“Abandonado” por Moro, Deltan tenta defender legado lavajatista

Campeão de audiência da década, o conjunto de processos apelidado de “lava jato” já foi algo parecido com unanimidade. A constatação de que delegados, procuradores e juízes cometeram crimes a pretexto de combater o crime, porém, mudou o quadro. É cada vez menor o número de defensores do consórcio de Curitiba. Sobrou para Deltan Dallagnol, o chefe adjunto da finada “operação”, junto com o hoje mudo e calado Sergio Moro, tentar defender o legado da turminha.

Largado praticamente só na estrada, o ex-pop star das denúncias espetaculosas contra a corrupção agora passa mais tempo se justificando do que pautando seu projeto de poder a jornais, revistas  e emissoras de rádio e TV. Nesta segunda-feira (22/3), por exemplo, explicava as razões de ter comprado um apartamento de um andar inteiro em um bairro nobre de Curitiba por “apenas” R$ 1,8 milhão, em 2018. Um ano antes, imóveis do mesmo perfil tinham sido vendidos por cerca R$ 2,5 milhões no edifício.

Recentemente, o procurador falou sobre as numerosas denúncias e críticas feitas à autodenominada “força-tarefa” em uma entrevista à rádio Jovem Pan de Curitiba e em uma live no Instagram. Leia a seguir o que Deltan disse em sua defesa nesses dois eventos:

Ditadura de Curitiba
“Não há como comparar, não há qualquer parâmetro para comparar a ‘lava jato’ com uma ditadura, que é a imposição da vontade sobre a lei por um poder central, utilizando violência, tortura e assim por diante. Quando você olha para uma operação como a ‘lava jato’, uma atuação revisada por três tribunais independentes, inclusive pelo próprio Supremo Tribunal Federal, com investigações documentadas, decisões confirmadas, mesmo sendo contestadas por um exército dos melhores e mais bem pagos advogados de todo o país, vê que ela teve uma atuação dentro da lei, para colocar debaixo da lei pessoas poderosas que se achavam acima dela. Agora, várias dessas pessoas investigadas e processadas, ou que praticaram os crimes e ainda não foram pegas, se reorganizaram para reocuparam seus espaços de poder e buscam agora passar por cima da operação para retaliar os investigadores, para esvaziar as investigações, para encontrar pelo em ovo, para anular condenações”.

Mensagens com Moro
“Ninguém alega que nessas mensagens há prova de inocência de ninguém. Usam essas mensagens, que foram obtidas por hackers criminosamente, que foram mantidas com eles, pessoas inclusive processadas por falsificação, e elas podem ter sofrido todo tipo de alteração… O uso desse material é ilícito, sem qualquer prova de autenticidade”.

Excessos nas investigações
“Se tivesse havido qualquer tipo de excesso, dois anos depois os advogados iriam pegar essas mensagens, iriam aos processos, porque tudo o que a gente fez ficou documentado, e teriam anulado tudo. Se dois anos depois não aconteceu nenhuma anulação é porque isso aí é apenas discurso, é narrativa empacotada como se fosse fato”.

Os erros
“Ainda que existisse alguma irregularidade, o que você tem de fazer é corrigir aquela irregularidade. Em toda atividade humana pode haver erros, que podem ser corrigidos pelo sistema de Justiça, mas o que está acontecendo a gente pode comparar com aquela pessoa que chega perto de um carro e diz: ‘Olha, tem um risco na porta desse carro, vamos jogá-lo fora’. Olha, isso não acontece, ninguém joga fora um carro por causa de um suposto risco na lataria da porta do carro, mas é isso o que está acontecendo”.

Conluio com o juiz
“O ex-juiz federal Sergio Moro absolveu 63 pessoas que a gente acusou, que o Ministério Público acusou, 21% das pessoas que a gente acusou foram absolvidos. Cadê o conluio? Se 98% das sentenças foram objetos de recurso nosso, cadê o conluio? O juiz federal Sérgio Moro, na época, indeferiu centenas de pedidos do Ministério Público, pedidos de busca e apreensão, pedidos de condução coercitiva, e por aí vai. Se teve conluio, então me mostre qual é a decisão, deve ter tido alguma decisão… Em todo esse mar de decisões, deve ter tido alguma que não tem base em fatos e provas, mas cadê? Não tem, ninguém aponta”.

