Polícia federal descobre fraude de R$ 160 milhões na importação de cavalos
A égua holandesa da raça KWPN castanha Donna du Mesnil é um animal exemplar. Aos 7 anos, salta obstáculos de 1,20 metro de altura com desenvoltura e sem demonstrar esforço. A elegância é inerente aos seus movimentos e ela supera obstáculos difíceis com naturalidade. Um conhecedor de hipismo percebe rapidamente que se trata de uma égua com porte e estilo de campeã, que saltará 1,40 metro ou mais daqui a três anos em competições de nível profissional, quando se aproximar da idade de maturidade no esporte.
Sob a responsabilidade do major Flávio Braga, comandante do curso de cavalaria da Academia Militar das Agulhas Negras (Aman) e exímio cavaleiro, ela tem tudo para se desenvolver de forma plena. “Esse animal é um dos presentes mais valiosos que a Aman já recebeu”, afirmava Braga, depois de uma sessão de exercícios de salto no campo de equitação da Aman, em uma manhã ensolarada, no início de janeiro, em Resende (RJ). “Com seu potencial, ela contribuirá para a evolução da equitação militar.”
Donna foi doada para o Exército pela Receita Federal, junto com outros cinco animais de raças europeias, apreendidos em janeiro de 2014, por causa da suspeita de terem entrado no país subavaliados. Foi a primeira vez que os inspetores da Receita no Aeroporto de Viracopos, em Campinas, investigaram sonegação nas importações de cavalos usados em torneios nacionais e internacionais de salto. A fiscalização verificou que o preço de muitos animais de primeira categoria que chegavam ao país vindos da Europa era inferior ao custo do transporte para trazê-los.
Viracopos é o único terminal aéreo do país preparado para a recepção de carga viva que possui estábulos para abrigar adequadamente animais valiosos como Donna, que custaria facilmente mais de € 50 mil no mercado internacional. Dois voos semanais da Lufthansa Cargo trazem os bichos da Europa. “Toda a situação gerava desconfiança”, diz a inspetora da Receita Daniela Bonafé, coordenadora da investigação, batizada de Operação Sangue Impuro depois que a Polícia Federal entrou no caso, em novembro de 2015. “O custo para trazer o cavalo em um contêiner especial, com um tratador, era de € 5 mil e o valor declarado, de apenas € 2 ou € 3 mil.”
Pesquisando em sites de haras e de leilões de cavalos, os fiscais confirmaram que a situação era corriqueira. “Começamos a suspeitar que se tratava de uma fraude generalizada”, diz Antonio Leal, chefe da fiscalização da Receita em Viracopos. O preço de um cavalo de salto varia em função de fatores como raça, genética, tamanho, idade, temperamento, altura que ele consegue saltar, desempenho em provas e nível de treinamento. Um animal que participa de uma olimpíada, por exemplo, vale pelo menos € 2 milhões. Mas esses são menos de 1% do mercado. Já os cavalos que entravam no Brasil por € 4 mil, média de valor das importações entre 2011 e 2014, podiam aparecer em transações internacionais por € 30 mil, € 50 mil ou mais de € 100 mil. GQ relata agora com exclusividade detalhes da operação.
Em maio de 2012, a alfândega do aeroporto verificou que o cavalo Longane de Laubry, então com 12 anos, geralmente o início do auge da idade de um animal de competição, entrou no Brasil por € 4,7 mil, quando seu valor de mercado era de € 35 mil. Um cavalo denominado Shalimar de Kerglenn, da raça oldenburger, utilizado em competições por cavaleiros de primeiro nível como José Roberto Reynoso Fernandez Filho, foi importado em junho de 2013 por € 3,9 mil. A Receita apurou que o animal valia € 20 mil. Outro oldenburger, denominado Cor de Hus, foi declarado, em junho de 2014, por € 24 mil e valia € 113 mil. A maior parte dos cavalos vinha de quatro haras da Bélgica, principal centro de negócios do hipismo mundial e um dos locais preferidos dos cavaleiros para a preparação para competições. Também foram investigadas importações da Argentina e dos Estados Unidos.
O hipismo brasileiro, embora em franco desenvolvimento, ainda se restringe a um ambiente relativamente pequeno e familiar da alta sociedade em que todo mundo se conhece. Cerca de 70% do esporte se concentra em São Paulo. Em um fim de semana normal, entre mil e 1,5 mil cavalos estarão saltando nos centros hípicos do estado. Em qualquer país no norte da Europa, esse número é dez vezes maior. De qualquer forma, o Brasil tem uma intensa agenda de torneios, público crescente e conseguiu se tornar grande formador de campeões. O tamanho do hipismo pode ser medido pela categoria de seus torneios. Atualmente, os principais campeonatos do país são três estrelas – os mais importantes são de cinco. Oferecem prêmios de cerca de € 100 mil, um décimo dos top europeus. Há quatro anos, nos tempos em que foi realizado o Athina Onassis International Horse Show, as premiações atingiram ineditamente € 1 milhão. Athina, herdeira bilionária do império de Aristóteles Onassis, é casada com o cavaleiro Álvaro Affonso de Miranda Neto, o Doda, frequentemente na equipe olímpica nacional.
