Já está na hora de o fisco evitar encrencas

Raul Haidar

Todos os brasileiros que querem a conquista da justiça tributária tem enfrentado situações absurdas em todos os níveis de fiscalização. Pouca diferença há entre os abusos cometidos pelas autoridades tributárias, sejam elas federais, estaduais ou municipais. Ao que parece, qualquer servidor do fisco vê o contribuinte como um inimigo e o trata dessa forma. Apesar desse tratamento hostil, querem respeito e consideração, como se fossem eles, os servidores, os nossos patrões.

Vale lembrar a respeito as palavras do então presidente do Superior Triunal de Justiça, o ministro Edson Vidigal:

“Quem serve ao Estado serve ao público em geral. Ninguém dentre nós, no serviço público, é inimigo de ninguém. Bastam os inimigos do Povo, só por isso, também, nossos inimigos. Contra eles é que devemos estar fortes em nossa união. O Padre Antonio Vieira dizia que os sacerdotes são empregados de Deus. Assim, da mesma forma, o dinheiro que paga o salário do Presidente da República e dos seus Ministros, dos Deputados e dos Senadores, dos Ministros dos Tribunais é o mesmo que paga o salário de todos os outros servidores, do porteiro ao assessor mais graduado, do cabo ao general. Esse dinheiro vem de um único patrão para o qual trabalhamos, do qual somos empregados. Esse patrão é o contribuinte que paga impostos. Somos empregados do Povo brasileiro.” ( serpro. gov. notícias, 13.04.2004)

Assim, nesse relacionamento entre fisco e contribuinte a primeira coisa de que devemos nos lembrar é que os salários deles somos nós que pagamos. Simples assim.

Apesar disso, há inúmeras situações em que agentes do fisco comportam-se em desacordo com a lei, ignorando os mais básicos direitos do contribuinte. Já relatamos aqui diversas situações que revelam não só o desprezo do servidor pelo contribuinte, mas até mesmo o ridículo da situação, criada para criar problema desnecessário, que a ninguém beneficia.

Há inúmeros casos desse tipo. Aqui em São Paulo uma empresa comercial foi visitada por um auditor fiscal (Receita Federal) e exigiu grande quantidade de documentos que lhe foram fornecidos. Já se passaram quase dez meses desde a entrega dos documentos e o fisco não terminou a verificação. Já foi pedida a devolução, mas ela não foi feita.

Não existe fiscalização por prazo indeterminado. Quando o fiscal inicia seu trabalho é obrigado a fazer um termo de início. Nesse termo já deve constar prazo máximo para o término do trabalho. Isso está no artigo 196 do Código Tributário Nacional a saber:

“Art. 196. A autoridade administrativa que proceder ou presidir a quaisquer diligências de fiscalização lavrará os termos necessários para que se documente o início do procedimento, na forma da legislação aplicável, que fixará prazo máximo para a conclusão daquelas.”

O decreto 70.253/1972, que regulamenta o processo administrativo estabelece prazo de 60 dias (que pode ser prorrogado) para que o trabalho fiscal seja concluído. Veja:

“Art. 7º – O procedimento fiscal tem início com:

I – o primeiro ato de ofício, escrito, praticado por servidor competente, cientificado o sujeito passivo da obrigação tributária ou seu preposto;

II – a apreensão de mercadorias, documentos ou livros;

III – o começo de despacho aduaneiro de mercadoria importada.

§ 1° O início do procedimento exclui a espontaneidade do sujeito passivo em relação aos atos anteriores e, independentemente de intimação a dos demais envolvidos nas infrações verificadas.

§ 2° Para os efeitos do disposto no § 1º, os atos referidos nos incisos I e II valerão pelo prazo de sessenta dias, prorrogável, sucessivamente, por igual período, com qualquer outro ato escrito que indique o prosseguimento dos trabalhos.”

Assim, se o fiscal não devolve os documentos após 60 dias, em não havendo prorrogação, o contribuinte tem o direito de exigir essa devolução, mesmo que através de ação judicial.

Acontecem também ações totalmente descabidas do fisco estadual, não só em São Paulo. Uma dessas ações é a verificação fiscal onde se pretende um “arbitramento” do valor das operações com base num suposto valor médio das mercadorias, apuradas pelo fisco. É o que o fiscal chama de “média ponderada do IVA”. Essa sigla para o fisco significa “índice de valor adicionado”.

A fiscalização estadual desenvolve tais diligências com o suposto objetivo de coibir sonegação, onde pretende considerar como indício de sonegação um IVA que, segundo o fiscal, estaria abaixo de uma média supostamente encontrada no setor. Caso o IVA do contribuinte esteja abaixo daquela “média”, segundo o fisco haveria indício de sonegação. Esse expediente implica, claramente, em arbitrar o valor da operação.

