“Congresso está usando seu poder contra os direitos individuais e sociais”
Enquanto pipocam “soluções simples” para resolver todos os problemas do país, como reduzir a maioridade penal e decretar a prisão de réus antes do trânsito em julgado, o advogado Andre Kehdi é taxativo a dizer que não adianta retirar direitos dos cidadãos se continuarmos com o mesmo sistema de Justiça, que cada vez mais acumula processos, e com nosso já antigo modelo penal, que parece ter criado um perfil específico de culpados, enchendo as cadeias de com as pessoas que se encaixam no estereótipo.
Presidente do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim), ele defende que combater o mero punitivismo é a principal missão da entidade, criada em 1992 para promover debates, produzir pesquisa e reunir profissionais de várias áreas do conhecimento. “Não existe uma relação direta, necessária e comprovada entre aumento da punição (…) e redução da criminalidade”, afirma. “Fazemos um contraponto a cada pauta fundamentalista e injustificada que surge, esse é o motivo de o IBCCrim existir.”
O trabalho fica agora maior com as recentes propostas em andamento no Legislativo. “Hoje, o Congresso finalmente tem autonomia, mas está usando esse poder contra direitos individuais e sociais”, afirma Kehdi, que ainda assim aponta um saldo positivo dos últimos anos, quando avalia a valorização dos direitos humanos.
Uma das iniciativas elogiadas por ele é a implantação das audiências de custódia, medida desenhada pelo Conselho Nacional de Justiça para ouvir presos em flagrante em no máximo 24 horas. Apesar da torcida para que o projeto se espalhe pelo país, Kehdi faz críticas ao que é desenvolvido em São Paulo — tem receio de que gravações das audiências sejam usadas como colheita antecipada de prova e que eventuais casos de torturas policiais não sejam relatados quando PMs estão perto do suspeito.
Em visita à redação da revista eletrônica Consultor Jurídico, o presidente do IBCCrim demonstra ainda preocupação com o crescimento das delações premiadas quando o acusado está preso (e hipossuficiente), explica por que motivo é favorável à descriminalização das drogas e defende que advogados façam pro bono, ou seja, trabalhem de graça em prol de causas que acreditam.
Sócio-fundador do escritório Andre Kehdi e Renato Vieira Advogados, formou-se em Direito pela PUC-SP, em 2003, é especialista em Direito Penal Econômico pela Universidade de Coimbra (em parceria com o IBCCrim) e foi diretor jurídico do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD).
Leia a entrevista:
ConJur — Quais as missões do IBCCrim e o que a entidade tem feito?
Andre Kehdi — O IBCCrim tem aproximadamente 4 mil associados em todos os estados do país. É formado por juízes, advogados, promotores, defensores públicos, delegados de polícia… Temos um núcleo de pesquisas com estudiosos do Direito e também antropólogos e cientistas sociais. Produzimos muita ciência com um viés crítico e a finalidade de concretizar os direitos fundamentais. Promovemos também diversas atividades acadêmicas como mesas de debates, cursos e palestras.
Temos o nosso trabalho permanente de produzir e divulgar conhecimento por meio do nosso boletim mensal, que já está no número 272, da nossa Revista Brasileira de Ciências Criminais, da nossa revista digital Liberdades e das nossas monografias. Nossa biblioteca é a mais atualizada de ciências penais do país e está em constante crescimento, assim como a nossa midiateca, que tem um acervo impressionante que é colocado à disposição dos associados, com todos os eventos gravados nesses quase 23 anos de existência do instituto. Além disso, há a iniciação científica e o Laboratório de Ciências Criminais, que está sendo ministrado em vários estados para estudantes de Direito do segundo ao quinto ano.
Nosso seminário internacional, tido como o mais importante evento de ciências criminais da América Latina, terá sua 21ª edição neste mês [entre os dias 25 e 28 de agosto, em São Paulo]. Neste ano, já estamos encerrando um curso de direitos fundamentais e iniciaremos um curso de processo penal, ambos decorrentes de antiga parceria com a Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Temos dois grupos de estudo: um sobre ciências penais e direitos humanos e outro sobre escolas penais. Estamos organizando, para iniciar em breve, um grupo de estudos sobre processo penal também.
