Dezenas de municípios brasileiros não aplicaram 1ª dose em metade da população

Apesar de a vacinação contra a Covid-19 no Brasil andar em bom ritmo, há no país um número expressivo de municípios cuja adesão ao imunizante está abaixo dos 50% da população. Autoridades locais alegam medo e resistência das pessoas para avançar com o programa de imunização.

Dados do Ministério da Saúde mostram que, ao todo, mais de 70% da população brasileira já receberam a primeira dose, e mais de 60% das pessoas estão com o esquema vacinal completo – ou seja, tomaram duas doses ou a vacina de dose única. Isso coloca o Brasil bem acima da média global de imunização, que gira em torno de 40%.

Ainda assim, ao menos 50 municípios brasileiros estão bem atrás do parâmetro nacional, não tendo vacinado, sequer com a primeira dose, nem metade da população, e é possível que esse número seja ainda maior, considerando as dificuldades de acesso a dados e divergências de informações disponibilizadas pelos governos. O cenário é um risco para o combate à pandemia no país, enquanto o mundo se preocupa com o surgimento de uma nova variante do vírus, a Ômicron, mais transmissível que as cepas anteriores, até onde se sabe.

Lideram a lista de cidades de baixa imunização localidades na região norte, em particular do Pará, Amazonas e Roraima. A CNN identificou ao menos 20 municípios apenas no Pará que não chegam a 50% da população com a primeira dose da vacina. Há casos ainda em Rondônia, Acre, Mato Grosso, Pernambuco, Bahia, Minas Gerais e Rio Grande do Sul.

O levantamento foi feito, a pedido da CNN, a partir de um cruzamento de dados realizado pelo Laboratório de Estatística e Ciência dos Dados da UFAL (Universidade Federal de Alagoas), com os dados disponibilizados pelo Ministério da Saúde e as estimativas populacionais do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Além disso, a reportagem checou as informações disponibilizadas pelas secretarias de saúde estaduais e municipais, e entrou em contato com algumas delas para confirmar e esclarecer os números.

Em comum, a maior parte desses municípios são predominantemente rurais, de largas extensões e pequena população. Eles não têm seus vacinômetros atualizados há semanas, e algumas autoridades com as quais a CNN falou não sabem precisar ao certo quantas doses foram aplicadas -reconhecem, porém, que foram poucas.

No geral, secretários de Saúde municipais alegam que sobram vacinas, mas falta público. A CNN também acionou o Ministério da Saúde, que não respondeu.

Medo é maior dificuldade

Derradeiro na lista de taxas de imunização, São Félix do Xingu, no coração do Pará, é um município de mais de 84 km2 – quase o dobro do estado do Rio de Janeiro. Segundo o DataSUS, apenas 9% de sua população de 130 mil habitantes recebeu a primeira dose da vacina contra Covid-19. Já o vacinômetro do governo do estado do Pará aponta um pouco mais: 18%.

“É medo, desinformação, fake news, religiosidade, fanatismo político”, diz o secretário de saúde Raphael Antônio de Lima Souza. “Temos centro de vacinação até à noite, vacina à vontade, delivery, vacina em casa, tem tudo. Eu mesmo fui pessoalmente nos bairros. A cada cinco que conversava, convencia um. Falam que já pegaram Covid, ou que não pegaram até agora, não pegam mais, que tem chip na vacina, vão morrer daqui dois anos.”

O cenário se repete em Cachoeira do Piriá, leste de Belém. “Tem comunidade que fica a 130 km da sede, só chegamos em estrada de chão, e mesmo assim a gente chega”, relata o secretário de Saúde Keynes Lemos da Silva. “Uma equipe volante percorre as comunidades, fazemos ações itinerantes, batemos de casa em casa, explicando a importância da vacina, mas as pessoas se escondem.”

De acordo com o vacinômetro do Pará, apenas 37% da população de Cachoeira do Piriá, de 34,6 mil habitantes, havia recebido uma dose do imunizante em dezembro.

