Isenção tributária para igrejas: Para eles o céu; para nós, o inferno!
A sociedade brasileira está dividida entre os que a sustentam e os que são por ela sustentados. Há provas disso em todos os poderes e a cada dia surgem novas. A mais recente é a redação final da Medida Provisória 668, aprovada pelo Congresso e encaminhada à sanção da presidente da República, que deve decidir sobre o assunto até o próximo dia 19.
O projeto encaminhado à sanção é inconstitucional e a maior parte de seus artigos deve ser vetada. Assinale-se, de início, que sua simples leitura exige grande esforço, o que a própria Câmara reconhece na nota descritiva datada de fevereiro e elaborada pela sua consultoria legislativa. O texto da lei é exposto em 32 páginas e a nota em nada menos que 20. Isto é: para expor e descrever gasta-se mais de 50 páginas. Não é muito, pois uma clara explicação e uma tentativa de entendimento exigiriam um livro inteiro, bem maior.
As entidades elencadas no artigo 103 da Constituição, especialmente confederações de empresas, partidos políticos e OAB, poderão questionar tais normas através de uma ADI. A menos, é claro, que se acovardem, se mantenham genuflexas ante o poder ou ainda se comportem como vaquinhas de presépio.
Dentre as muitas normas desrespeitadas nesse processo legislativo avulta o artigo 62 da CF, eis que a maior parte das matérias inseridas no texto da MP pelo Congresso nada tem de urgentes, muitas nem são relevantes e diversas são flagrantemente inconstitucionais.
Dentre estas últimas sobressai-se a que concede benefício fiscal imoral e indecente para pessoas que exercem atividades religiosas.
O texto final do projeto foi feito como um cipoal à beira do pântano, para ensejar aprovação às escuras. Veja-se na página 14 do texto a redação do artigo 7º, onde é alterado o artigo 22 da lei 8.212/91, acrescendo-se dispositivos para favorecer ministros de confissões religiosas, membros de vida consagrada, de congregação ou de ordem religiosa com benefícios fiscais relacionados a ajuda para moradia, transporte, educação etc.
A MP 668 foi baixada sob justificativa de relevância e sobretudo urgência, ante a necessidade de tentar melhorar as finanças públicas. Isso é o que se observa nos itens que cuidam de aumento de receita e reforço do poder já imenso da fiscalização.
Todavia, a lei 8.212 trata da Previdência Social e seu custeio. No seu artigo 22 já contem o § 13 que diz:
“§ 13. Não se considera como remuneração direta ou indireta, para os efeitos desta Lei, os valores despendidos pelas entidades religiosas e instituições de ensino vocacional com ministro de confissão religiosa, membros de instituto de vida consagrada, de congregação ou de ordem religiosa em face do seu mister religioso ou para sua subsistência desde que fornecidos em condições que independam da natureza e da quantidade do trabalho executado.” (Incluído pela Lei nº 10.170, de 2000).
A nova redação, inserida sorrateiramente no texto da MP, quer ampliar o que já é imoral e inconstitucional, para alcançar transporte, moradia, educação etc. Tais benefícios são imorais, porque os trabalhadores em geral, aqui incluídos os profissionais liberais, não os recebem e inconstitucionais porque violam o principio da isonomia.
Tem mais: MP tem um limite estreito no terreno constitucional e não admite remendos ou puxadinhos. O Congresso representa o povo, com todos os seus defeitos e qualidades. Para os nossos legítimos representantes com pouca cultura há assessores qualificados. Mas somos obrigados a reconhecer que quase todos os líderes partidários sabem o que estão fazendo. Sabem, pois, que há normas a regular como se fazem as leis. E é aqui que o bicho pega!