O instituto é multidisciplinar, foi criado na década de 1990 com a ideia de fazer um contraponto ao punitivismo. Ele foi planejado por quem não suportava mais ver o Estado massacrando as pessoas, especialmente aquelas envolvidas na malha criminal. Hoje, a atuação política do IBCCrim é muito grande: apresentamos diversas intervenções como amicus curiae no Supremo Tribunal Federal e temos tentado intensificar a atuação no Legislativo. Fazemos um contraponto a cada pauta fundamentalista e injustificada que surge, esse é o motivo do IBCCrim existir.
ConJur — Temos observado o aumento do punitivismo nas discussões sobre redução da maioridade penal e sobre o feminicídio, por exemplo. Como o IBCCrim se posiciona em relação a isso?
Andre Kehdi — O IBCCrim, desde sempre, se posiciona muito criticamente ao aumento da punição como forma de política criminal. Entendemos que não existe uma relação direta, necessária e comprovada entre aumento da punição, com o recrudescimento do processo penal e do Direito Penal, e redução da criminalidade. É preciso ver os motivos sociais por trás da criminalidade. Os homicídios têm caído no estado de São Paulo, mas continua sempre presente o discurso de que a criminalidade está aumentando. Quando a Câmara dos Deputados votou a redução da maioridade penal — tanto no primeiro dia, em que a PEC perdeu, quanto no segundo dia, em que a proposta foi aprovada —, houve o discurso fácil de que acabaríamos com a impunidade imediatamente. Não precisa pensar cinco minutos para entender que reduzir a maioridade penal não vai acabar com a impunidade no Brasil. E mais: é preciso entender que a Justiça Penal é seletiva, a impunidade existe para determinados setores da sociedade. Os crimes mais complexos, que causam lesão difusa muito maior, dificilmente são apurados ou geram responsabilização.
ConJur — É porque existem menos crimes mais complexos ou é porque esses crimes são pouco investigados?
Andre Kehdi — No Brasil, é muito difícil encontrar uma boa investigação. O objeto de processos penais é basicamente objeto da prisão em flagrante. Há quanto tempo furtos de carro não são investigados? E quanto aos crimes de maior complexidade, como os contra o sistema financeiro nacional, de licitação, contra a ordem econômica, quanta energia nosso país e o nosso sistema de justiça realmente gastam para solucionar? E mais: o que falar das investigações sobre o genocídio praticado sistematicamente por parte da polícia e de milícias? Existe uma seletividade do sistema penal, ele pega o que é mais fácil e seleciona as pessoas que são presas, em geral pobres, negros e com baixo nível de alfabetização. A redução da maioridade penal, simplesmente, vai continuar com a seletividade do sistema penal.
ConJur — Assim como transformar a corrupção em crime hediondo?
Andre Kehdi — Exatamente. O que isso vai adiantar? O governo federal apresentou um pacote anticorrupção, com propostas contrárias a tudo o que a ciência criminal tem de mais sólido a respeito disso. Aumentar punição, tornar determinado crime hediondo, ampliar tipificações não adianta nada. Com esse discurso fácil, a bancada da bala está caminhando livremente no Congresso.
ConJur — Existe ainda uma bancada da bala ou esse discurso já se proliferou pelo Congresso?
Andre Kehdi — Todo mundo que acompanha um pouco a política sempre viu os Legislativos muito vinculados aos Executivos. É um jogo bem cantado, o Executivo dita e o Legislativo segue. Hoje, o Congresso finalmente tem autonomia, mas está usando esse poder contra direitos individuais e sociais.
ConJur — Venceu o Direito Penal do inimigo?
Andre Kehdi — A ideia de identificar o “inimigo” da sociedade e excluir esse indivíduo da margem protetora do Estado de direito tem vencido. Esse pensamento é aplicado no dia a dia com uma frequência inadmissível, como quando uma pessoa acusada responde presa ao processo penal inteiro sem motivo cautelar algum, só por causa da imputação que sofre. Isso é algo que acontece com aproximadamente metade dos acusados no país, e é absurdo.
ConJur — A implantação das audiências de custódia é anunciada como uma solução para essas prisões que ocorrem antes de sentenças. Como o IBCCrim avalia essa iniciativa?
