Indígenas Munduruku discutem com MPF extração ilegal de ouro no médio Tapajós
Procurador da República Paulo de Tarso Moreira de Oliveira: “Não se pode deixar os Munduruku sozinhos diante das invasões e do garimpo ilegal.
O povo Munduruku convocou e realizou uma audiência pública de dois dias na Terra Indígena Praia do Índio, em Itaituba, sudoeste do Pará, para discutir o problema do garimpo ilegal de ouro. A região do médio e alto Tapajós, território ancestral desse povo, é hoje uma das maiores áreas garimpeiras do Brasil, o que provoca graves danos ambientais e conflitos violentos. O Ministério Público Federal (MPF) participou dos debates, apresentando o resultado de pesquisas, ações judiciais e operações policiais que têm realizado para coibir a extração clandestina de minério.
O cacique Luciano Saw, da aldeia Patawazal, no rio Cururu, diz que existem dragas muito próximas de sua aldeia. “Garimpeiro não respeita mais demarcação, garimpeiro mora lá. Diz que tem documento na parede, mostra pra mim, pergunta se eu sei ler. Índio não sabe ler, mas ele diz que a gente não pode tirar de lá, que é dele, que ele tem direito de trabalhar lá na nossa terra. A gente sofreu tanto pela demarcação para ter a nossa terra e agora não tem mais portão, todo mundo entra. Os peixes agora a gente pesca e tem o beiço pendurado, estão magros, tartarugas morrendo, de tanta contaminação”, relatou.
“É balsa derramando óleo, peixe morrendo, igarapé contaminado, máquina destruindo tudo e a gente denuncia e ninguém fiscaliza. A gente precisa de uma solução”, disse Alessandra Korap Munduruku. “A gente tá resistindo desde 2015 sem o apoio das instituições. Cadê os projetos para resolver nossa situação? Eu sou ameaçada tanto internamente quanto externamente. O garimpo já tem mais de 30 anos no nosso território. Primeiro era artesanal, depois foi com máquinas pequenas, agora é com máquinas grandes. Quando vai parar? Quando destruir tudo?”, questionou Maria Leusa Munduruku.
Em resposta, o procurador da República Paulo de Tarso Moreira de Oliveira, cobrou responsabilidade das autoridades presentes. “Convido as instituições a uma reflexão. Não podemos aceitar o fracasso diante do problema das invasões e do garimpo ilegal. É tarefa das instituições apresentar soluções definitivas, não se pode deixar os Munduruku sozinhos diante da gravidade do problema. Eles não podem ser obrigados a lidar sozinhos com esses crimes”, disse.
O procurador mostrou aos cerca de 300 indígenas que participaram da audiência pública os estudos que comprovam que o desmatamento na região vem crescendo com velocidade a partir de 2013, associado à expansão de áreas garimpeiras. Entre 2013 e 2018, levantamento feito pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) registrou um crescimento de mais de 3 mil e 800% no desmatamento, acompanhando a abertura de garimpos. No total, foram derrubados 1761 hectares de floresta no período.
Para o MPF, o volume de ouro extraído, a magnitude dos impactos socioambientais e o uso de grandes máquinas não permite mais chamar a atividade no Tapajós de garimpo, trata-se de mineração. Pela legislação, o garimpo se caracteriza como atividade com limite de 50 hectares e uso de instrumentos manuais. “Se usa máquinas, retroescavadeiras, não se trata mais de garimpo, mas de mineração. E a mineração tem exigências ambientais mais rigorosas, demanda estudos de impacto ambiental completos e prevê recomposição florestal. Como a atividade é clandestina, nada disso vem sendo observado”, disse o procurador Paulo de Tarso aos Munduruku.
O procurador Paulo de Tarso explicou que todo ouro proveniente de terras indígenas é ilegal, portanto o comércio dele também é ilegal, mas o controle é extremamente ineficiente. O MPF tem feito investigações e operações em conjunto com a Polícia Federal para coibir esse comércio e está cobrando o cumprimento das previsões normativas para que o controle do comércio de ouro seja feito a partir de dados informatizados. “Hoje em dia, não existe nenhuma forma de saber a origem do ouro que chega ao mercado. A Agência Nacional de Mineração (ANM) precisa dar resposta a essa questão com urgência”, cobrou.
Contaminação – Além de máquinas de grande porte, a mineração clandestina no Tapajós tem como característica o uso sem controle de substâncias altamente tóxicas para separação do ouro, principalmente o mercúrio. Convidados pelos indígenas, os pesquisadores Sandra Hacon e Marcelo Firpo, da Fundação Osvaldo Cruz (Fiocruz), expuseram as pesquisas sobre as consequências da contaminação por mercúrio sobre populações humanas. O mercúrio é um metal altamente tóxico, com efeitos cumulativos, sistêmicos e neurotóxicos, o que significa que a exposição prolongada afeta o cérebro e todos os sistemas do corpo humano.
“Eu vi garimpeiros contaminados por longos anos de exposição ao mercúrio batendo a cabeça contra a parede seguidas vezes, em delírios alucinatórios”, relatou Sandra Hacon aos Munduruku. A substância está associada também a transtornos mentais como ansiedade, depressão, suicídio, autismo, psicoses e manias, além de comprometer os sistemas imunológico, gastrointestinal, renal, cardiocirculatório, endócrino e motor. Os danos à saúde costumam aparecer depois de certo tempo de exposição, por isso é muito difícil a detecção precoce. O mercúrio também atravessa a barreira placentária, o que significa que pode provocar malformações fetais.
