Pressão fiscal e bloqueio administrativo de bens
Artigo de Helenilson Cunha Pontes, Doutor e Livre Docente pela USP. Advogado Tributarista.
A “Constituição cidadã” de 1988, proclamada na sua origem como uma Carta de Direitos do cidadão contra o autoritarismo estatal, vem sendo constantemente desafiada pelos governos, especialmente em matéria tributária, sempre à espera do beneplácito do Poder Judiciário.
No iluminar das luzes de 2018, o Governo Federal editou regra que leva ao paroxismo a pressão fiscal sobre o contribuinte brasileiro. A lei 13.606, de 9 de janeiro de 2018, estabelece que uma vez inscrito o crédito fiscal em dívida ativa da União, o devedor será notificado para, em até cinco dias, efetuar o pagamento do valor atualizado monetariamente, acrescido de juros, multa e demais encargos nela indicados.
Caso o contribuinte notificado não pague o débito no prazo de cinco dias, a Fazenda Pública poderá comunicar a inscrição em dívida ativa aos órgãos que operam bancos de dados e cadastros relativos a consumidores e aos serviços de proteção ao crédito e congêneres; e, o que é mais grave, averbar, inclusive por meio eletrônico, a certidão de dívida ativa nos órgãos de registro de bens e direitos sujeitos a arresto ou penhora, tornando-os indisponíveis.”
Esta regra revela flagrante e inacreditável inconstitucionalidade formal e material, que nenhuma regulamentação infraconstitucional, como a pretendida pela Portaria/PGFN 33/2018 é capaz de sanar. Aliás, sempre é bom lembrar que, no sistema jurídico brasileiro, o contribuinte só pode ser obrigado a cumprir a lei constitucional; portaria é comando dirigido à Administração Pública e não ao cidadão-contribuinte, razão pela qual sequer merece debate neste curto espaço os contornos daquela Portaria PGFN.
Aquela regra é formalmente inconstitucional porque contempla um privilégio ao crédito tributário. Até um neófito em estudo do Direito Tributário sabe que regras sobre crédito tributário, especialmente sobre garantias e privilégios deste, estão, por força do art. 146, III, b da Constituição Federal, sob a reserva de lei complementar, jamais podendo ser veiculadas por lei ordinária, como pretendido pelo legislador da Lei 13.606/18.
Esta determinação constitucional, além de garantia ao contribuinte, decorre do próprio princípio federativo, uma vez que o crédito tributário, seja ele federal, estadual, distrital ou municipal, há de ter a mesma natureza jurídica, em face da horizontalidade dos poderes federativos. Logo, regras sobre crédito tributário consubstanciam “normas gerais de legislação tributária” a figurarem sob reserva de uma lei nacional, aplicável a todos os entes federativos com igual grau de vinculação.
Apenas para demonstrar o absurdo da citada regra federal, imagine-se a hipótese de todos os Estados e Municípios brasileiros resolverem editar regra de idêntico teor nas suas legislações internas. Se a União pudesse bloquear bens administrativamente para satisfazer seus créditos tributários, nada impediria que Estados, Distrito Federal e Municípios também pudessem trilhar o mesmo caminho, já que os poderes federativos são horizontais e não verticais, não havendo superioridade da União sobre os demais entes federados, ainda que quem exerça o poder federal tenha dificuldade de entender e aceitar este basilar princípio constitucional.
É justamente para evitar este paroxismo autoritário que a Carta de 1988, seguindo a tradição do constitucionalismo brasileiro, reserva à lei complementar a disciplina de normas gerais em matéria tributária, especialmente aquelas relativas à obrigação, lançamento, crédito tributário, decadência e prescrição, regras estas que estão há décadas estabelecidas no Título III do Código Tributário Nacional.
Assim, cristalina é a inconstitucionalidade formal da referida regra federal, instituidora de autêntico privilégio ao crédito tributário federal, por ofensa ao disposto no art. 146, III, b da Constituição Federal vigente.
Na mesma trilha, a citada regra revela-se ainda materialmente inconstitucional na medida que institui um regime de indisponibilidade patrimonial unilateral, realizada pelo próprio credor, sem a interveniência do Poder Judiciário, garantidor do direito de propriedade no regime constitucional brasileiro.
De novo, é a Constituição Federal, sempre ela, quem impõe limites ao desejo de ampliação do poder federal sobre os contribuintes. Com efeito, é garantido constitucionalmente a todos o direito de propriedade (art. 5o., XXII), cláusula constitucional que, como todas as demais, submete-se ao crivo da “reserva de jurisdição”, ou seja, tem seus limites e contornos controlados e definidos pelo Poder Judiciário, através do devido processo legal, outra garantia constitucional (art. 5o. LIV).
Ora, se a Carta Política, única garantia que o cidadão brasileiro ainda tem no Estado de Direito contra o exercício abusivo do poder por quem o detém, determina que “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”, como pode o Poder Público pretender instituir em seu próprio favor uma prerrogativa de privar o contribuinte dos seus bens por ato exclusivo seu, sem a prévia oitiva do Poder Judiciário?
O estabelecimento de uma indisponibilidade patrimonial por exclusiva determinação do credor, sobretudo quando este é dotado de prerrogativas e limitações jurídicas de direito público, configura manifesta afronta ao direito de propriedade e ao devido processo legal na medida em que esvazia o conteúdo normativo destas garantias constitucionais concebidas historicamente como autênticas “barreiras ao arbítrio estatal”.
É certo que o Poder Público há de ser mais eficiente na cobrança dos créditos que entende devidos, mas certamente não é atropelando as determinações constitucionais que conseguirá atingir este objetivo. É de se esperar que o Poder Judiciário coloque um freio nesta escalada autoritária em matéria fiscal e reconheça que não pode haver exercício de poder estatal fora dos limites impostos pela Constituição Federal.
Como é próprio do Estado de Direito, mais uma vez, as liberdades constitucionais dependem da prudente manifestação do Poder Judiciário. Oxalá este cumpra o seu papel de Guardião da Constituição Federal.
Fonte: RG 15/O Impacto