Dica Frazão deixa legado à cultura santarena
Artesã é referência mundial na utilização de materiais da floresta (fotos: museus.org e revista viamazonia)
“Uma perda imensurável para a cultura mundial, e especial para a santarena”, está foi a frase mais utilizada por autoridades, amigos e familiares da artesã Dica Frazão, quando da confirmação de sua morte, na sexta-feira (19). Ela estava internada desde o último dia 7 de maio, em um hospital particular da cidade, quando foi diagnosticada com problemas pulmonares.
Dedicação e determinação sempre foram às palavras-chave na vida da estilista e artesã santarena de 96 anos. Não à toa, seu trabalho conquistou o planeta. Observadora e portadora de uma criatividade sem igual fez de materiais típicos da Floresta Amazônica, verdadeiras obras de artes, que conquistaram o mundo, e graças a seu esforço, também conquistaram um espaço adequado, na terra que ela adotou de coração, Santarém.
O Museu de Artes Dica Frazão, idealizado e mantido pela própria artesã, desde sua inauguração em 1999, funciona em sua residência. O local também era o ateliê onde a artesã utilizava-se de matérias-primas extraídas da flora amazônica para confeccionar roupas e acessórios: entrecascas de árvore, fibras extraídas de capim, palha de buriti, sementes, raízes de patchouli e outros materiais.
A artesã lembrava aos visitantes, que já presenteou a Rainha da Bélgica, o Papa João Paulo II e outros chefes de estados com criações suas: “Pego a natureza e transformo em roupa, faço fibra virar pano. E minhas criações já ganharam o mundo!”, comentava.
Em documentário produzido por Humberto Souza em parceria com Thiago Guimarães (Unique Produtora), Dona Dica Frazão relatou um pouco de sua vida, bem como sobre outros aspectos que achava relevante acerca de sua trajetória.
“Comecei a trabalhar com a natureza no roçado, me apaixonei pela natureza muito cedo, trabalhando na roça, assim como um homem trabalhava para manter a família, eu saia com 15, 16 anos e até os 17 anos eu trabalhei em roça. Vim para Santarém dia 9 de janeiro de 1943, já casada, comecei a trabalhar costurando para colônia, quando pensei que não, já estava costurando para cidade, comecei a criar as coisas, comecei a fazer flores, copiando as flores da natureza. Pegava rosas despetalava e guardava no livro, tirava o molde das pétalas, colocava a rosa natural, e ia copiando até fazer igual. Eu me tornei uma das maiores decoradoras. Tive a ideia de desmanchar os ternos do meu pai, comecei a trabalhar nas roupas para homem, fazia os moldes e preparava os vestidos das noivas e os ternos dos noivos. Tornei-me alfaiate, fazia o terno igualmente o alfaiate sem nenhuma diferença. Quando cheguei em Santarém eu coloquei uma placa na minha porta ‘costura-se, bota-se, ensina-se corte e costura, flores de todas as espécies até cera eu trabalhava’. No dia 1º de janeiro de 1949, eu troquei os tecidos pela natureza, amanhecia no outro dia, eu já trabalhando com a natureza”, contou Dica Frazão.
No documentário, a artesã conta que foi a partir de um sonho, que começou a trabalhar com materiais da natureza. “Veio no meu sonho, meu trabalho nasceu de um sonho, eu sonhei e fiz um vestido para o réveillon, a moça queria um vestido com rosas de pena de arara e me disse ‘eu queria meu vestido com uma pena de arara’, eu respondi ‘minha filha, nunca vou fazer isso, por que fazer flor de pena, para mim não é novidade, faço até de pena de galinha, agora tem uma coisa, pegar uma arara que eu só vejo voar lá no alto não posso fazer’. A moça então disse ‘lá no meu sítio tem, eu vou mandar’ eu respondi ‘aí é outra coisa, mande as penas que eu faço’. Ao invés de mandar as penas, ela mandou duas araras mortas para mim, lindas e inteirinhas, guardei tudo quanto era pena. Quando eu dormi preocupada com as aquelas penas eu sonhei que tinha feito um trabalho muito bonito, parecia uma cauda de pavão bonito. Eu botava na parede no sonho, todo mundo queria um, quando foi dia 1º de janeiro de 1949, de manhã, eu levantei já fui fazer aquilo que eu vi no sonho, pois deu certo, eu fiz o mesmo, quando botei na parede, estava com dois vestidos de noiva em prova, a primeira noiva que entrou gritou ‘Dona Dica, como é que você fez isso, essa coisa tão linda na parede’ eu disse ‘a minha filha, mas eu não posso fazer, por que eu não tenho pena, isso é pena de arara, é muito difícil pegar’ ela disse ‘a eu vou mandar por que lá no sítio do fulano tem’. Depois disso começaram a mandar penas, não demorou, mandou fazer o leque para ela. Outra vez tornaram a encomendar e eu peguei a cauda da arara, fiz um arco, fez uma ventarola, pois naquele tempo não tinha ventilador, era para as minhas freguesas se abanarem, a primeira que viu disse ‘a eu quero um para mandar para o Rio de Janeiro’ e começaram a trazer penas, então eu fui deixando de costurar, terminei os tecidos que tinha em casa, não peguei mais costura, porque não dava mais tempo, ai veio uma carta lá do Rio de Janeiro, perguntando, quantas mil peças eu poderia entregar por mês, eu tive que largar tudo, aí eu comecei a trabalhar só com a natureza, pouco tempo em nome da ecologia eu deixei de usar os pássaros, troquei por aves domésticas. Hoje toda aquela maravilha que está no museu não tem nenhum pássaro, tudo é ave doméstica, é pena de peru, pato, urubu e ganso”, revelou a artesã.
