Nosso Fado Tropical
Artigo do advogado Diogo Conduru
“E se a sentença se anuncia bruta
Mais que depressa a mão cega executa,
Pois que senão o coração perdoa” (Ruy Guerra)
Tive um professor na academia, mas um amigo e um mestre pra vida, Atahualpa Fernandez, que defende a muito a ideia de que somos bichos biologicamente adaptados ao nosso entorno e que construímos diversos artefatos para o nosso complexo convívio social, dentre eles o direito e a relação organizada de poder. Diz, que dada nossas interações biológicas – que em muitas vezes não nos serve no complexo artefato social que criamos – nos induzimos por vezes a reprimir nossos instintos no intuito da árdua tarefa de modificar e não compreender a própria natureza humana. Para esta premissa é indiferente se, ato do acaso ou de um Criador.
Se para Freud a causa de toda psicopatia social advém da repressão sexual, diria que vem da repressão de nossos instintos biológicos de utilização da força e domínio.
O fato é que o homem foi adaptado às relações de poder, perpassando pela força física à intelectual, mas sempre retomando aquela, instintivamente, quando a necessidade o requer.
Um dos artefatos criados nesta relação foi exatamente o convívio através de uma república como forma de poder, em que temos o equilíbrio dos poderes como concretização daquele modo de governo e que se mostra ainda a maneira mais eficaz de combater a nossa instintiva inclinação de demonstrar a força sobre os semelhantes. Esta inclinação justifica o fato de que os escravos alforriados, por sua vez possuíam escravos e de que o oprimido de hoje será o opressor de amanhã.
Vivemos dias estranhos nesse equilíbrio social que criamos, principalmente em nosso País.
Felizmente não havia nascido quando vivenciamos em alguns momentos de nossa história, um Estado de exceção, mas ao longo de pouco mais de dez anos na advocacia, percebo que o estado de animo reprimido, substituído pela força física ao status social de autoridade, aqui e acolá aparecem e, nesses tempos estranhos, cada vez menos reprimida.
A advocacia, não sei se a única atividade da qual tenho experiência, é um termômetro sensível a modificação desta contenção social e instintiva de domínio de uns sobre os outros. Creio que de uma maneira geral todos os advogados vem percebendo essa mudança, que se dá através dos pequenos desrespeitos as suas prerrogativas, até mesmo ao total descaso de suas ponderações.
O fato, do qual cada dia me convenço, é que aquele que suprime direitos e garantias – artefatos criados para o convívio em sociedade – em regra o faz achando que se está fazendo um bem. Afinal, para os militares, se tratava de uma intervenção para o bem do País.
E aqui está o paralelo que desejo criar entre a nossa complexa formação biológica e os artefatos criados para o controle de nossas inclinações. Se é certo que somos seres adaptados para exercer domínio uns sob os outros, também é certo que os artefatos que criamos contém este domínio. Sendo assim, posso dizer que, uma vez desequilibrados estes artefatos, a tendência é que o instinto prevaleça.
A ultima grande crise de identidade e instituições que culminou com o regime militar de 1964 em nosso País, se deu graças a nossa inclinação e ao desequilíbrio de nossos artefatos sociais. Coube historicamente ao Congresso Nacional e a Ordem dos Advogados (não somente a eles), além de artistas e intelectuais, a luta concreta e devastadora para reerguer este equilíbrio. Muitos congressistas tiveram não só seus direitos políticos cassados assim como muitos advogados foram violentados da maneira como instintivamente estamos inclinados a resolver nossos problemas, com violência física e truculência ideológica. Se hoje a execração pública diminui o congresso e achincalha os advogados, deva-se muito a estes o direito, inclusive e ironicamente, de execrar.
Observando atentamente estes tempos estranhos, tenho percebido que o judiciário, cujo papel é fundamental em uma estrutura de poder equilibrada, dança na corda bamba entre a busca desse equilíbrio e o receio de um passado do qual fora ele próprio oprimido e submisso. Isso por que, em um debate cingido ao campo do equilíbrio de forças e aceitação das regras postas pelos que devem obedecê-las o judiciário é importante ferramenta, mas, se as regras postas não forem aceitas, o que pode ocorrer exatamente deste desequilíbrio, então o judiciário passa a ter um papel cada vez mais desarticulado da demanda pelo controle social. Isto por que, o sistema criado de equilíbrio perpassa, ao fim e ao cabo, pela força, colocada no mundo do ser. Não há ditadura do judiciário, posto que aos que aplicam o artefato humano mais complexo – a justiça – deve haver a compreensão de que não existe ditadura sem força. Não existe ditadura no campo das idéias.