Abusos na condução coercitiva de Lula
“Há reclamação quanto à condução coercitiva do ex-presidente, mas espera aí: havia mais de cem conduções coercitivas anteriores, ninguém pode nos acusar de incoerência. Nós utilizamos toda a força da lei penal, dentro da lei, para colocar debaixo da lei pessoas que saqueavam o Brasil. Se tem algum escândalo em tudo isso é o escândalo da impunidade no Brasil. É o escândalo das anulações dos processos, o escândalo das prescrições de casos intermináveis em tribunais”.

Cooperação internacional
“Um veículo de imprensa vive publicando dia sim, dia não, que essas mensagens estão mostrando que os procuradores fizeram conversas com autoridades estrangeiras e que essas conversas não passavam pelos canais oficiais, então essas conversas eram todas ilegais… Ora, isso é papo furado, é claro que a gente conversava com autoridades estrangeiras. Eu não posso atestar aquelas mensagens que estavam lá nas mãos dos hackers, que podem ter sidos adulteradas, mas eu afirmo que a gente conversava toda hora com autoridades estrangeiras. Você precisa trocar informação toda hora, justamente por isso os tratados e as convenções internacionais dizem que a passagem da informação pela autoridade central é um canal que você utiliza quando precisa de uma informação para usar como prova no processo, e sempre que a gente precisou usar informações como prova no processo a gente usou esse canal. Agora, toda hora a gente estava trocando informações, conversando sobre os potenciais de investigação, por telefone, reuniões presenciais, e isso é legitimo e ancorado nas regras nacionais e internacionais. Acabou de ser divulgado o novo acordo em que a ‘lava jato’ recuperou mais de R$ 800 milhões para os cofres públicos e, quando você faz um acordo com empresa internacional, há uma conversa que precisa ser feita com autoridades internacionais para que esse acordo saia. Nessa conversa estava envolvido não só o Mistério Público Federal, mas a Controladoria-Geral da União e a Advocacia-Geral da União, e essas conversas acontecem em reuniões presenciais, não acontecem sempre por meio da DRCI (Delegacia de Repressão a Crimes de Informática), que é o departamento específico do Ministério da Justiça, porque a lei não orienta assim, então essas publicações estão se orientando por premissas equivocadas, vão criando narrativas, dizendo que toda comunicação fora do canal oficial, fora do Ministério da Justiça, é uma comunicação ilegal, quando não é, quando é amparada, e o que ampara essa comunicação, e o que faz dela legal, legítima, é uma série de normas e recomendações internacionais. Ninguém questiona isso em uma apreensão de um barco com drogas, mas questionam quando está envolvida uma pessoa poderosa, aí vão se construir essas narrativas e essas teorias. É um campo minado de pessoas não comprometidas com a verdade, mas com interesses diferentes”.

Reação à ‘operação’
“O que a gente vê é, sim, uma reação contra a ‘lava jato’ pelo que ela fez de bom, por ela estancar um saqueamento do país que estava acontecendo havia muito tempo, pelo que ela fez ao revelar crimes praticados por pessoas poderosas, que utilizavam seus poderes para alcançar riqueza ilícita e perpetuar o seu poder. O que a gente vê hoje é uma forte reação, sim, contra as investigações e contra os investigadores, e isso inclui a aprovação de uma Lei de Abuso de Autoridade que acaba amarrando investigações. E isso inclui, por exemplo, tentativas de interferência no Conselho Nacional do Ministério Público com o objetivo de incentivar a punição de pessoas que atuaram nessa investigação. O movimento de reação não é inédito, essa é uma tragédia anunciada, a gente fala dessa tragédia desde 2015. Desde o começo da ‘lava jato’ a gente fala: ‘Olha, a tendência é se repetir o que aconteceu na Itália, o sistema reage'”. O que aconteceu na Itália não foi só uma reação contra as investigações, lá se substituiu a pauta anticorrupção por uma pauta contra suposto abuso de autoridades”.

