Notícia da OAB – Ed. 1185
DA INEXIGIBILIDADE DE LICITAÇÃO PARA A CONTRATAÇÃO DE ADVOGADO (1ª PARTE)
Para a satisfação das muitas necessidades coletivas, a Administração Pública precisa lidar com um conjunto de situações distintas. Algumas são bem simples, como a limpeza dos logradouros, outras muito complexas, como a organização do trânsito de veículos e o fornecimento de medicamentos. Sendo assim, é fácil compreender a necessidade de utilização de bens e serviços, muita vez obtidos de terceiros.
Quando o interesse público demanda a prestação de alguma atividade desempenhada por terceiro, dá-se a causa fática do contrato administrativo. Este não pode, todavia, ser celebrado com qualquer um. Caso a Administração Pública pudesse escolher ao seu talante o prestador, ter-se-ia certamente por privilegiados aqueles próximos ao governo, ferindo de morte a impessoalidade que deve reger as relações estatais de uma República. Por esse motivo, a Constituição de 1988 impôs, no art. 37, XXI, a licitação como procedimento prévio à celebração contratual. In verbis: ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações.
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Nos termos da norma constitucional acima descrita, presume-se que a licitação propicia a contratação mais vantajosa para o interesse público, na medida em que são exigidos requisitos de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações. Além disso, ao assegurar-se a igualdade de condições a todos os concorrentes, prestigia-se a impessoalidade, princípio regente do Estado republicano, que não se harmoniza com privilégios calcados na vontade do administrador. Sobre o assunto, Hely Lopes Meirelles lembra que a expressão obrigatoriedade de licitação tem um duplo sentido, significando não só a compulsoriedade da licitação em geral como, também, a da modalidade prevista em lei para a espécie, pois atenta contra os princípios de moralidade e eficiência da Administração o uso da modalidade mais singela quando se exige a mais complexa, ou o emprego desta, normalmente mais onerosa, quando o objeto do procedimento licitatório não a comporta. Somente a lei pode desobrigar a Administração, quer autorizando a dispensa de licitação, quando exigível, quer permitindo a substituição de uma modalidade por outra (art. 23, §§ 3º e 4º). A importância da regra da obrigatoriedade de licitação é tamanha que sua dispensa ou inexigibilidade fora das hipóteses legais, bem como a fraude operada no certame, pode tipificar a conduta criminosa prevista nos arts. 89 e 90 da Lei 8.666/93:
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Princípio da obrigatoriedade de licitação e a possibilidade excepcional de contratação direta por dispensa ou inexigibilidade. Apesar disso, há casos em que o próprio legislador permite a contratação direta, isto é, independentemente de prévio processo licitatório. Como a obrigatoriedade de licitação é a regra, cuidam-se de hipóteses excepcionais, só admissíveis em vista de expressa autorização legal. Daí a dicção do inc. XXI do art. 37 da CF/88, ao estipular que a licitação é obrigatória, “ressalvados os casos especificados na legislação”.
Essa mesmo ressalva encontra-se na parte final do caput do art. 2º da Lei 8.666/93. Segundo esta lei, duas são as hipóteses de contratação direta: dispensa e inexigibilidade. Naquela a disputa é possível, porém, em face de determinadas particularidades, o legislador considerou-a inconveniente ao interesse púbico. Nesta a própria disputa é inviável, o que decerto torna o certame inexigível. Correlacionando a regra da obrigatoriedade de licitação com as hipóteses excepcionais de contratação direta, José dos Santos Carvalho Filho leciona que
O princípio da obrigatoriedade da licitação impõe que todos os destinatários do Estatuto façam realizar o procedimento antes de contratarem obras e serviços. Mas a lei não poderia deixar de ressalvar algumas hipóteses que, pela sua particularidade, não se compatibilizam com o rito e a demora do processo licitatório.
[…] A dispensa de licitação caracteriza-se pela circunstância de quem em tese, poderá o procedimento ser realizado, mas que, pela particularidade do caso, decidiu o legislador não torná-lo obrigatório. Diversamente ocorre na inexigibilidade, como se verá adiante, porque aqui sequer é viável a realização do certame.
