Auditorias do Ministério da Saúde apontam irregularidades envolvendo medicamentos em 23 capitais
Superfaturamento, venda de remédio a falecidos, “empréstimo” de medicamentos entre hospitais, direcionamento de licitação, sobrepreço que chega a 10.000%, estoques sem monitoramento e até uso de talidomida sem controle. Levantamento do GLOBO em auditorias e fiscalizações do Denasus (Departamento Nacional de Auditoria do SUS) nas capitais brasileiras mostra problemas na área de medicamentos em praticamente todas elas: em 23 das 27 capitais, relatórios de 2013 e 2014 do órgão de controle interno do Sistema Único de Saúde (SUS) apontaram falhas de gestão ou indícios de fraudes no setor. O GLOBO também levantou exemplos de fraudes e má administração envolvendo uso de remédios nos Ministérios Públicos federal e estaduais, em Defensorias Públicas e na Polícia Federal.
Os dados fazem parte de uma série de reportagens que começa hoje, sobre problemas em políticas de medicamentos no Brasil. Mais que os números, o quadro revela o sofrimento de pacientes que dependem do SUS: a principal consequência das irregularidades – sejam causadas por má-fé ou por falha de gestão e controle – é a falta de remédio para quem precisa.
A saúde pública foi, segundo sondagem da Diretoria de Análise de Políticas Públicas da Fundação Getúlio Vargas (DAPP/FGV) em seis regiões metropolitanas, o setor de maior insatisfação da população (79% dos entrevistados), junto com a segurança (80%).
A enfermeira Regina Gonçalves, de 36 anos, que fez transplante de rim há 14 anos, não conseguiu, mês passado, no DF, onde mora, a azatioprina de 50mg e a ciclosporina. Os dois são imunossupressores e, segundo a nefrologista Maria Célia Carvalho, servem para evitar rejeição ao transplante. Funcionária do Hospital Universitário de Brasília (HUB), Regina conta que, por lá, também há dificuldades:
– Em julho, paguei R$ 100 na azatioprina. No hospital, mês passado, pedi a uma moça a ciclosporina de 100 mg que o pai dela, que estava morrendo, não ia mais tomar, e dei a um paciente de 18 anos.
O HUB reconhece não ter em estoque a ciclosporina de 100mg: “Mesmo com as notas de empenho e três solicitações de compra nos últimos três meses, a empresa fornecedora não entregou o produto”. Segundo o HUB, é o único remédio que o hospital não tem em estoque. Já a Secretaria de Saúde do DF diz que “não houve falta de abastecimento de ciclosporina 25mg e 50mg em julho.”
A importância da Assistência Farmacêutica fez com que, do orçamento do Ministério da Saúde, o percentual para a área fosse de 5,8% em 2002 a 14% em 2013, quando foram executados R$ 11,8 bilhões. Este ano, estão previstos R$ 12,4 bilhões.
Nas auditorias e fiscalizações do Denasus – que em 2013 foram 1.270, sendo 69% pedidas pelo próprio ministério -, venda, para falecidos, de remédios do programa Farmácia Popular é um dos casos. Há exemplos em Florianópolis, Rio, Palmas e Goiânia. Na capital catarinense, ao constatar em 2013 concessão “com data posterior ao óbito do usuário, caracterizando uso indevido de CPF”, o Denasus foi até a filha dele, que declarou “ter sido vitimada por golpe (…) conduzido por profissionais do estelionato”. Foram analisados casos parecidos de 2011 a 2012.
O Denasus tratou, ainda, de irregularidades nos hospitais federais do Rio – que, de 2009 a abril de 2011, receberam, para aquisição de insumos médico-hospitalares e medicamentos, R$ 343,3 milhões. Em auditoria de julho de 2013, no Hospital Federal do Andaraí, o órgão de controle cita a Controladoria Geral da União (CGU) para afirmar que, “a partir de impropriedades/irregularidades foi constatado prejuízo potencial de R$ 12.660.572,32” em aquisições de insumos e medicamentos.
Segundo o Ministério da Saúde, as auditorias no Rio apontaram “proposição de ressarcimento de R$ 37,3 milhões relacionados à contratação de serviços continuados e aquisição de medicamentos, entre outros. Desse valor, R$ 4,1 milhões se referem a superfaturamento e falta de controle em relação a insumos e medicamentos.”