Assim, tratando de instituições que devem ser equilibradas para ter a confiança daqueles que a elas se submetem e em ultima analise aceita reprimir os instintos de domínio e sobrevivência, é que hoje o poder judicante em nosso país sofre o mais profundo desafio de sua história e a mais importante crise de sua identidade.
O judiciário, que hoje vem despindo-se da deontologia jurídica que é peculiar a este poder e avança sobre o campo da ontologia, vem criando distorções que podem gerar o seu próprio fim, tal qual Robespierre, cuja cabeça foi ceifada pela própria guilhotina que tanto lhe serviu, ausente, sequer, de um julgamento.
Hoje o congresso nacional e a classe política estão expostos em praça pública, e os aplausos, em verdade, são o próprio florescer de nosso instinto mais primitivo: o justiçamento. Talvez o que não se esteja enxergando é que o sistema é autofágico e busca se reequilibrar, quando as instituições por nós criadas aceitam este (re)equilíbrio. A decisão do Supremo, por exemplo, (deontológica diga-se de passagem) de ordenar o cumprimento de pena quando do julgamento de 2o Grau não é desarrazoada de fundamento jurídico, mas certamente é um exercício de desequilíbrio dos poderes, uma vez que o sistema penitenciário não comporta tal concretização. O sistema já havia se equilibrado, para manter efetivamente preso aquele que representava um risco social mais imediato. Falar nisso, não é defender a impunidade, mas reconhecer que o sistema carcerário tal qual existe no mundo real (oncológico) nos dá essa única alternativa viável.
O mais grave deste episódio é que a única corte popular do nosso País, virou neste momento, uma corte oncologica e despida da realidade social, quando deveria ser exatamente o contrário. Se o Supremo não aplica o direito conforme a realidade social, então o Superior Tribunal de Justiça bastaria para aplicar o direito em suas premissas deontológicas. Em palavras mais grosseiras, ao Supremo caberia o intermédio das relações jurídicas do que deveria ser, para a realidade do que é.
Muitos daqueles que instintivamente aplaudem em praça pública a execração do dominante, é ele próprio afetado, mas nos calabouços do dia-a-dia, sem que ninguém o saiba ou o veja. O mesmo que hoje aplaude o carrasco pode ser o próximo destino dele.
Não tenho dúvida de que passamos por um momento determinante para a reestruturação e reequilíbrio do artefato que criamos, mas o sentimento contido e instintivo de arbitrariedade que cada vez mais sai do armário não pode sobrepujar a importância de instituições essenciais, como o Congresso Nacional e os próprios advogados que são em si, uma instituição, sob pena de causarmos um rompimento tão abrupto que perderemos o controle social de todos, que como eu, devem aceitar as regras postas.
O efeito Moro, cuja a intenção pode ser das melhores, não pode em nenhuma hipótese justificar os fins com os meios. Ainda que tenhamos o problema do orador, isso não invalida o seu discurso, a exemplificar um congresso em frangalhos que brada de costas para a opinião pública, mas de frente para o reequilíbrio de forças. Não pode a república se distinguir entre o certo (judiciário) e o errado (legislativo e executivo), quando o efeito democrático é que se trata de visões diferentes de um mesmo fato a buscar uma solução equilibrada.
Quando o judiciário, põe as vestes da acusação a qualquer preço, prisões indecentes que invertem a presunção da inocência, que não dão ao acusado os motivos do encarceramento, estaria atraindo para si a tarefa do carrasco que entende correto a eliminação daquele cuja cabeça lhe foi dada, até que chegue a sua vez, ou o momento em que a cabeça que está sendo ameaçada seja a da própria convivência social, passando então, aquele que aplica o direito, a ser vítima de si mesmo.
Fonte: RG 15\O Impacto