Dessa forma, está claro que, nas hipóteses de licitação dispensável, não obstante a competição seja materialmente viável, o legislador considera-a contrária ao interesse público. Já nas hipóteses de inexigibilidade não se exige o certame licitatório ante a mera constatação de que a disputa é inexequível.
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Fundamentos da inexigibilidade de licitação. Do ponto de vista legal, as hipóteses de inexigibilidade de licitação encontram-se elencadas no rol do art. 25 da lei, tratando-se de rol meramente exemplificativo (numerus apertus), há de se concluir que será possível a verificação de outras hipóteses de inexequibilidade da competição diante do caso concreto. Tudo dependerá da presença (ou não) dos pressupostos que fundamentam a exigibilidade da licitação.
Segundo Celso Antônio Bandeira de Mello, tais pressupostos englobam três ordens de análise: a) lógica; b) jurídica; c) fática. O pressuposto lógico refere-se à necessidade de que haja pluralidade de fornecedores e pluralidade de objetos, de modo que se se trata de produto exclusivo, fica logicamente inviabilizada a competição. O pressuposto jurídico reporta-se ao interesse público, fim mor de toda a atividade administrativa, que invariavelmente deverá apresentar-se na realização do certame; logo, caso fique comprovado que a licitação vai de encontro ao interesse da sociedade, inexigível será a sua realização. Finalmente, o pressuposto fático relaciona-se ao interesse de mercado na contratação do objeto licitado. A bem dizer, é preciso que haja um número plural de participantes interessados em contratar com a Administração, sob pena de tornar a concorrência inviável.
Tais pressupostos não estão previstos em lei. Por isso dão origem a debate na doutrina administrativista, que ora diverge quanto ao nome dos pressupostos, ora quanto às suas consequências. A enumeração desses pressupostos é bastante divergente. A primeira divergência é quanto ao nome, e a segunda, quanto às consequências causadas pela sua ausência. Para a maioria da doutrina, a ausência de qualquer dos pressupostos levará à inviabilidade da competição e, portanto, à inexigibilidade da licitação, e não à dispensa como defendem alguns doutrinadores, como Marinela. De qualquer modo, não se verificando algum dos pressupostos enumerados (lógico, jurídico ou fático), a competição torna-se impossível e, ato contínuo, a própria licitação.
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Serviços advocatícios e inexigibilidade de licitação: jurisprudência dos tribunais superiores. A discussão em torno dos serviços de advocacia parte dos fundamentos doutrinários que circundam os pressupostos da licitação. Com efeito, é preciso saber se a atividade do advogado poderia suscitar a ausência de pressuposto lógico, fático ou jurídico. De início, é fundamental recordar que o art. 25, II, reconheceu ser inexigível a licitação quando se tratar da contratação de serviços técnicos enumerados no art. 13 da Lei 8.666/93. Ainda no inc. II do art. 25 da lei, lê-se que a necessidade de contratar profissionais de notória especialização implica inviabilidade de competição. Eis uma conclusão que afeta diretamente o pressuposto lógico da licitação, o que se relaciona à pluralidade de objetos e à pluralidade de ofertantes. Por outras palavras, se o objeto a ser licitado é singular, seja ele bem ou serviço, surge um fator de ordem lógica apto a impedir a obstaculizar a disputa e, consequentemente, o próprio certame licitatório.
No tocante ao conceito de serviços singulares, Celso Antônio Bandeira de Mello preleciona o seguinte:
Serviços singulares são os que se revestem de análogas características. De modo geral são singulares todas as produções intelectuais, realizadas isolada ou conjuntamente – por equipe -, sempre que o trabalho a ser produzido se defina pela marca pessoal (ou coletiva), expressada em características científicas, técnicas ou artísticas importantes para o preenchimento da necessidade administrativa a ser suprida. Neste quadro cabem os mais variados serviços: uma monografia escrita por um experiente jurista; uma intervenção cirúrgica realizada por qualificado cirurgião; uma pesquisa sociológica empreendida por uma equipe de planejamento urbano; um ciclo de conferências efetuado por professores; uma exibição de orquestra sinfônica; uma perícia técnica sobre o estado de coisas ou das causas que o geraram.