A Lei Complementar 95 de 25 de fevereiro de 1998 trata da elaboração, a redação, a alteração e a consolidação das leis, conforme determina o parágrafo único do art. 59 da Constituição Federal. Seu artigo 7º é de meridiana clareza e deve ser aqui integralmente transcrito, para afastar de vez qualquer dúvida sobre a ilegalidade do projeto encaminhado à sanção presidencial. Ao definir como deve ser a lei elaborada, afirma que:
“Art. 7º – O primeiro artigo do texto indicará o objeto da lei e o respectivo âmbito de aplicação, observados os seguintes princípios:
I – excetuadas as codificações, cada lei tratará de um único objeto;
II – a lei não conterá matéria estranha a seu objeto ou a este não vinculada por afinidade, pertinência ou conexão;
III – o âmbito de aplicação da lei será estabelecido de forma tão específica quanto o possibilite o conhecimento técnico ou científico da área respectiva;
IV – o mesmo assunto não poderá ser disciplinado por mais de uma lei, exceto quando a subsequente se destine a complementar lei considerada básica, vinculando-se a esta por remissão expressa.”
Só neste pequeno item já nos deparamos com evidente impropriedade legislativa. A lei que aumenta tributos sob a justificativa de urgência não pode ao mesmo tempo ampliar benefícios a um grupo de pessoas já anteriormente muito beneficiadas, direta ou indiretamente, com múltiplos favores, até mesmo com a permanência de imunidade tributária que vem sendo utilizada sem controle algum.
Amplia-se a casta de favorecidos pelo trabalho alheio e mergulhamos a sociedade brasileira numa enorme injustiça, dividida em dois grupos: nós os que pagamos impostos e vivemos no inferno e eles, os imunes, a gozar as delícias do céu.
Se Justiça é dar a cada um o que é seu, não é justa a concessão de benefícios de natureza tributária a quem deles não necessite. O imposto assim concedido pertence a toda a sociedade e não pode ser apropriado por parte dela, a não ser em situações excepcionais e mesmo assim como forma de retribuir serviços ou obras que o Estado deveria fazer.
A questão de eliminarmos as imunidades tributárias como forma de colocar nossa sociedade no século XXI já foi aqui examinada em várias ocasiões, cada uma delas relacionada com os respectivos beneficiários. Em relação às igrejas, a matéria foi publicada em 22 de outubro de 2012, da qual podemos destacar este trecho:
Várias entidades que se intitulam igrejas já se transformaram em impérios econômicos, cujo poder ninguém sabe até onde vai e cujos lideres exercem esse poder de forma totalmente obscura ou mesmo através de ordem hereditária. Sabe-se que há, neste imenso país, igrejas que são objeto de concessão ou “franquia”, mediante pagamento em dinheiro e contrato de participação no faturamento.
Não há exagero em vermos tal situação como estado dentro do Estado. Afinal, há redes de comunicação (TV, Rádio, jornal) e até partidos políticos agindo abertamente como órgãos subordinados a instituições religiosas, onde é quase certa a subordinação dos eleitos não aos seus eleitores, nem mesmo ao Estado, mas à hierarquia da seita.
Este é um país laico. Mais que isso: reconhecido internacionalmente como fraterno, aberto a qualquer ser humano que se disponha a procurar abrigo, aqui sempre recebido como irmão. Isso deve servir de orgulho para cada brasileiro.
Exatamente por isso, não podemos criar castas que, a pretexto de professar credos que respeitamos, possam escudar-se em favores que nossa sociedade não pode suportar. Por outro lado, a manutenção de imunidades ou mesmo isenções sem rigoroso controle sobre as contrapartidas de suas concessões gera toda sorte de crimes, inclusive sonegação, corrupção e lavagem de dinheiro. Qualquer governo que se pretenda sério toma cuidado com isso.
Quando nossa Constituição invoca em seu preâmbulo a proteção de Deus, não exclui, reduz ou afasta direitos de ateus ou cria privilégios para as diversas seitas que dizem representar o Criador. Nossa sociedade não pode admitir fanáticos e deve punir na forma da lei os que desrespeitam os sentimentos religiosos. Mas não podemos e nem temos condições econômicas de manter e muito menos ampliar favores aos que exercem atividades religiosas.
Como há uma assessoria jurídica capaz de assessorar nossa presidente, esperamos que sejam vetadas as diversas emendas que, de forma inconstitucional, colocam em risco a já frágil legitimidade da MP 668.
Raul Haidar é jornalista e advogado tributarista, ex-presidente do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-SP e integrante do Conselho Editorial da revista ConJur.
Fonte: Revista Consultor Jurídico