O ícone da cultura santarena, prossegue seu relato, contando como suas obras ganharam o mundo. “Fernando Guilhon que deu o pontapé inicial da minha vida para o mundo, e não parou mais, passei a receber homenagens de todos os lados como plaquetas de prata e plaquetas recebidas pelo Fernando Guilhon, tenho uma honraria muito grande hoje pendurada em minha parede. Hoje eu tenho uma butique de luxo com roupas lindas e maravilhosas que vestem grandes autoridades do país mais sem tecido, tudo da natureza. Tem uma toalha de Juscelino Kubitschek feita com a raiz do patchouli, toalhas no Vaticano com palha de buruti, toalha branca da casca da Gadelha que está no Maranhão com uma juíza, todas as peças são importantes, as peças de Parintins no Amazonas são todas feitas com fibras naturais, eu teço a fibra no tecido, é muito difícil, é muito trabalho e muita mão de obra” disse, fazendo observações pertinente sobre o apoio das autoridades de nosso município: “Eu criei meu trabalho, eu lutei por ele e até hoje estou aqui, pouco reconhecido pelas autoridades da minha cidade, eu queria ser reconhecida pelas autoridades de Santarém, onde esse berço nasceu, será que eu não merecia isso? Será possível que o pessoal não enxerga uma coisa dessa? Eu faço minha aulas, ajudo todo mundo aqui, em troca disso o que eu tenho, nada! Só o nome e mais nada”, questionou na época que o documento foi gravado.
MEMÓRIA ETERNA: Após um importante trabalho desenvolvido pelo pesquisador Cristovam Sena, o Instituto Cultural Boanerges Sena, publicou o livro “Dica Frazão: A divina artesã”. Acompanhe abaixo comentários do pesquisador/organizador da obra, sobre os momentos vivenciados junto ao ícone da cultura santarena.
“Dona Dica Frazão foi a segunda mulher que entrevistei para o Projeto Memória Santarena, no dia 27 de junho de 1990. Foi uma tarefa prazerosa entrevistar a artesã Dica Frazão. Primeiro porque ela gosta de falar, de contar detalhes da sua trajetória de vida; segundo porque possui uma memória fantástica, daquelas de lembrar detalhes tanto da infância como dos fatos atuais. A conversa aconteceu à Rua Floriano Peixoto nº 281, onde ela reside até hoje e funciona o seu ateliê. A partir de 22 de junho de 1999 passou, também, a ser endereço do ‘Museu Dica Frazão’. De boa verve, imaginação fértil colocada à serviço da arte – razão da sua vida – vive rodeada de plumas, palhas, penas, sementes, cascas e entrecascas de árvores, cipós, produtos da natureza que com eles materializa seus sonhos que a tornaram uma divina artesã. De olhos vivos e brilhantes, na época com 70 anos, demonstrava um vigor extraordinário, uma vontade de viver que nos deixou impressionado, eu e o Emir Bemerguy, companheiro de entrevistas. Queria mostrar tudo, falar de tudo, muitas vezes de forma insistente, a deixar bem claro que tinha gostado da ideia de ser entrevistada, de participar do Projeto Memória Santarena. Em maio de 2014, quando foi para editar o livro ‘Dica Frazão, a divina artesã’, fruto da transcrição da nossa entrevista de 1990, fui novamente conversar com ela, precisava de fotos e outros documentos para ilustrar a obra. Já aos 93 anos, a encontrei sentada em uma cadeira de rodas – devido a um problema na perna direita, mas em seu ateliê, com tesoura segura na mão, tranquila a trabalhar. Ainda sonhando, fazendo o que gosta e a deixa feliz: arte. Fiquei emocionado ao encontrá-la tão bem disposta e lúcida. Passamos a conversar e ela foi desfiando lembranças sobre o nosso encontro de 1990, recordando detalhes daquele dia. Queria saber o que eu estava fazendo. Quando falei o porquê da minha visita ela abriu um sorriso de satisfação, de alegria, e disponibilizou o material que eu tinha ido buscar, com aquela boa vontade que é uma das suas marcas registradas, reconhecida