“A logística do interior é complicada, mas estamos vacinando todos os dias, fazemos repescagem a cada 15 dias. Em vez de o público vir até a vacina, estamos levando a vacina até o público”, argumenta Gilberto Bianor, secretário de Placas, oeste do estado. A taxa por lá é de 33% de aplicação da primeira dose.

Ao todo, no Pará, 72,84% da população recebeu a primeira dose. Em Belém, na capital, foram 76,9%. Mas há municípios que não aplicaram a primeira dose em nem sequer um terço das pessoas, como os já mencionados. O governo do estado avalia o cenário com preocupação.

“​​É necessário que o Estado avance na cobertura vacinal para garantir uma maior proteção à população”, respondeu em nota a Secretaria Estadual de Saúde.

Segundo a pasta, há dez municípios prioritários de atenção, selecionados a partir da avaliação dos dados epidemiológicos e de cobertura vacinal. Além de São Félix do Xingu, estão na lista Altamira, Ananindeua, Cametá, Castanhal, Itaituba, Marabá, Redenção, Santarém e Tucuruí — embora a maior parte da lista já tenha vacinado uma porcentagem bem mais considerável da população.

Confiar na baixa infecção é um risco

Especialistas não se surpreendem com a capacidade do Sistema Único de Saúde (SUS) de levar a vacina às áreas de difícil acesso do país. Já o alcance das fake news causa maior espanto. A resistência ao imunizante, ainda que pequena, contradiz o histórico nacional quando o assunto é vacinar.

“Nunca tivemos um movimento antivacina forte no país, e a taxa nacional de imunização está aí para provar isso. Mas há muitos lugares em que o acesso à informação é mais complicado”, diz Ethel Maciel, professora do Departamento de Enfermagem e coordenadora do Laboratório de Epidemiologia da Ufes (Universidade Federal do Espírito Santo).

“Assim como a vacina chegou a esses lugares, apesar das dificuldades geográficas, as fake news também chegaram. É impressionante o impacto da má comunicação”, completa Evaldo Stanislau, infectologista do Hospital das Clínicas da USP (Universidade de São Paulo) e membro da diretoria da Sociedade Paulista de Infectologia.

Outro fator que pode levar à resistência populacional é o fato de a taxa de infecção não ter crescido de forma significativa nesses locais. Para os especialistas, há dois fatores essenciais que podem explicar isso: um de ordem imunológica e outro, geográfica.

“Se o vírus já circulou por ali, pode haver um certo grau de imunidade que dura por um período de tempo, alguns meses ao que sabemos. O segundo fator que contribui para isso é o deslocamento das pessoas. Por serem regiões isoladas, com populações pequenas e de pouca circulação, pode-se ter uma situação de relativo equilíbrio”, diz Stanislau. “Mas evidentemente, se o vírus chegar até lá de alguma forma, ele pode se espalhar, assim como se uma pessoa infectada sair. Diria que esses municípios estão com muita sorte, e sorte nunca é algo bom quando falamos de saúde pública”, alerta.

Maciel chama atenção para o fato de não haver, no Brasil, testagem em massa da população que confirme essa tese. “As pessoas só são testadas se realmente ficam doentes e, em geral, pessoas que moram em lugares afastados não costumam ir ao serviço de saúde a não ser que estejam com o quadro de maior gravidade”, diz.

“Provavelmente essas pessoas se contaminaram, mas tiveram sintomas leves, o que não significa que em uma possível reinfecção, em particular com uma nova variante, o quadro venha a ser leve também.”

Ela cita como exemplo a ação da variante Delta em locais de baixa vacinação nos Estados Unidos. “Vimos lá que estados com uma vacinação muito menor foram os que mantiveram a variante circulando com alta transmissão e aumento preocupante de internações. Precisamos ficar muito atentos para que isso não aconteça com a Ômicron.”

Cuidados básicos ajudam a prevenir a Covid-19 e a gripe

O médico e advogado sanitarista Daniel Dourado analisa que esses municípios são uma espécie de “reservatório de suscetíveis”, em particular quando se teme a propagação de novas variantes mais transmissíveis e letais.

“Municípios muito pequenos podem ter impacto mínimo ou nenhum para a infecção no estado. Mas caso o vírus entre, essas populações estão mais expostas a se contaminar, tanto do ponto de vista individual, quanto coletivo, e a depender do perfil populacional, os casos são mais ou menos graves, podendo ser letais.”

