Cresce a disseminação do ódio contra mulheres na “machosfera”
O avanço de grupos extremistas misóginos, como o “red pill”, do qual faz parte o coach Thiago Schutz, acusado de ameaçar de morte a atriz e humorista Livia La Gatto, chama a atenção no Brasil. Seus integrantes praticam o ódio às mulheres e se baseiam na ideia de um suposto resgate da masculinidade, sendo vistos por especialistas como uma reação, ainda esparsa e sem coordenação, à maior participação das mulheres em espaços de poder.
Um dos movimentos que compõem a chamada “machosfera”, o “red pill” é uma forma machista de pensar e ver o mundo, que deturpa o conceito do filme “Matrix” para subestimar os direitos das mulheres. Para eles, pessoas do sexo masculino devem saber dominar as mulheres e não permitir que elas sejam “aproveitadoras”. Os extremistas se organizam especialmente em redes como Instagram, Facebook, Tik Tok e YouTube. Muitos são pagos pelas plataformas por terem engajamento em vídeos, artigos e até livros que ensinam como “desarticular” as “trapaças amorosas” das mulheres. Nos materiais, elas são descritas como seres de “potencial demoníaco” regidos “pelo egoísmo sentimental”.
– O masculinismo defende o resgate de uma certa virilidade masculina que se sente em baixa perante a ascensão da agenda feminista. Está muito atrelado ao ressentimento do homem pelo tanto que as mulheres conseguiram conquistar em direitos e espaços — afirma a socióloga Camila Galetti, especialista em política institucional, feminismo e neoliberalismo, e doutoranda da UnB.
Levantamento da agência de checagem Aos Fatos mostrou que, entre 80 canais do YouTube que divulgam vídeos nesse estilo, 35 são monetizados pela própria plataforma com anúncios e programa de assinaturas. Outros 36 utilizam estratégias como vendas de cursos e de e-books. Nas plataformas onde os homens se articulam, é comum encontrar termos depreciativos, como o chocante “depósito de porra”, para se referir às mulheres, ou ainda o neologismo desqualificador “merdalher”, como forma de objetificação.
Ataques virtuais
Um dos debates que mais mobilizam grupos masculinistas é o da lei de alienação parental, usada em muitas situações para silenciar denúncias de mulheres vítimas de violência doméstica ou encobrir pais acusados de pedofilia. Por ser crítica da lei, a advogada de direito das famílias Mariana Regis se tornou alvo de ataques coletivos virtuais no ano passado, que chegaram a deixar seu Facebook fora do ar por um mês.
— O objetivo deles é me punir e me silenciar. Querem que eu pare de falar sobre esses assuntos — diz a advogada.
Em razão de seu posicionamento, Mariana foi chamada de “advogada suja e estúpida”. Uma pessoa escreveu que ela deveria “morrer de fome” e, num grupo de WhatsApp, foi feita uma convocação de hackers para derrubar suas redes. A advogada conta que bloqueou os comentários e os perfis que a atacaram. Também denunciou ao Instagram, mas de nada adiantou.
As redes sociais, apesar de terem políticas de banir conteúdos que violam direitos e explicitam violência, acabam se tornando terra de ninguém devido à forma como grupos camuflam conteúdos com palavras inventadas e vídeos em tom de entretenimento. E as plataformas falham ao não criarem algoritmos mais precisos para analisar vídeos e textos, como ressalta o psicólogo e pesquisador de grupos masculinistas da USP André Villela. Procuradas, as redes sociais citadas não se pronunciaram.
— Desde antes da década de 1970 existiam homens nos EUA que se reuniam para debater seus direitos por verem as mulheres conquistando espaço. Com a ascensão da direita em 2013 e a internet se tornando um espaço globalizado, os grupos conseguiram se espalhar pelo mundo com ideias misóginas que são ignoradas pelas redes sociais. As plataformas não são ingênuas: elas mantêm os conteúdos porque o ataque às mulheres é banal nos grupos e, no fim, todos ganham dinheiro com isso — explica ele.
Uma pesquisa do psicólogo, em posts e manifestações on-line, dá indícios de que essas masculinidades estão associadas a homens jovens, brancos, heterossexuais, cisgêneros e dotados de alto capital cultural. Em sua maioria, publicam conteúdos misóginos em perfis fakes. Os sites costumam dar espaço a animes (desenhos japoneses), música, humor, política conservadora e pornografia.
O “red pill” abarca ainda outras terminologias, como os “involuntary celibates” (incels) ou “celibatários involuntários” — homens que se dizem rejeitados e se mantém virgens —; os “pick up artists” ou “artistas da sedução”, que vendem cursos sobre como ter sucesso sexual; e os “Men Going Their Own Way” (MGTOW) ou “homens seguindo o seu próprio caminho”, que defendem o rompimento com as mulheres, pois, para eles, o feminismo as torna perigosas.
Uns querem distância e outros desejam “usar” as mulheres. Mas o mal comum desses movimentos é a aversão ao feminino. Há homens que seguem mais de uma linha. Thiago Schutz, que justificou ter usado a palavra “bala” contra Livia La Gatto de forma figurada, é um aconselhador “red pill”, mas também se enquadra como “pick up artists”. Para a socióloga Camila Galetti, apesar da articulação política, esses grupos misóginos não são um movimento social.
— Não há uma organização ou agenda em comum — explica. — Esses grupos existem há muito tempo, mas são incitados a depender do contexto político e social. A partir de 2018, ganharam mais força com os discursos misóginos do então presidente americano Donald Trump, que ficou inclusive conhecido como “homem das cavernas”.
Ausência de leis
A advogada Luanda Pires foi atingida pela mesma violência que combate todos os dias como diretora de políticas públicas e uma das fundadoras da Me Too Brasil. Recentemente, um e-mail anônimo a alertou que o agressor de uma mulher acolhida na ONG teria dito que queria matar Luanda. Dias depois, saindo de um supermercado, ela foi avisada por outra mulher que um homem tinha aberto seu carro e colocado um objeto no veículo.
— A essa altura eu já andava com segurança. Ele pediu as imagens das câmeras dos estabelecimentos comerciais e condomínios próximos. Dois dias depois, encontramos um chip embaixo do banco do motorista, similar a um rastreador — lembra Luanda.
Com as ameaças, a vítima se mudou para um endereço sigiloso e um inquérito foi instaurado para investigar o caso.
Para as advogadas, os agressores atuam com a certeza da impunidade.
— Embora não haja uma lei específica sobre misoginia, é possível enquadrar os autores dos ataques em crimes como injúria ou ameaça, cujo prazo para prestar queixa é de seis meses, contados da data do fato ou do conhecimento da autoria — explica Mariana.
Fonte: Jornal extra