No Piauí, irregularidades incluem até controle inadequado de talidomida, medicamento que teve o uso como sedativo interrompido no país após se detectar que, em grávidas, causa deformidades no feto. Ana Tércia Siqueira, de 45 anos, busca talidomida, por conta da hanseníase, no Centro Maria Imaculada Ação Social Arquidiocesana, auditado pelo Denasus em Teresina em 2013. Nunca foi orientada lá:
– A maioria dos medicamentos, a gente nem sabe o nome, quer é matar a doença.
Segundo a Fundação Municipal de Saúde de Teresina, em 2013, o Piauí iniciou controle de concessão da talidomida. No Maria Imaculada, “o fornecimento de preservativo foi normalizado em 2014”, e um farmacêutico, contratado em julho.
Em abril, a Operação Fidare, da PF, cumpriu 113 mandados de prisão preventiva e de busca e apreensão em cidades do MT e de Goiás. Os mais de 30 presos (hoje soltos), entre servidores, secretários e um ex-prefeito, são acusados de esquema com mais de 10 empresas. Estima-se desvio de R$ 2,5 milhões de 2011 a 2013, na área de insumos e remédios.
– As empresas vendiam antecipadamente ao poder público, recebiam a verba, entregavam os produtos, e só depois era montada a licitação – conta o delegado da PF Adriano Junqueira, responsável pela operação.
Na Bahia, o MPF ajuizou este ano ação civil por improbidade administrativa contra um ex-prefeito de Jequié – por fraudes que incluíram sobrepreço de mais de 10.000% para alprazolan (ansiolítico); e de 355% para acarbose 50 mg, para diabetes.
Sobre a venda de remédio a falecidos, o diretor de Assistência Farmacêutica do ministério, José Miguel do Nascimento, diz que em 2011 o Farmácia Popular passou a cruzar os CPFs com o Sistema Nacional de Óbitos:
– Desde 2011, 865 farmácias foram descredenciadas; 636, por irregularidades.
Medicamento por voto levou à cassação, mas prefeito voltou
Vinte anos depois de ter tentado pela primeira vez se tornar prefeito de Pindaré-Mirim, no Maranhão, o médico Walber Pereira Furtado (PR-MA), hoje com 58 anos, venceu a eleição em outubro de 2012. Em dezembro do mesmo ano, o Tribunal Regional Eleitoral (TRE-MA) julgou procedente o Recurso Contra Expedição de Diploma (RCED), por prática de captação ilícita de sufrágio (compra de voto) e abuso de poder econômico.
Por cinco votos a um, os mandatos de Walber e do vice-prefeito Aldemir Lopes Fonseca foram cassados. No entanto, uma mudança de entendimento no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) considerou que o recurso era inconstitucional. Assim, Walber e Fonseca continuam à frente da prefeitura, que até esta semana não tinha telefone.
A ação contra Walber e o vice foi ajuizada, pela coligação adversária, no TRE-MA logo depois da diplomação. Acusava Walber de doar medicamentos e de usar o receituário dos hospitais onde trabalhava para atender os eleitores em troca de votos.
Único médico legista da região – que engloba, além de Pindaré, Santa Inês e Santa Luzia, distantes 5,9km e 51,9km, respectivamente, do município onde foi eleito -, quando se tornou candidato, Walber se desligou das atividades em Pindaré, mas continuou exercendo a Medicina nas duas cidades.
– O Walber é clínico geral, é o único legista da região, é médico há 30 anos. Ele deu receita para paciente que sempre tratou, e já tomava o remédio, que salvo engano era controlado. Ele se desincompatibilizou da atividade em Pindaré, mas não nas outras cidades. E aí as pessoas pediam para serem atendidas – explica Eliederson Souza dos Santos, procurador geral do município e que, durante a campanha, atuou como advogado da coligação do prefeito.
De acordo com Santos, que disse não ter encontrado Walber para ser ouvido pelo GLOBO, uma testemunha chegou a informar que “precisava da receita” e que o então candidato “não pediu voto”:
– Foi um equívoco falar que ele distribuía remédio. E chega a ser risível a alegação de compra de voto.
De acordo com a decisão do TSE, ação teria que voltar para a 43ª Zona Eleitoral do Estado do Maranhão. A explicação do tribunal é que quando o caso é de compra de voto deve-se apresentar uma Ação de Impugnação de Mandato Eletivo e não um recurso. Por conta disso, o caso envolvendo o prefeito e o vice deve ser julgado de novo.
Fonte: O Globo