No final de novembro, o epidemiologista da Fiocruz Amazonas, Jessem Orelana, falou à CNN Rádio que as cidades de baixa imunização já registravam aumento de casos, com surtos no alto Rio Solimões, alto Rio Negro e na cidade de São Gabriel da Cachoeira.

No dia 9, o prefeito de Apuí, no Amazonas, Marcos Antonio Lise, divulgou um vídeo manifestando sua preocupação com o crescimento dos casos localmente. Um decreto suspendeu as celebrações de final de ano, após o município chegar ao patamar de 13 casos diários e cinco internações – entre elas, duas pessoas não vacinadas em estado grave.

O único caminho para evitar o cenário mais catastrófico, dizem, é pela comunicação. “Temos exemplos folclóricos de municípios que pegaram carro de som, fizeram o caminhão da vacina, grupo comunitário, panfleto, reunião na praça. É necessário o acesso direto com a população para explicar as vantagens da vacina, porque é importante todo mundo se vacinar, mesmo com poucos casos”, diz Dourado.

“Fazer aquilo que era para ter sido conduzido pelo governo federal e que acabou ficando na mão dos governos estaduais e municipais.”

A Secretaria de Saúde de Roraima, que também reconheceu o fato de o estado ter baixa procura pela vacina “devido a resistência e desinformação”, firmou neste mês uma parceria com o Ministério da Saúde, a Opas (Organização Pan-Americana de Saúde) e 11 prefeituras para intensificar a campanha contra a Covid-19 nas áreas rurais.

Em particular, em Iracema e São Luiz, onde as taxas de vacinação são as mais baixas – 44% e 46% das populações locais tomaram a primeira dose, respectivamente, segundo o vacinômetro estadual.

O governo de Pernambuco também lançou nesta semana um programa que contará com equipes itinerantes para levar a vacina a áreas de difícil acesso, a começar pelos municípios de ​​Água Preta e São Benedito do Sul. O objetivo é não apenas localizar moradores não vacinados, mas também aqueles que estão com a segunda dose em atraso.

Problemas com dados

Identificar quais são as cidades com baixa vacinação e a porcentagem correta de imunizados em suas populações é um desafio.

Isso porque há uma grande divergência entre os dados divulgados pelo SUS, pelos governos estaduais e pelos governos municipais – esses, por vezes, inacessíveis. Além disso, um ataque hacker na sexta-feira (10) derrubou o site do Ministério da Saúde, comprometendo a disponibilidade das informações.

“Vamos conviver com esse vírus por muito tempo ainda, por isso nosso sistema de informações precisa melhorar”, crítica Krerley Oliveira, coordenador do Laboratório de Estatística e Ciência de Dados (LED) da UFAL e colaborador do Painel da Vacinação, plataforma que monitora o andamento da campanha no país, com base nos dados do Ministério da Saúde. ”Não sabemos ao certo, por exemplo, a relação dos municípios pouco vacinados com o aumento de infecções. Isso é algo que precisa ser mais bem investigado, de maneira oficial e consistente, e não só pelo trabalho voluntário de professores e alunos universitários.”

O LED-UFAL realizou o cruzamento de dados entre as informações do DataSUS e do IBGE para discriminar a porcentagem da população de cada um dos 5.568 municípios brasileiros que receberam a primeira dose. Os dados do SUS, no entanto, têm erros e imprecisões, devido a falhas e atrasos no lançamento e atualização de informações no sistema, além de erros de digitação e preenchimento.

Para chegar aos municípios citados, a CNN consultou informações disponibilizadas pelas três esferas de poder, além de fazer contato direto por email, telefone, facebook ou whatsapp com algumas prefeituras. Foram eliminadas do levantamento as cidades que ultrapassam os 50% de vacinados segundo ao menos uma dessas fontes. Já os municípios citados nesta reportagem apresentaram proporções insuficientes de vacinados em todas as bases consultadas, ainda que houvesse diferença de informação entre elas.

Fonte: CNN Brasil

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