por todos que a visitam. Isso, sem antes contar um pouco mais da sua vida. Natural de Capanema, dona Dica só conhecia Santarém através dos livros escolares utilizados no início do século XX, sendo o mais famoso deles o ‘Paleographo, ou a Arte de Aprender a Ler a Lettra manuscripta para uso das Escolas da Amazônia’, que traçava leves pinceladas sobre a historia de Santarém. Chegou aqui em 1943, com 23 anos, casada, com filhos e, como o imperador romano Júlio César, veio, viu e venceu. Seu artesanato há muito tempo ultrapassou as fronteira do Pará e do Brasil. Observando os vários livros de frequência dos que visitam seu ateliê para conhecer e adquirir seu artesanato, nota-se que ele se espalhou pelos estados brasileiros e exterior, principalmente a Europa. Agraciada com vários títulos e honrarias, um dos seus grandes incentivadores foi o governador Fernando Guilhon, que através do Estado facilitou a divulgação de seu trabalho promovendo uma exposição no Teatro da Paz, em 1972. O trabalho de Dona Dica Frazão é admirado por seu esmerado acabamento, variedade de cores e beleza estética, um atrativo turístico para Santarém, a Pérola do Tapajós. Dona Dica foi casada com Severino da Silva Frazão, considerado por alguns historiadores como responsável pela inclusão de Santarém na Área de Segurança Nacional. Tudo porque no dia 15 de fevereiro de 1969 assassinou o prefeito Elinaldo Barbosa dos Santos, na prefeitura, dentro do seu gabinete. Elinaldo tinha substituído o prefeito interino vereador Jerônimo Diniz, que por sua vez tinha substituído o prefeito Elias Pinto, eleito em 1966 para o período 1967/71, mas cassado em novembro de 1967. Minutos após ter assassinado friamente o prefeito Elinaldo Barbosa, Severino Frazão foi abatido a tiros por um sargento da polícia militar, a sangue frio, dentro da residência do vigário da igreja de São Sebastião. Ao sair correndo da prefeitura para a casa dos padres perdeu a arma, mesmo sem representar perigo foi executado pelo militar. E assim, com a eliminação do Frazão, o assassinato do prefeito Elinaldo Barbosa não foi devidamente elucidado. Sete meses após a tragédia – 12 de setembro de 1969 – foi assinado o Decreto Lei nº 866 que incluiu Santarém na Área de Segurança Nacional. Com a sua assinatura perdemos o direito de escolher nosso prefeito, que passou a ser nomeado pelo Presidente da República, depois pelo Governador do Estado. Excrescência que durou até 1985. Ano passado Dona Dica me telefonou, precisava conversar comigo. Como o livro ‘Dica Frazão, a divina artesã’ se restringiu a relatar sua vida de artesã, ela queria continuar a entrevista para poder contar o drama que foi a sua infância, adolescência e o relacionamento com, segundo ela, o doentio marido Severino Frazão. No dia 12 de dezembro de 2015 iniciei com dona Dica nova série de entrevistas em que ela conta sua longa vida de aventuras e sofrimentos. Fiquei mais uma vez admirado com a sua capacidade de relembrar fatos da sua infância, sua odisseia até chegar a Santarém e desembarcar em frente à Igreja Matriz. Filha mais velha de um agricultor, ficou órfã de mãe aos 12 anos de idade. Quando completou 14 anos seu pai saiu de casa. Se despediu dizendo que voltaria em três dias e sumiu. Deixou para a filha mais velha os sete irmãos mais novos para ela criar. Ao completar a narrativa da atitude inesperada do pai, me disse que só não se transformou em menina de rua porque Deus lhe deu forças para suportar a barra e encontrar o caminho da vida digna. O destino colocou a artesã Dica Frazão no nosso caminho. Precisamos reconhecer e dar mais valor aos seus trabalhos. Alguns deles foram presenteados à rainha Fabíola, da Bélgica, ao Papa João Paulo II, e ao presidente Juscelino Kubitschek”.
Por: Edmundo Baía Júnior
Fonte: RG 15/O Impacto