Andre Kehdi — As audiências de custódia, como uma medida de prevenção à tortura, como uma medida de incentivo a ter a prisão cautelar como exceção, são totalmente apoiadas pelo IBCCrim. Em São Paulo, como as audiências têm sido gravadas, nos preocupa saber que em muitos casos os CDs estejam sendo remetidos juntamente com os autos para o juiz dar a instrução. Assim, uma medida que serviria em tese só para averiguar as condições da prisão pode se tornar uma oportunidade de colheita antecipada de prova. Isso é um problema porque o acusado fala em primeiro lugar e não por último, como o procedimento ordinário prevê, o que já é ruim para ele do ponto de vista da defesa.
O segundo problema é que ele pode se autoincriminar antes que tenha tempo de estruturar a defesa. É importante notar as condições completamente avessas ao direito de defesa em que se dá a entrevista do preso com seu defensor antes da audiência: em pé, no corredor das audiências, com pouco menos de cinco minutos para falar, ao lado de funcionários do fórum e policiais militares. Nos preocupa também nas audiências a presença de PMs que levaram o preso. Se uma das funções da medida é permitir que o preso relate qualquer tipo de tortura, fica difícil que ele faça afirmações ao lado de um policial.
ConJur — Por outro lado, essa presença não garante a segurança dos participantes?
Andre Kehdi — O Fórum Criminal da Barra Funda é um dos lugares que mais tem policiais por metro quadrado na cidade de São Paulo. As pessoas têm que ser tratadas com dignidade e com a presunção de que elas são inocentes. Não há de se presumir que qualquer pessoa que entre lá vai sair agredindo todo mundo. O PM deveria ficar no fundo do corredor, sendo chamado num caso de contingência. O argumento da segurança é reiteradamente usado para reduzir a possibilidade de proteção dos direitos humanos na Justiça Criminal.
ConJur — O CNJ tem vendido o modelo das audiências de custódia a vários estados, mesmo antes de o Congresso votar um projeto de lei sobre o tema. A regulamentação legal da iniciativa é necessária?
Andre Kehdi — Do ponto de vista jurídico, não é necessária regulamentação legal. Já tínhamos a obrigação de fazer as audiências de custódia desde 1992, quando entrou em vigor no país o Pacto de San José da Costa Rica. Do ponto de vista político, contudo, a lei é necessária, pois na nossa cultura jurídica infelizmente não se vê com tanta frequência a aplicação direta de tratados de direitos humanos. A vinda de uma lei ordinária para obrigar isso em âmbito nacional vai acabar com qualquer discussão levantada por quem não quer andar para frente.
ConJur — Em relação ao prazo de 24 horas, o senhor avalia que a lei deveria prever esse prazo específico ou cada estado poderia implementar de acordo com as suas características?
Andre Kehdi — As audiências tentam cumprir tratados internacionais que obrigam a apresentação do preso em flagrante sem demora, o que traz uma interpretação de que tem que ser imediato, o mais rápido possível. Particularmente, acho que o máximo deveria ser 24 horas, porque muita coisa pode acontecer nesse tempo. Esse prazo já está previsto no projeto de lei em andamento.
ConJur — O senhor afirma que a segurança tem sido usada contra direitos humanos. É a prevalência do in dubio pro societate (em dúvida, decide-se a favor da sociedade)?
Andre Kehdi — Exatamente, é um argumento usado para tudo na política criminal atual. Para que a sociedade tenha mais segurança, admite-se que a interceptação telefônica possa ser renovada indeterminadamente. Se o transporte de um acusado preso ao fórum pode ser custoso e inseguro, adotamos a videoconferência, tiramos dessa pessoa o direito de olhar no olho de quem vai julgá-lo. Quanto mais você afasta o juiz, mais você torna essa relação asséptica e, sendo asséptica, ela permite todo o tipo de atrocidade. O juiz tem que ser compelido a olhar a pessoa que ele está julgando, porque ele está julgando um ser humano, não um nome que está ali na capa dos autos.
ConJur — Isso se aplica também à proposta do juiz sem rosto [deixar anônimo o nome do juiz responsável por processos de organização criminosa]?
Andre Kehdi — A questão do juiz sem rosto ainda não emplacou direito no Brasil, mesmo com a existência de lei sobre o assunto. É uma questão muito séria. A relação entre acusado e juiz é necessária. Romper isso é criar uma forma de julgamento desumano. A ideia é proteger o juiz onde o Estado aparentemente não tem poder para enfrentar o crime organizado. Ao invés de verificar as causas do crescimento dessa criminalidade que amedronta o Estado e atacar essas causas, a gente vai sempre contra o direito individual. O que é mais fácil? Deixar o acusado sem saber quem está julgando seu caso ou então verificar todos os problemas sociais que estão por trás daquela criminalidade que se desenvolveu a partir das deficiências do Estado?
