Arquivado inquérito sobre homicídio de indígena que teve o coração e o fígado triturados no Pará

Um inquérito que apura o assassinato de um indígena de 16 anos, que teve o coração e o fígado triturados por outros dois indígenas, foi arquivado pelo Ministério Público Federal (MPF) do Pará. A decisão, do último dia 4 de novembro de 2021, reconhece que “os povos indígenas são culturalmente diferenciados” e, por conta disso, devem ter “sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições” respeitados.  A morte teria ocorrido no âmbito de um tradicional ritual da comunidade, denominado “pajelança brava”.

O documento foi homologado pela 2ª Câmara de Coordenação e Revisão, que trata de questões criminais. Segundo consta na decisão, uma mulher indígena procurou a Delegacia de Itaituba, no sudoeste do Pará, no dia 21 de julho de 2015, para denunciar um crime bárbaro: o filho de 16 anos havia sido morto a tiros por outros dois indígenas na aldeia Sai Cinza, do povo Munduruku.

O adolescente foi assassinado dentro da própria casa, arrastado até o rio Cabitutu, a aproximadamente 10 quilômetros de distância, e esquartejado em pequenos pedaços. A vítima teve ainda o fígado e o coração retirados e triturados. As outras partes do corpo foram amarradas em uma pedra e jogadas no rio.

A motivação para o crime foi a morte por afogamento de um outro indígena, no dia 1º de junho do mesmo ano. Segundo o relato, os pais da vítima consultaram lideranças da aldeia – como o pajé, o capitão, o cacique e outras pessoas – após o ocorrido. Eles teriam atribuído a morte do rapaz a um feitiço feito pelo adolescente de 16 anos. A vítima foi apontada como o “pajé brabo” ou feiticeiro, que deveria ser executada pela comunidade, já que a conduta de magia negra é passível de pena de morte na cultura Munduruku.

Segundo defende o MPF, “os índios, de acordo com seus usos e costumes, aplicam sanções aos que transgridem as normas de convivência estabelecidas pelo grupo a que pertencem, observadas certas particularidades decorrentes de seu modo de vida, tradições e crenças” e isto é “uma das formas de expressão do direito ao autorreconhecimento”.

No documento, o órgão aponta para a Constituição Federal de 1988, que “avançou na regulação estatal dos direitos indígenas, rompendo com o assimilacionismo e atestando o direito do índio de se manter como tal” e que, no artigo 231, “reconhece a resolução de conflitos por métodos próprios tradicionais indígenas”.

Ainda conforme a decisão, os envolvidos no assassinato do indígena não reconhecem que houve crime e que intervir no caso seria uma ofensa para a etnia Munduruku. “Para eles, a norma penal não alcança a pretendida função motivadora, tampouco alcançaria qualquer fim preventivo, geral ou especial, a imposição de uma pena. Além da imperiosa necessidade de resguardar a manifestação cultural da etnia, praticada dentro da coletividade, nos limites da aldeia, em diversas passagens do procedimento investigatório criminal fica claro que qualquer ato de investigação judicial tendente a apurar os fatos, representa indesejável ofensa aos meios culturais de aplicação da justiça e encontrará expressiva resistência dos indígenas”, conclui o documento.

Apesar do caso ser considerado bárbaro para a nossa sociedade, a execução do jovem foi a penalidade natural para o que é considerado crime na comunidade Munduruku, conforme aponta uma nota técnica da Fundação Nacional do Índio (Funai), protocolada pouco depois, em 11 de maio de 2016, em que foi embasada a decisão.

Segundo o advogado e antropólogo Vinicius da Silva Machado, é necessário avaliar o caso sob a ótica cultural antes de qualquer julgamento equivocado. “É uma questão que a gente tem que começar a refletir pela cultura. Quando a gente vai tentar entender questões como essa com os nossos olhos, vemos com estranhamento. Mas quando a gente se abre para entender a cultura do outro, a gente cria um outro entendimento. A decisão é amparada pela Convenção n° 169 da OIT sobre Povos Indígenas e Tribais, pela ONU (Organização das Nações Unidas) e pela OEA (Organização dos Estados Americanos), que afirmam que os sistemas culturais indígenas devem ser respeitados”, inicia ele, que é assessor jurídico do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) do Pará e doutorando de Direitos Humanos na Universidade Federal do Pará (UFPA).

O especialista afirma ainda que o fato de os envolvidos serem indígenas e do caso ter ocorrido dentro de uma comunidade da mesma etnia, também foi um fator dominante para a decisão do MPF. “Tudo ocorreu dentro de um determinado sistema, com normas e perspectivas de mundo singulares que devem ser respeitadas. Todos os envolvidos são indígenas, da mesma etnia, então eles compartilham o mesmo universo simbólico, a mesma cultura, as mesmas compreensões como Mundurukus”, pontua. “Eles não têm uma independência como nação soberana, porque estão no território brasileiro, mas têm autonomia. Para eles, não é um assassinato. Para eles, o adolescente sofreu uma sanção por ter cometido um crime”, pondera.

Vinicius Machado aponta ainda que isso não significa que os indígenas não possam ser submetidos às leis do Brasil. “O que eles fizeram é permitido dentro do universo simbólico deles. Se fosse outro local, fora do território deles, com outra pessoa, aí o estado brasileiro poderia julgar de forma diferente. Mas nesse caso, as normas brasileiras permitem a autodeterminação e dentro do sistema jurídico existe o respeito ao sistema cultural deles, que têm as normas, diretrizes e sanções próprias”, conclui.

Decisão controversa

A decisão foi alvo de controvérsias entre leigos e autoridades no assunto. O advogado criminalista Tiago Brito, que é diretor jurídico da Secretaria de Estado de Justiça e Direitos Humanos (SEJUDH), é categórico ao discordar da decisão proferida pelo MPF. “O posicionamento  referente ao caso é uma verdadeira conivência com a prática desumana, representando uma verdadeira desvalorização da da vida indígena”, analisa.

Segundo o especialista, o respeito à cultura não deve se sobrepor às normais e direitos fundamentais. “A argumentação de que deve ser respeitada a cultura indígena, a meu ver, afronta, na interpretação do caso concreto, o Estado Democrático de Direito, que reconhece a vida como um bem supremo e que deve ser resguardado, portanto, sem qualquer distinção, até mesmo em relação às questões culturais. (É preciso) compreender que a cultura indígena pode representar uma verdadeira desumanidade, uma crueldade com o ser humano, como o que foi feito com esse jovem de 16 anos, por uma interpretação de parte dessa aldeia”, pontua.

Brito sustenta ainda que o argumento cultural não é unânime para embasamento da decisão. “Não existe uma unanimidade. Tanto que a própria mãe, que faz parte daquela cultura indígena, levou até o órgão competente para que fosse realizada a apuração. E passado um lapso temporal desse e a mãe ainda obter essa resposta de que faz parte da cultura e que portanto deve ser tolerado e que não há um crime por parte dos indígenas que mataram de forma cruel esse jovem… Isso merece ser rechaçado”, conclui.

Fonte: O Liberal

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