Decisão de Fachin
“O ministro Fachin é uma pessoa excelente, correta, é uma pessoa honesta, que atua de modo firme contra a corrupção. Eu posso até não concordar com a visão dele, mas eu o respeito. Eu digo que não vejo incorreção no modo dele de atuar, apesar de eu discordar, porque o que ele fez nesse caso do ex-presidente Lula foi aplicar uma decisão majoritária da 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal, em que ele era vencido, decisão da qual ele discordava, e que foi ao longo do tempo restringindo a esfera de competência da Justiça federal em Curitiba. No começo da operação da ‘lava jato’ nós estávamos atuando de acordo com a lei sobre os crimes que diziam respeito à Petrobras, tudo era muito relacionado, mas, com o passar do tempo, o Supremo Tribunal Federal decidiu colocar uma linha divisória e dizer que a ‘lava jato’ só iria atuar dentro daquilo que dizia respeito à Petrobras, e essa linha foi cada vez mais apertando o nosso espaço de atuação. A gente não pôde avançar em várias direções, em coisas que a gente descobriu… Chegou um ponto em que o ministro Fachin disse: ‘Olha, esse ponto ficou tão apertado, foi tão restringido aquilo em que a Justiça federal em Curitiba pode atuar, que agora o caso envolvendo o ex-presidente ficou fora e a gente precisa atuar, aplicar esse entendimento da turma para ser coerente’. E ele aplicou esse entendimento, de que eu discordo, pois entendo que esses crimes em relação ao ex-presidente envolviam a Petrobras. Eu discordo por duas razões: primeiro, acho que todos os casos relacionados (à Petrobras) deveriam ter ficado em Curitiba; em segundo lugar, entendo que, ainda que os crimes tenham ido além da Petrobras, eles, sim, envolveram a Petrobras, o ex-presidente foi condenado por desvios multimilionários em relação à própria empresa”.

Procurador-Geral da República
“O que eu posso dizer é que nós gostaríamos de ver uma atuação mais consistente, mais firme do procurador-Geral da República no apoio à luta contra a corrupção, no apoio às forças-tarefas. O que nós vimos recentemente foi um movimento de enxugamento das forças-tarefas, que acabaram sendo absorvidas pelo Gaeco, quando é fato que, quanto mais você investe contra a corrupção, mais você acha, mais você revela, mais você recupera dinheiro, mais você pune. Existe um grande trabalho a ser feito e faltam recursos humanos para esse trabalho, então nossa expectativa, aquilo que a gente gostaria, era que acontecesse um apoio mais firme da Procuradoria-Geral da República, assim como de todos os órgãos, contra a corrupção”.

Jair Bolsonaro
“Nós nunca o apoiamos, a gente não tem qualquer vínculo que pudesse dizer que existe uma traição de confiança. Agora, o que nós vimos objetivamente foi que no discurso dele ao longo da campanha ele se apropriou de uma pauta anticorrupção, assim como vários outros candidatos, e por alguma razão a sociedade o escolheu. O que nós vimos foi que ele utilizou o discurso anticorrupção, mas agora, quando ele divulgou, por exemplo, as 35 prioridades de governo, em fevereiro deste ano, não havia nenhuma relacionada à pauta anticorrupção, nada sobre prisão em segunda instância, nada sobre o fim do foro privilegiado…”.

Legado
“A ‘lava jato’ foi um trabalho inédito, ousado, algo que nunca foi feito. É claro que quando você está desbravando comete erros e acertos, mas tudo dentro da lei, nós jamais afrontamos a lei. Foi algo bom para o país, essencial, barrou o saqueamento dos cofres públicos, processou centenas de pessoas por crimes graves, lavagem de dinheiro, responsabilizou pessoas que antes se consideravam acima da lei e, justamente por isso, 80% da nossa sociedade, segundo pesquisa recente, declarou que apoia a continuidade da ‘lava jato’. Mas a gente não fez tudo o que queria, a gente queria ter ido além, ter mudado o sistema, mas isso não afasta o fato de que a gente ampliou a consciência cívica, e consciência cívica é uma arma poderosa, como gotas de chuvas que, quando somadas, viram um rio, e um rio é difícil de conter. A consciência cívica é aquilo que faz chegar a um ponto de virada, como aconteceu na luta contra o apartheid na África do Sul, as coisas mudam, como aconteceu na luta racial”.

Fonte: Revista Consultor Jurídico

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