescia. Aprovamos a GI Bill, uma lei que garantia a todo soldado que retornava o direito de cursar a universidade. Era muita gente com ensino superior, o que melhorou a qualidade do trabalhador médio, o que fez crescer ainda mais a economia. Depois de um tempo, porém, começou a desandar. O custo do ensino universitário está aumentando mais rápido do que a inflação. Durante meu governo, aprovei o maior investimento em bolsas de estudo desde a GI Bill. Mas isso foi embora após cinco anos, por conta do aumento de custos do ensino e da inflação.
O presidente Barack Obama fez um novo programa. A inflação comeu novamente os incentivos. O resultado é que caímos de primeiro para décimo segundo no mundo em percentual de jovens com ensino universitário. Agora estamos buscando soluções com tecnologia e incentivos às universidades para que acolham mais alunos de baixa renda. Os governos Lula e Rousseff tentam fazer algo que nós jamais tentamos: dar às universidades particulares incentivos fiscais proporcionais ao número de alunos de baixa-renda. Isso funciona porque, por um lado, aumenta o número de matrículas e, por outro, não incentiva o aumento das mensalidades. Acho que vocês precisam de um misto das políticas que já têm e das nossas políticas de distribuição de bolsas para pobres e classe média. É preciso também uma política para pessoas na casa dos 30 e 40 anos voltarem à escola, pois estes ainda têm uma longa vida profissional pela frente.
A tecnologia de informação é muito importante para o crescimento econômico. E a conectividade tem aumentado não só no Brasil como na região. Há, então, uma troca por menos privacidade? Governos e grandes empresas têm acesso cada vez maior a informações pessoais.
Nos EUA, muitos se preocupam com o sigilo de endereços e identidade que podem ser usados em campanhas de marketing. Ainda assim, o benefício do acesso à tecnologia é extraordinário, sobretudo para os mais pobres. Um estudo mostrou que, na África, para cada incremento de 10% na penetração de celulares nos países mais pobres, o PIB aumenta em 0,6%. Quando o tsunami atingiu a Ásia e muitos pescadores perderam tudo, eu trabalhava para a ONU (como enviado especial das Nações Unidas para os países afetados pelo tsunami). Prometemos que todos voltariam a trabalhar no mar. Além de darmos a eles um barco, demos também um celular. Em média, o rendimento destas pessoas cresceu 30%. Pela primeira vez ninguém poderia enganá-los a respeito do preço dos peixes.
Todos os países terão de trabalhar em seus protocolos de privacidade. Nos EUA, o governo tem a permissão de monitorar toda ligação e toda troca de e-mail desde que seja em busca de padrões. O conteúdo só é violado se percebemos que aquela pessoa tem conexões regulares com suspeitos de terrorismo. Ainda assim, nestes casos tem de ir ao tribunal pedir aprovação para ouvir ou ler a conversa. O problema é que alguém bom em computadores pode quebrar os códigos, qualquer código. Edward Snowden fez isso. Alguns países europeus têm a mesma política, porém gastam mais dinheiro para proteger a informação. É mais difícil para o governo violar a privacidade dos cidadãos. No caso do Brasil, o incômodo maior foi com o acompanhamento das conversas telefônicas da presidente Rousseff.
E também da Petrobras.
Sim, há o caso da Petrobras. Em primeiro lugar, não deveríamos levantar informação econômica sob o pretexto de segurança. Não com um aliado. Isso só deveria ocorrer quando há um acordo de transparência, que é outra coisa. E, nestes casos, falamos abertamente um para o outro o que ocorre. Mas vamos à questão da segurança. Precisamos ter uma conversa clara, séria e aberta sobre isso, explicando por que a Big Data pode evitar um ataque terrorista. Eu tenho informação concreta de que salvamos vidas rastreando padrões de conversas por telefone e por e-mail. Muita gente em muitos países deseja que isso ocorra. O tema gerou controvérsia, mas muitos governos desejam que seus serviços de inteligência usem Big Data. Agora que o assunto veio à tona, o que devemos fazer é explicar às pessoas o que é a capacidade de rastreamento de informações, dizer qual é a política. Elas precisam ao menos saber, mesmo que não concordem. O problema é a falta de transparência e a falta de garantia de que usamos todos os meios tecnológicos disponíveis para proteger a privacidade. Há muito mais que pode ser feito.
Ontem, a OMC fechou seu primeiro acordo em quase 20 anos de existência da organização. É o suficiente?
Soube hoje (domingo) de manhã que foi fechado o acordo, ainda não conheço os detalhes. É importante construir redes de comércio e investimento e fazer isso de maneira que ajude a todos. Há muitos que acreditam que a globalização só ajuda os ricos. Em alguns lugares, só eles mesmo foram beneficiados. Mas veja a China. Nos últimos 35 anos, desde a abertura em 1978, 500 milhões de pessoas deixaram a extrema pobreza. Nada parecido com isso aconteceu na História.
Agora estamos entrando numa era em que não podemos ter sistemas de comércio ou financeiro a nível global se não houver algum pacto para preservar o meio-ambiente, proteger a igualdade social e dar oportunidades aos pobres de fazerem parte da classe média. Estamos em um novo estágio, com o aquecimento global, a grande desigualdade de renda e com a crise de falta de empregos, sobretudo para jovens. Um dos motivos de a Primavera Árabe ter eclodido no Cairo é que eles deram acesso ao ensino universitário para os jovens. O sistema universitário do país forma 400 mil jovens por ano. Mas a economia não consegue gerar 400 mil vagas para graduados. Fizemos a globalização financeira e agora tentamos fazer a globalização comercial. Mas precisamos ter um pacto em questões sociais e de mudanças climáticas para permitir um crescimento sustentado, balanceado e justo.
O senhor mencionou, quando estava no governo, que era favorável a um assento permanente para o Brasil no Conselho de Segurança da ONU.
Ainda acho isso. Sempre achei. Tanto Brasil quanto Índia. Os atuais membros permanentes vão resistir, mas a pressão irá aumentar para que países do G-20 tenham seu lugar. E a mudança mínima necessária é um lugar permanente para a América Latina e outro para a Ásia não chinesa. São Brasil e Índia. Se você pensa em como evolui o PIB global, se pensa como está distribuída a população ou mesmo como as decisões vêm sendo tomadas, fica muito difícil justificar a atual formação do Conselho. Veja, o século XXI será dominado por redes. A questão é se serão redes positivas ou negativas.
A al-Qaeda e suas afiliadas são um exemplo negativo. Funcionam como uma franquia. Redes permitem que organizações tenham menos níveis hierárquicos. Há um conflito, hoje, entre aqueles que desejam concentrar o poder e aqueles que aceitam dividi-lo. Se queremos uma cultura democrática, livre, aberta e diversificada, isso exigirá que tenhamos um processo decisório compartilhado. Se queremos compartilhar a responsabilidade pelo futuro, se desejamos construir uma comunidade, tudo o que Nelson Mandela representava, não há outro caminho. Expandir o Conselho de Segurança é, tanto do ponto de vista simbólico quanto do prático, importante. É claro que o México e o Japão ficarão incomodados. Mas temos de fazer. É inconcebível que fiquemos mais cem anos com a ONU organizada como está, com apenas cinco países com poder de veto. Ou teremos de expandir o Conselho ou precisaremos diminuir o poder de veto.
Fonte: O Globo