ATRASO NO REPASSE DE EMPRÉSTIMOS CONSIGNADOS: APROPRIAÇÃO INDÉBITA OU DENUNCIAÇÃO CALUNIOSA?
O ano de 2014 foi marcado pelo substancial corte de repasses da União a estados e municípios, o que causou um rosário de problemas para as administrações, principalmente para as pequenas prefeituras, ocasionando atraso no pagamento de fornecedores e prestadores de serviços, diminuição de serviços prestados à população e atraso no pagamento da remuneração de servidores.
Com o corte de repasses e a insuficiência de recursos, algumas prefeituras, para não atrasar o pagamento dos servidores, acabaram não repassando para instituições bancárias os valores retidos a título de empréstimos consignados, e usaram esse saldo para completar a folha de pagamento. Diante do atraso, muitas acusações da prática de crime de apropriação indébita recaíram sobre ordenadores de despesas, com denúncias ao Ministério Público e autoridades policiais. O presente artigo analisa o fato exclusivamente sob a ótica do cometimento ou não do crime de apropriação indébita, o que, mesmo que em rasa análise, é de se afastar por completo.
Gestores se viram diante de um impasse: ou deixavam de pagar a folha ou atrasavam o repasse dos valores retidos, muitos optando por sacrificar o direito das instituições bancárias para garantir o direito dos servidores, evidentemente parte mais frágil e vulnerável desta relação. É preciso, inicialmente, investigar se houve liberdade na decisão, se era possível naquele momento conjugar positivamente o dever e o poder agir conforme as regras contratuais, ou se as circunstâncias obrigaram a tal.
O art. 168 do Código Penal narra o crime de apropriação indébita, consistente na conduta de “apropriar-se de coisa alheia móvel, de que tem a posse ou a detenção”. Para que se consume o crime, faz-se necessária a presença do “animus rem sibihabendi”, que se traduz como a intenção, a vontade, livre e consciente de se apropriar da coisa, de tê-la para si como se fosse dono, invertendo o título da posse.
Rogério Greco ensina que para haver o crime, “deve ficar completamente demonstrada a intenção do agente em se apropriar da coisa alheia móvel, não se podendo cogitar, por exemplo, no delito em estudo, quando o agente, depois de solicitada a coisa pelo seu dono, demora em devolvê-la, não agindo, pois, com a finalidade de inverter o título da posse” (in curso de direito penal, vol 2, p. 222), enquanto que Celso Delmantoafirma que “a mora, ou simples descaso em devolver, não configura por si só o crime. Não existe apropriação indébita de uso, que é impunível” (Código Penal Comentado).
Doutrina e jurisprudência convergem para o entendimento de que, para aferir-se a existência do crime de apropriação indébita, deva ficar provado, de modo certo e inequívoco, que o agente reteve o bem com a intenção de não restituí-lo (TRF da 5ª reg., Ap. 292, DJU 17/08/90), sendo que a simples mora em restituir não configura o delito descrito no art. 168, do CP (TACrSP julgados 90/256, RT 721/461, 612/333; TJSP, RT 510/349; TAMG, RTJAMG 53/307; TJMT, RT 787/662).
Na maioria dos casos conhecidos, os municípios renegociaram, ou repassaram o montante retido, mas com atraso. Ou seja, o crime de apropriação indébita inexistiu, por absoluta ausência de dolo, mesmo genérico.
Quanto à possibilidade de cometimento de outros delitos, como o previsto no art. 359-A, do CP (contratação de operação de crédito), ou o do art. 1º, III do Dec. Lei 201/67 (desvio de rendas públicas), também é de se afastar. Em primeiro lugar, porque inexistiu, no caso, empréstimos, tampouco houve emprego irregular de recursos públicos. O que houve foi mera mora contratual, resolvida diante da aplicação das cláusulas previstas nos contratos ou convênios firmados entre as instituições e entes públicos, passíveis de sersatisfeitas por meio de ação própria, em caso de persistência.
O Princípio da Intervenção Mínima do Direito Penal assegura que este ramo do direito seja utilizado como última opção, quando não houver possibilidade de resolver-se a contenda pelos outros ramos (caráter subsidiário, ou princípio da subsidiariedade). Tendo as instituições a força das cláusulas contratuais para receber os valores em mora, é de aplicar-se as regras do Direito Privado, ser perder de vista a presença da Administração Pública na relação, com a aplicação de seus princípios próprios, conforme o caso concreto exigir.
Destaque-se que algumas instituições bancárias, mesmo sabendo que a mora era do ente repassador, mantiveram o nome dos mutuários no cadastro de inadimplentes, causando a estes constrangimentos, assumindo a responsabilidade pela reparação de tais danos de ordem moral.
Superada a ideia de prática de crime pelo ordenador de despesa que se viu diante da contingência promovida por corte de recursos e atrasou repasses retidos, uma vez que a mora contratual se encontra sob tutela do Direito Civil, surge aí a gravidade da conduta intentada por representantes de algumas instituições ou por agentes movidos por interesses meramente políticos, manejando representação para apuração do crime de apropriação indébita e/ou por ato de improbidade administrativa. Penso que tais agentes incursionaram pela conduta descrita no art. 339, do Código Penal, que prevê pena de reclusão de dois a oito anos àquele que “dar causa à instauração de investigação policial, de processo judicial, instauração de investigação administrativa, inquérito civil ou ação de improbidade administrativa contra alguém, imputando-lhe crime de que o sabe inocente” e, sendo crime de ação pública incondicionada, merece pronta instauração de Inquérito Policial para sua efetiva apuração.