ConJur — Diante do crescente encarceramento, o senhor avalia que prisões privadas podem ser uma solução?
Andre Kehdi — Os Estados Unidos, como o país mais encarcerador do mundo, tem como um de seus fatores o lobby aberto às prisões privadas. Se adotarmos esse mesmo modelo, teremos uma taxa de encarceramento muito maior, provavelmente, porque as empresas passam a lucrar com prisões e usar o Direito Penal com interesse econômico.
Já existem no Brasil penitenciárias privadas e penitenciárias de gestão compartilhada. Um estudo feito pela Pastoral Carcerária no ano passado apontou falta de transparência em processos de licitação, casos de fuga, relatos de tortura e descumprimento de obrigações da Lei de Execução Penal, como falta de trabalho, educação e saúde adequada. Se isso tudo acontece, o que significa privatizar as prisões no Brasil? Mesmo nos EUA já se percebeu que a solução não é construir mais presídios, mas encarcerar menos. Eles estão diminuindo a taxa de encarceramento há alguns anos e nós deveríamos entender o exemplo de quem já errou demais e está agora tentando consertar esse erro.
O IBCCrim não acredita que o caminho correto para solucionar nossa crise do sistema prisional seja construir mais presídios. A gente acredita em penas alternativas e soluções alternativas de conflitos. Com a nossa taxa de reincidência, construir mais prisões soluciona alguma coisa? Ter mais espaço para todo mundo vai ajudar em alguma coisa nossa sociedade? O que se vê hoje é um superencarceramento, decorrente da prática de crimes que, muitas vezes, não deveriam levar a prisões.
O maior exemplo é a discussão sobre tráfico de drogas, política que mata muito e encarcera, sobretudo as mulheres, de forma absurda. O estudo das taxas de encarceramento no Brasil mostra que, a partir da Lei 11.343/2006 [sobre a repressão ao tráfico ilícito], as prisões subiram exponencialmente. Nós criminalizamos uma transação entre duas pessoas que estão totalmente de acordo, sem qualquer tipo de coação, de violência e tampouco de fraude. Essa compra e venda gera, no máximo, uma autolesão, ou seja, o interessado está dispondo do próprio corpo da forma que acha melhor e o Estado entra nessa esfera para tentar punir rigorosamente a prática. Quem ganha com a criminalização do tráfico?
ConJur — Quem?
Andre Kehdi — Quem vende produtos e serviços na área de segurança pública ganha muito com o combate às drogas. As bandas corruptas do Estado também lucram com a criminalização do tráfico, porque existe uma simbiose com o crime organizado. Além disso, a PEC 171 [sobre redução da maioridade penal em crimes hediondos] prevê no fim do texto que estados, municípios e União ficarão encarregados de construir novos estabelecimentos para adolescentes entre 16 e 18 anos. É um terceiro filão para a área de construção civil, entende? Por fim, o grande traficante, não aquele moleque geralmente pobre e negro que é preso, esse empresário do tráfico lucra demais também, pois o produto proibido é muito mais caro…
ConJur — Como o senhor avalia o direito de defesa na operação “lava jato”?
Andre Kehdi — Infelizmente esse processo não sai da regra geral de um país em que vemos muito desrespeito ao direito de defesa dos acusados, com a diferença que é voltado contra pessoas ricas e que há diversos interesses econômicos e políticos envolvidos, além da enormidade de delações premiadas que vêm ocorrendo. O jogo midiático criado em torno do processo me assusta. Me parece que muitas das prisões preventivas estão sendo aplicadas totalmente fora dos critérios legais, como verdadeiras antecipações de pena, e também não considero adequado que pessoas sejam soltas apenas após fazer acordos de delação premiada. O IBCCrim soltou uma nota manifestando sua posição sobre o caso [o texto declara que o juiz federal Sergio Fernando Moro usa a prisão preventiva “para penalizar a livre manifestação de pensamento divergente do seu”].
ConJur — Existe um choque de ideias entre o IBCCrim e associados contrários a essa postura, como integrantes do Ministério Público?