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Todos esses serviços se singularizam por um estilo ou por uma orientação pessoal. Note-se que a singularidade mencionada não significa que outros não possam realizar o mesmo serviço. Isto é, são singulares, embora não sejam necessariamente únicos. Nesse sentido, os serviços advocatícios podem ser classificados como “serviços singulares”, isto é, serviços técnicos especializados. Constituindo o assessoramento jurídico atividade que demanda a apreciação de condições subjetivas do prestador do serviço, em especial quanto à sua capacidade de lidar com a necessidade de suporte técnico-científico da Administração, singulariza-se o serviço, fundamentando sua inexigibilidade. Esse raciocínio tem sido esposado pela jurisprudência do STJ. Com base no art. 25, II, c/c art. 13, II, da Lei 8.666/93, a Corte entendeu diversas vezes que a contratação de serviços de advogado acarreta hipótese de inexigibilidade de licitação. Colaciono (grifos meus):
ADMINISTRATIVO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. ART. 535, II, DO CPC. ALEGAÇÕES GENÉRICAS. SÚMULA 284/STF. CONTRATAÇÃO DEESCRITÓRIO DE ADVOCACIA. LICITAÇÃO. INEXIGIBILIDADE. EXPRESSAPREVISÃO LEGAL. SERVIÇO SINGULAR E NOTÓRIA ESPECIALIZAÇÃO. REEXAMEDE CLÁUSULAS CONTRATUAIS E DE PROVAS. IMPOSSIBILIDADE. SÚMULAS 5 E 7DO STJ1. Alegações genéricas quanto à violação do artigo 535 do CPC não bastam à abertura da via especial, com base no art. 105, inciso III, alínea a, da CF. Incidência da Súmula 284/STF. 2. A contratação de serviços de advogado por inexigibilidade de licitação está expressamente prevista na Lei 8.666/93, art. 25, II c/c o art. 13, V. 3. A conclusão firmada pelo acórdão objurgado decorreu da análise de cláusulas contratuais e do conjunto fático-probatório dos autos. Dessarte, o acolhimento da pretensão recursal, no sentido da ausência dos requisitos exigidos para a contratação de escritório de advocacia por meio da inexigibilidade de licitação, esbarra no óbice das Súmulas 5 e 7/STJ. Precedentes. 4. Recurso especial não conhecido. (STJ, T2 – Segunda Turma, REsp 1.285.378/MG, Rel. Min. Castro Meira, j. 13/03/2012, p. DJe 28/03/2012).
ADMINISTRATIVO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. CONTRATAÇÃO DE ADVOGADO. LICITAÇÃO. INEXIGIBILIDADE. EXPRESSA PREVISÃO LEGAL. SERVIÇO SINGULAR E NOTÓRIA ESPECIALIZAÇÃO. REEXAME FÁTICO-PROBATÓRIO. SÚMULA 7/STJ. 1. A contratação de serviços de advogado por inexigibilidade de licitação está expressamente prevista na Lei 8.666/93, arts. 25, II e 13, V. 2. Para concluir-se de forma diversa do entendimento do Tribunal a quo – “A excepcionalidade, a extraordinariedade, a relevância do serviço justificam a contratação especial, independentemente de licitação” -, seria necessário o reexame fático probatório dos autos, inviável na via manejada, a teor da Súmula 7 do STJ. 3. Recurso especial não conhecido.(STJ, T2 – Segunda Turma, REsp 726.175/SP, Rel. Min. Castro Meira, j. 22/02/2011, p. DJe 15/03/2011). IN TEODORO, Rafael. Da inexigibilidade de licitação para a contratação de advogado: considerações à luz da jurisprudência do STF e do STJ.