Os pesquisadores explicaram que, a partir de agosto de 2018, o Brasil homologou sua adesão à Convenção de Minamata, que estabelece obrigações de controle de fontes e comércio de mercúrio até a eliminação ou redução do uso do mercúrio em determinados produtos e processos industriais (como, por exemplo, baterias, interruptores, lâmpadas fluorescentes, pesticidas e cosméticos). “A convenção também traz a obrigação do manejo ambientalmente adequado de seus resíduos, o gerenciamento de áreas contaminadas por mercúrio e medidas relativas à mineração de ouro artesanal e em pequena escala”, explicou Firpo. O nome da convenção lembra o desastre da baía de Minamata, no Japão, onde cerca de 700 pessoas morreram e milhares foram contaminadas, após duas décadas de lançamento de rejeitos com mercúrio nas águas por uma fábrica local. As vítimas foram contaminadas pela ingestão de peixe, base alimentar dos japoneses, assim como dos povos amazônicos.
Representantes do povo Ianomâmi, de Roraima, foram convidados pelos Munduruku para relatar a sua experiência com a mineração ilegal, que vem provocando, desde a ditadura militar brasileira, uma série de conflitos, epidemias, contaminações e massacres pela presença de garimpeiros clandestinos no território. Eles também convidaram a Fiocruz, em 2014, para uma análise de amostras de água, pescados e cabelo, que constatou a contaminação tanto ambiental quanto nos indivíduos. “A situação não está bem”, disse Reinaldo Yekoana Ianomami. Ele lembrou Davi Kopenawa, o líder Ianomami que lamenta que os próprios indígenas estejam virando inimigos da natureza e de seus filhos e netos, que dependerão dela. “É lamentável que o Tapajós não esteja sendo preservado. Não é para nós que estamos aqui, é para as futuras gerações. As autoridades têm que ouvir a nossa fala”, disse.
Robivaldo Yekoana Ianomami disse que veio avisar os Munduruku sobre os riscos do garimpo. “A visão dos brancos é diferente, pensa só hoje, não pensa no amanhã. Daqui a pouco a natureza vai se revoltar contra os brancos. É por isso que os não-indígenas precisam respeitar os indígenas”, avisou. Tanto o povo Munduruku quanto o povo Ianomami gravaram em vídeo os registros da destruição provocada por invasores, sejam garimpeiros, palmiteiros ou madeireiros, em suas terras.
Ataques, conflitos e ameaças – A presença de invasores tanto em terras indígenas demarcadas quanto não-demarcadas, assim como nas florestas públicas da região provoca conflitos graves e deixa lideranças que atuam na proteção dos territórios em situação de ameaça. Também convidados para a audiência pública, os beiradeiros da comunidade Montanha Mangabal que mantém uma aliança com os Munduruku para proteção dos territórios da região, têm uma liderança ameaçada e incluída no programa de proteção a defensores de direitos humanos. “Minha vida mudou completamente, vocês não sabem o que é ter que informar cada passo que eu dou, viver escoltado, tive que ir pro exílio”, contou Ageu Lobo.
“Ribeirinho é esquecido no Brasil, parece que nós nem somos brasileiros. Nós vivemos com as nossas forças, tamos fazendo tudo sozinhos, até um ramal estamos fazendo por nossa conta, tivemos que autodemarcar nosso território”, contou a ribeirinha da Montanha Mangabal, Solimar Ferreira dos Anjos. Lideranças indígenas do povo Munduruku também vem sofrendo ameaças e poucos dias antes da audiência pública, numa comunidade entre a Itaituba e Novo Progresso, uma equipe de fiscalização do ICMBio sofreu um ataque por moradores. A Polícia Militar chegou a tempo de evitar um confronto, mas os agentes tiveram que ser retirados do local e, por alguns dias, o trabalho chegou a ser suspenso no Pará, até a chegada da Força Nacional para garantir a segurança.
O procurador Paulo de Tarso lembrou, durante a audiência pública, que o ouro é um recurso que traz lucros imediatos, mas é esgotável. “O ouro vai acabar. E quando ele acabar, o que vai ser feito? As pessoas que mais faturam com exploração mineral não moram no Tapajós. Moram em Belém, moram em Brasília, moram no exterior. Claro que temos que trabalhar com projetos, mas é preciso entender que nenhuma atividade econômica vai dar um lucro tão fácil quanto a extração de um metal valioso. Tem que ser feita uma reflexão: será que vale a pena apostar em um lucro de curto prazo e sacrificar a vida das gerações futuras?”, perguntou.
Números do garimpo no Tapajós – O Secretário Municipal de Meio Ambiente de Itaituba, Bruno Rolim, participou da audiência pública e disse que na tentativa de melhorar a arrecadação de impostos, sofreu ameaças também. Ele calcula em 2 toneladas por mês a quantidade de ouro saindo ilegalmente de Itaituba, através de pistas de pouso clandestinas.
Em laudo preparado pela Polícia Federal recentemente, constatou-se que a mineração ilegal de ouro despeja a cada 11 anos, nas águas do Tapajós, o equivalente a uma barragem da Samarco, que rompeu em 2015 destruindo a calha do rio Doce, entre Minas Gerais e o Espírito Santo.
Segundo a Secretaria de Meio Ambiente e Sustentabilidade do Pará (Semmas), existem 12 mil pedidos de autorização para pesquisa minerária no estado, mas apenas 120 autorizações de lavra efetivamente concedidas.
Fonte: RG 15/O Impacto e MPF