Andre Kehdi — O IBCCrim já teve um choque com algumas associações do Ministério Público quando se declarou contra os poderes investigatórios do MP. Diversos promotores se descredenciaram na ocasião, mas muitos voltaram porque percebem que o instituto não é só de advogados, é um instituto que tem como norte Constituição Federal. Então o IBCCrim vai bater de frente com quem tiver que bater, desde que seja necessário para defender a Constituição e os direitos humanos. A entidade tem autonomia para dar posições próprias.
ConJur —Como o senhor enxerga esse volume de delações que passou a proliferar no Judiciário?
Andre Kehdi — Enxergo com muita preocupação, porque representa o Estado se valendo de um meio imoral para conseguir prova. É mais um desincentivo à estruturação de uma investigação eficiente no país, algo que tanto precisaríamos implementar no país. O problema é que esse tipo de acordo tem sempre sido feito em grande parte em situações nas quais o cidadão está hipossuficiente, geralmente preso. É premissa básica que as partes de um acordo têm que ser autônomas e estar em igualdade de condições para decidir.
ConJur — E os termos que obrigam o investigado a desistir de qualquer recurso e Habeas Corpus?
Andre Kehdi — A questão é muito delicada. Faz parte de um instituto que está sendo implementado, na prática, de uma forma totalmente avessa de um Estado democrático de direito. O cidadão pode procurar o Judiciário sempre que tem o direito violado ou tem a perspectiva de ter o direito violado, ainda mais quando é a sua liberdade que está em jogo. Obrigar alguém em condição clara de hipossuficiência a abrir mão de direitos constitucionais seus é algo que não deve ser legitimado.
ConJur — E os grampos telefônicos?
Andre Kehdi — Acredito que a interceptação telefônica é um meio de colheita de prova válido e eficiente, mas teria que ser usado dentro dos seus limites. A Lei 9.296 [de 1996] fixa o prazo de 15 dias prolongáveis por mais 15. O Supremo entende que a medida pode ser prorrogada reiteradas vezes, mas nem Estado de sítio nem Estado de exceção dão um prazo tão grande de suspensão dos direitos individuais. O professor Geraldo Prado aponta [no livro Limite às Interceptações Telefônicas e a Jurisprudência do STJ, Editora Lume Juris] que o Estado de sítio, por exemplo, só pode ser decretado por 30 dias, isso se o Congresso Nacional autorizar o presidente da República por maioria absoluta. Se a Constituição toma todo esse cuidado para autorizar um estado em que um dos direitos suspensos pode ser o de sigilo telefônico, é óbvio que num período de normalidade a Lei 9.296 é absolutamente razoável.
A interceptação telefônica, em tese, é a ultima ratio e não a prima ratio, pois é extremamente invasiva. Quem ouve ligações fica sabendo a vida inteira de alguém. Além disso, é importante frisar que a interceptação telefônica não pode, em hipótese alguma, violar a comunicação entre cliente e advogado, que deve ser absoluta. Qualquer violação dessa é prova ilícita, e deveria afastar o juiz que teve contato com ela do caso.
ConJur — O juiz Sergio Moro e a Ajufe [Associação dos Juízes Federais do Brasil] defenderam que a prisão seja decretada logo após a condenação de primeira ou de segunda instância em “crimes graves”. O senhor concorda?
Andre Kehdi — Não concordo com a interpretação, não é essa posição do IBCCrim historicamente e, felizmente, não é essa a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. É evidente que a presunção de inocência vale até que uma sentença transite em julgado. Tentar antecipar o cumprimento de pena, além de ser inconstitucional, é uma forma muito cruel de tentar justificar para a sociedade o injustificável. O nosso sistema de Justiça é inteiro desajustado, tem uma série de falhas, mas não é possível defender que a impunidade deixará de existir se forem tolhidos direitos fundamentais.
Em 2012, um levantamento do CNJ apontou que o setor público federal e os bancos respondem por 76% dos processos em tramitação na Justiça. Dentro do restante ficam as pessoas que estão litigando por causa do aluguel, do divórcio, da herança. São causas realmente individuais, no qual fazem pessoas sofrerem e contratarem advogados. Por que não discutimos os grandes litigantes ao invés de tentarmos resolver a questão da celeridade nas ações penais?
ConJur — O direito de defesa vai sobreviver à politização do Direito Penal?
