Arrecadar, administrar, fiscalizar e jogar no lixo
Pregamos há tempos a necessidade de uma reforma tributária onde se procure fazer de fato uma Justiça Tributária. Com a atual parafernália que temos vivemos num inferno fiscal cada vez mais difícil de suportar.
O leitor atento já terá visto aqui como é esse inferno: carga tributária insuportável, burocracia esquizofrênica e uma administração fazendária que despreza as regras básicas da Constituição, infringindo reiteradamente todas as leis em vigor.
Tudo isso é um arsenal que tem o objetivo claro de violar os direitos do cidadão, quando na mão de funcionários que agem fingindo ignorar que são nossos servidores. Uma terrível agravante: não são ignorantes, são bem preparados e aparelhados, são inteligentes, mas nem por isso melhores que o mais simples cidadão.
Esta é uma república e como tal, somos todos iguais. Em uma entrevista, quando ainda na ativa como ministro do STF, Eros Roberto Grau afirmou: “Meu ofício não é mais importante que o do jardineiro ou daquele que cuida da saúde das pessoas.”
Em mais de uma oportunidade os governos anteriores encaminharam ao congresso projetos de uma suposta reforma. Em nenhum momento, porém, desejavam mudar alguma coisa, pois as propostas além de pífias não foram submetidas a qualquer debate sério.
Tive o desprazer de perder meu tempo quando, por indicação da OAB-SP, estive numa reunião que pretendia debater um suposto projeto sobre isso. Quem lá estava, presidindo os trabalhos, era um deputado governista que logo no início afirmou que o governo estava disposto a discutir qualquer coisa, menos a carga tributária. Distribuíram material de consulta, discutiram algumas questões sem relevância e agendaram nova reunião. Nunca mais voltei àquele local. Aquilo se tornara um debate dogmático, sem futuro e a OAB-SP não poderia, pelo menos representada por mim, participar de farsas.
Tem sido divulgada, recentemente, notícia segundo a qual há propostas de reforma tributária no Congresso. Fiz pesquisa sobre o assunto, mas não encontrei nada que mereça esse nome. Há apenas projetos esparsos e que alguém já chamou de reforma fatiada, como se fosse uma picanha. Tem se divulgado que a reforma tributária não sai porque depende de emendas constitucionais, sujeitas a quorum especial de votação e que isso é muito difícil.
Nos governos de Dilma e Lula (de 2003 a 2012) foram aprovadas 32 emendas constitucionais, a mais recente a de número 71 em 29 de novembro de 2012. Considerando os resultados eleitorais e as pesquisas de opinião, o atual governo não teria dificuldade em aprovar qualquer coisa no congresso atual, onde dispõe de bancada governista que não parece disposta a tornar-se oposição. Mas o contribuinte não quer uma coisa qualquer, especialmente um Frankenstein rotulado de reforma fatiada seja lá do que for.
Foi emblemática a afirmação do deputado governista que advertiu a todos naquela reunião onde iria ser discutida uma reforma do sistema tributário, desde que não se falasse em cortar imposto. Até então eu pensava que o sistema tributário se resumia em arrecadar, administrar e fiscalizar. Já aprendi um pouco mais: tem que fazer tudo isso e tem, ainda, que JOGAR O IMPOSTO FORA !
Isso mesmo: com todas as carências que o país possui, mesmo que a carga tributária cresça indefinidamente, não será suficiente. Temos hoje uma carga de cerca de 37% do PIB. Alguém vai falar que é 35,8, outro vai dizer que é 36,4% . Todos esses números são importantes, porque o menor de todos eles, por mais otimista que seja o avaliador, ainda que diga que são os 20% que seriam o ideal para um pais que se diz emergente, ainda assim seria muito!
Mais do que ter recursos (dinheiro, patrimônio,etc.) é saber o que fazer com eles. Quem tem muito dinheiro pode usá-lo em besteiras, pois será o único prejudicado , eventualmente incluídos seus dependentes. Aliás, nesse caso os dependentes podem interditar o pródigo.
Mas o poder público só administra recursos alheios. Numa democracia, o faz por tempo determinado e sujeito a penalidades se usar de forma indevida o que é do povo ou devia ser, mas alguns pensam que não é.
O executivo é apenas quem tem a chave do cofre. Está sujeito a fiscalização do legislativo e este tem como auxiliares os tribunais de contas. Infelizmente, a corrupção e o nepotismo podem transformar boa parte da fiscalização em estórias da carochinha ou mesmo contos do vigário.
Não vamos gastar o tempo do leitor com situações que são públicas e notórias e que boa parte da imprensa divulga, mesmo colocando em risco verbas publicitárias, o que faz com que essa boa parte se torne melhor ainda.
Falemos apenas de três casos mais recentes:
Veja-se o caso de Fortaleza: R$ 650 mil de cachê de artista para um show de inauguração de um hospital. Isso tem nome: jogar imposto no lixo!
O mau exemplo de São Paulo: o novo prefeito vai construir vários armazéns em local privilegiado para servir de espaço a ser utilizado por escolas de samba. Isso tem nome: jogar imposto no lixo!
No Estado do Rio de Janeiro: há dois anos o governo disponibilizou verbas substanciais para atender as vítimas da catástrofe de Angra dos Reis. O dinheiro praticamente não foi usado, fizeram-se apenas pequenas proteções em algumas encostas. Isso também tem nome: jogar imposto no lixo!
O legislativo deve fiscalizar o executivo. Se não o faz, deve o povo organizar-se e tratar de exercer essa fiscalização. Já existem algumas ONGs que procuram suprir essa carência. Eis aí um caminho, que corre o risco de abrir espaço para os aproveitadores de sempre.
Raul Haidar é jornalista e advogado tributarista, ex-presidente do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-SP e integrante do Conselho Editorial da revista ConJur.
Fonte: Revista Consultor Jurídico