Clãs tradicionais do país, como os Diniz, de São Paulo, ou os Gerdau, do Rio Grande do Sul, são notórios incentivadores do esporte, além de contribuírem com grandes praticantes para a modalidade. Saltando por Portugal, Luciana Diniz, filha do empresário Arnaldo Diniz, foi a campeã do último Global Champions Tour, considerado a Fórmula 1 do hipismo mundial. Às vésperas do Natal, foi organizado um almoço em homenagem ao feito de Luciana na Sociedade Hípica Paulista, onde ela se formou como atleta. Da família Gerdau, dona do Haras Joter, de onde saem alguns dos melhores cavalos do país, o destaque como atleta é André Gerdau Johannpeter, que ganhou duas medalhas olímpicas de bronze.
Outra família que contribui para a excelência do hipismo brasileiro é a Pessoa, radicada na Bélgica. Nelson Pessoa Filho, duas vezes campeão dos Jogos Pan-Americanos e atleta olímpico nos anos 60, é hoje um dos melhores treinadores de cavaleiros e cavalos do mundo e tem seu haras na cidade de Ligny, na Bélgica. Seu filho Rodrigo Pessoa, de 42 anos, foi campeão dos Jogos de Atenas, em 2004, e está prestes a disputar a sua sétima olimpíada, no Rio. No ano 2000, nos Jogos de Sydney, não subiu ao pódio porque seu cavalo, o sela francesa Baloubet du Rouet, considerado um animal perfeito em seu tempo, refugou três vezes na última passagem pela pista. Ele chegou a ser avaliado, no auge, em € 4 milhões. Hoje, espécimes hiperselecionados podem custar três vezes mais. Um filho de Baloubet, Palloubet d’Halong, por exemplo, foi vendido por € 10 milhões, em 2013.
Quase dois anos depois da apreensão da égua Donna, a Operação Sangue Impuro foi deflagrada. No dia 19 de novembro, a 9ª Vara Federal de Campinas expediu 50 mandados para serem cumpridos em São Paulo, Paraná, Rio Grande do Sul, Amazonas, Rio de Janeiro e Minas Gerais, sendo três de prisão, 36 de busca e apreensão, 15 de condução coercitiva e cinco de sequestro de bens. Cerca de 25 pessoas, segundo a operação, estão envolvidas, incluindo despachantes aduaneiros, donos de haras, laranjas, empresas de importação e exportação do Brasil e da Bélgica e um cavaleiro profissional. Os mandados de prisão atingiram dois despachantes de Santos, um deles Alexandre Costa Guimarães, também dono da empresa Fly Horse Importação e Exportação, que aparece em operações denunciadas pela Receita. O cavaleiro, que tem sua identidade em sigilo pela Justiça, estava no exterior e não foi preso.
Três núcleos com atuação fraudulenta foram identificados, com cruzamentos eventuais entre eles. Dois desses grupos têm conexões diretas com haras, um localizado em São Paulo e outro no Paraná, e ainda estão sob investigação. O terceiro núcleo foi denunciado à Justiça pelo Ministério Público Federal, em dezembro, por formação de quadrilha, falsidade ideológica e contrabando. É formado por despachantes alfandegários e atinge as empresas Fly Horse, EPP, Guimarães Assessoria Aduaneira e Feat Transportes Internacionais, controladas pelos irmãos Alexandre, Eduardo e Fernando Costa Guimarães, que tiveram prisão preventiva decretada, mas estão soltos por habeas corpus. Eles foram responsáveis pelas importações de Longane de Laubry, Shalimar de Kerglenn e Cor de Hus.
O advogado dos irmãos Guimarães, Marcelo Cruz, alega que seus clientes, embora sejam proprietários, sócios ou diretores das empresas envolvidas com as importações de cavalos, não podem ser responsabilizados criminalmente porque não tinham ciência das operações irregulares e desconheciam qualquer fraude. A mesma denúncia atinge o despachante Paulo Sérgio de Oliveira Nadruz, que atua em Viracopos. Nessa fase da ação, nenhum comprador dos cavalos foi denunciado. O promotor Fausto Kosaka, da 9ª Vara, diz que a possibilidade de denunciar os membros dos outros dois núcleos está aberta e depende das investigações. A Receita estimou uma sonegação de R$ 160 milhões nos últimos anos, oriundos da importação de cerca de mil cavalos.