Andre Kehdi — O Direito Penal sempre foi política pura. Decidir quem deve ser punido ou não é um ato claríssimo de poder, e poder é política. Eu tento crer na humanidade. Acredito que a gente esteja sempre num ascendente de respeito aos direitos humanos, apesar dos interesses econômicos que colocam o capital sempre em primeiro lugar. Mesmo com altos e baixos, a curva geral é de subida. Nesse momento nós estamos em uma curva particular de descida, só que o movimento geral é de subida.
ConJur — Em quais processos o IBCCrim ingressou como amicus curiae?
Andre Kehdi — São diversas intervenções como amicus curiae no Supremo, que estão divulgadas em nossa página na internet. Uma delas é na ADI é 5070, proposta pela Procuradoria-Geral da República contra a lei dos departamentos de execuções de inquéritos policiais em São Paulo [Lei Complementar 1.208/2013]. Essa lei prevê que os juízes responsáveis pelas execuções penais e os juízes que vão cuidar dos inquéritos sejam escolhidos pela cúpula do Judiciário paulista. É muito grave uma norma que dá poder para o tribunal definir nomes por conta própria, sem fundamentar. O ministro Luiz Fux já declarou na ADI 4414 que os critérios de promoção e remoção de juiz devem ser objetivos, impessoais. Mesmo assim, esse poder de livre escolha tem sido adotado em São Paulo e em outros estados, em grave violação não só às prerrogativas constitucionais dos juízes, mas sobretudo aos direitos que eles têm o dever de assegurar a todos os cidadãos.
Também questionamos a atual concepção cênica das salas de audiências, uma discussão sobre o lugar do Ministério Público [ADI 4768]. O espaço reservado hoje fere a paridade de armas ao deixar o promotor ou procurador ao lado do juiz. Defendemos o fim da criminalização do porte de drogas para consumo pessoal [RE 635659, pautado para a próxima quinta-feira (13/8) no Plenário do STF] e vamos entrar na discussão sobre as audiências de custódia [criticada pela associação que representa delegados na ADI 5240].
ConJur — O senhor destaca mais algum trabalho do instituto?
Andre Kehdi — O IBCCrim tem representação no Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, instalado recentemente pelo governo federal para fiscalizar a ocorrência de tortura e maus tratos em unidades prisionais. É um órgão autônomo dotado de autonomia para se espalhar por todos os órgãos do estado e investigar com independência e combater essa prática. A lei que instituiu o comitê [Lei 12.847/2013] também aborda o estímulo à criação de iniciativas estaduais, mas poucos estados implementaram. Em São Paulo, existe um projeto de lei que não está andando na Assembleia Legislativa. Com tantas denúncias de violência dentro dos presídios e tantos relatos de torturas nas abordagens policiais, seria importante dar um passo na humanização do sistema de justiça e espalhar esses comitês pelo país.
Em tempos nos quais se pretende restringir os direitos dos adolescentes, com a redução inconstitucional da maioridade penal ou o aumento irrazoável do tempo de internação, a Comissão de Infância e Juventude tem feito grande trabalho. Em abril, fizemos, juntamente com a Conectas Direitos Humanos, o C.A. XI de Agosto (USP),aA Associação de Juízes para a Democracia, a Ouvidoria da Defensoria Pública de São Paulo e outras entidades um grande ato contra esa mudança no Salão Nobre da Faculdade de Direito da USP, além de publicarmos um boletim especial só sobre o assunto.
ConJur — Por que a advocacia brasileira resiste tanto ao pro bono?
Andre Kehdi — Acho lamentável que exista essa posição de contrariedade ao pro bono. Está dentro do âmbito de liberdade de cada profissional advogar pra quem ele quiser, pelo motivo que ele quiser e cobrar se ele quiser. Interferir nisso é uma tentativa de reserva de mercado, uma presunção de que, fazendo o pro bono, o profissional estaria angariando clientes. Ou a percepção de que, não havendo defensores públicos em todo o país, muitos advogados dependem dos convênios feitos pela Ordem dos Advogados do Brasil para sobreviver. Mesmo assim, na minha opinião, um órgão de classe não deveria restringir uma questão que é humanitária por interesses exclusivamente corporativos.
Por: Marcos de Vasconcellos e Felipe Luchete.
Fonte: Revista Consultor Jurídico