Todavia, o artigo 148 do CTN diz que:

“Art. 148. Quando o cálculo do tributo tenha por base, ou tome em consideração, o valor ou o preço de bens, direitos, serviços ou atos jurídicos, a autoridade lançadora, mediante processo regular, arbitrará aquele valor ou preço, sempre que sejam omissos ou não mereçam fé as declarações ou os esclarecimentos prestados, ou os documentos expedidos pelo sujeito passivo ou pelo terceiro legalmente obrigado, ressalvada, em caso de contestação, avaliação contraditória, administrativa ou judicial.”

Assim, não tem qualquer fundamento uma autuação baseada em presunções de sonegação porque uma suposta “margem” do tal IVA está abaixo da média. A jurisprudência administrativa e mesmo a judicial não aceitam presunção como forma de autuação. Vejam-se as seguintes decisões:

“Processo Fiscal – Não pode ser instaurado com base em mera presunção. Segurança concedida.” (Tribunal Federal de Recursos, 2ª Turma, Agravo em Mandado de Segurança nº 65.941 in “Resenha Tributária” nº 8)

“Qualquer lançamento ou multa, com fundamento apenas em dúvida ou suspeição é nulo, pois não se pode presumir a fraude que, necessariamente, deverá ser demonstrada” (Tribunal Federal de Recursos, Apelação Civil nº 24.955 em Diário da Justiça da União,9/5/69).

“Não merece acolhimento o sistema de levantamento fiscal com ânimo em elementos aprioristicamente fixados pela fiscalização.” (Tribunal de Alçada Civil de S. Paulo, Apelação Civil nº 57146 in Revista dos Tribunais, 357/394).

Assim, é indevida qualquer presunção de sonegação. Isso depende de provas, que não cabe ao contribuinte. Não existe a obrigação do contribuinte fazer prova negativa, prova de que não sonegou. Cabe só ao fisco provar a sonegação que alega.

Também no âmbito municipal os abusos se multiplicam. O fisco municipal de São Paulo tem sido, nos últimos anos, certamente o mais produtivo em matéria de abusos e ilegalidades de toda ordem.

Um desses abusos é impedir que contribuintes estabelecidos em outros municípios possam aqui inscrever-se para evitar a bitributação dos serviços prestados. Diversas alegações absurdas são utilizadas pelo fisco municipal. Uma das mais absurdas, contraditórias e desconexas é não aceitar inscrição de empresa que, sediada em outro município, tenha sede em escritórios alugados de terceiros, os chamados escritórios virtuais.

Ora, os serviços conhecidos como “escritórios virtuais” são reconhecidos pela legislação tributária a nível nacional e municipal. Assim, a lei complementar nº 116 inclui a atividade de escritórios virtuais dentre as de tributação regular pelo ISS, especificando-a no sub-item 3.03 do item 3 da Tabela de incidência anexa à referida Lei Complementar, a saber:

3.03 – Exploração de salões de festas, centro de convenções, escritórios virtuais, stands, quadras esportivas, estádios, ginásios, auditórios, casas de espetáculos, parques de diversões, canchas e congêneres, para realização de eventos ou negócios de qualquer natureza.

A Lei Municipal (de São Paulo) nº 13.701 também registra no seu artigo 1º, item 3.02 a mesma redação, ordenando que o ISS incida sobre os serviços de escritórios virtuais, reconhecendo assim sua óbvia legalidade.

Não há dúvida, pois, de que a atividade conhecida como “escritórios virtuais” é absolutamente legal e não há, portanto, qualquer motivo legal para que seja rejeitada a inscrição do cadastro municipal de empresa cuja sede esteja localizada num escritório virtual. O município não pode negar vigência à lei complementar e menos ainda à própria lei municipal aprovada pela Câmara.

Esses exemplos aqui citados dão uma pequena mostra das dificuldades criadas pelos diferentes níveis de fiscalização, impedindo que o contribuinte mantenha com o fisco uma relação harmônica.

Se o contribuinte a cada minuto de sua vida tenha que se valer do judiciário apenas para poder trabalhar, onerando desnecessariamente suas atividades só por causa de uma ação deliberadamente hostil dos agentes tributários, jamais teremos uma relação de recíproco respeito. Já está na hora do fisco obedecer as leis e evitar encrencas com o contribuinte.

Raul Haidar é advogado tributarista, ex-presidente do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-SP e integrante do Conselho Editorial da revista ConJur.

Fonte: Revista Consultor Jurídico

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