A operação teve, claro, impacto perturbador sobre a comunidade do esporte, mas para o presidente da Hípica Paulista, Romeu Ferreira Leite Jr., trata-se de um caso isolado. “É uma situação desconfortável para cavaleiros que adquiriram cavalos de maneira irregular, mas acho que são pouquíssimas pessoas”, afirma. “É uma minoria perto do tamanho do esporte.” Na Hípica Paulista, onde ficam hospedados quase 400 cavalos, havia, segundo ele, um ou dois animais sob investigação. O presidente do Centro Hípico de Santo Amaro, William Almeida, segue a mesma linha e diz que o caso deve se restringir a quem cometeu as irregularidades. Além disso, ele lembra que a discussão sobre os preços dos cavalos permanece controversa. “Cavalo não é como carro, não tem tabela Fipe”, afirma. “Não conheço a operação a fundo e imagino que houve alguma sonegação, mas há muitos cavalos na Europa que custam € 4 mil.”
Almeida conta que quando a Polícia Federal esteve em Santo Amaro à procura de três animais, um deles era um cavalo importado por 500 pesos da Argentina por um senhora que teria usado os serviços de um dos despachantes implicados. Trata-se, segundo ele, de um animal que vale realmente o preço declarado. A polícia verificou que o animal estava na escolinha da hípica e servia à iniciação das crianças. “Foi um tiro n’água”, diz. Outro questionamento da investigação envolve o haras Zangersheide Argentina, que cria cerca de 100 animais de salto por ano. Importadores alegam que os preços pagos correspondem aos realmente praticados na Argentina, onde cavalos de 4 anos são vendidos por US$ 4 mil.
Importar cavalos de salto continuará sendo uma necessidade, já que a demanda é maior do que a oferta. Faltam animais na base e também no topo. “O nosso problema é cavalo”, diz Leite Jr. O Brasil é uma terra de muitos cavaleiros excelentes, mas de poucas montarias de nível olímpico, capazes de saltar mais de 1,60 metro e cumprir percursos da mais alta complexidade. Um dos motivos é a limitação quantitativa do plantel nacional. Enquanto na Europa há uma superoferta de animais – só na Alemanha nascem anualmente 30 mil cavalos e éguas de salto –, no Brasil, esse número, segundo a Associação Brasileira dos Criadores do Cavalo de Hipismo (ABCCH), é de cerca de 800 nascimentos. Em uma criação qualificada estima-se que apenas 0,5% da tropa chegará a dar o salto olímpico. No Brasil, esse percentual será menor porque a formação do cavalo ainda deixa a desejar. Neste momento, apenas um animal nascido no país, um legítimo brasileiro de hipismo (BH), tem chances de participar dos Jogos do Rio. É Land Peter do Feroleto, montado atualmente na Europa por Stephan Barcha. Cavalos como ele custam a partir de € 2 milhões.
O primeiro efeito positivo da Sangue Impuro é dissuasivo. Se existia o vício persistente na sonegação de impostos, ele desapareceu. Neste ano, a fiscalização de Viracopos já relata importações de equinos por mais de R$ 1 milhão. “Com o valor de importação real sendo praticado, a tendência é que se valorize a base nacional e se incremente a importação de sêmen”, acredita o cavaleiro olímpico e treinador Artemus de Almeida. A criação nacional passa por uma melhoria constante e criadores pequenos têm optado mais pela inseminação e formação dos cavalos. O sêmen de animais bem qualificados europeus pode chegar a até € 7 mil, se for de um campeão.
Na Aman, a situação só melhorou depois da doação da Receita. Após dois anos na casa, eles elevaram o padrão de tratamento para todos os animais, que passaram a receber serragem nos estábulos. Além de Donna du Mesnil, o plantel ganhou o reforço dos cavalos sela belga Dorland van de Mespel e Gorco van de Groenendijk e das éguas Finesse, Havana AB e Skaya. Havana foi escolhida para ser matriz no criatório de equinos do Exército em São Borja (RS). Dos animais doados para o Exército, o que atingiu maior valor ao longo de sua vida foi Skaya, uma égua de 15 anos, pronta, consolidada, que, no auge, alcançou mais de € 100 mil. Se sua trajetória evoluir sem acidentes, dentro de três anos Donna será provavelmente a melhor saltadora da história da Aman. Na última prova de melhor cavaleiro da academia, o ganho de qualidade pode ser verificado. Com a participação dos animais europeus, a altura máxima saltada na competição subiu 20 centímetros, para 1,20 metro. “Comparada com dois anos atrás, a diferença é gritante”, afirma o capitão Rodrigo Barros, instrutor de equitação da academia, responsável por Skaya. “Comparar Skaya com os cavalos criados aqui é como comparar um jogador do Barcelona com um do Volta Redonda”, diz Barros. “A chegada desses animais só nos deu alegria.”
Fonte: G1