REFLEXÕES DE UM VELHO ADVOGADO CRIMINALISTA E JUIZ FEDERAL APOSENTADO  SOBRE CRIMINALIDADE E MÍDIAS NACIONAIS

Por Dr. Edison Messias de Almeida

Habituamo-nos todos os cidadãos no dia a dia das grades de programação televisivas em nosso País à vulgarização das edições jornalísticas e de reportagens panfletárias, no mais arquivelho estilo policialesco, fato que, recentemente, encheu de perplexidade uma jornalista britânica.

Há horários de quase todas as emissoras de televisão que constituem a mídia eletrônica nacional, exclusivamente, reservados à veiculação de fatos revestidos de criminalidade, inclusive, glamourizadas, que a mim me parecem deprimentes e um desrespeito às vítimas, cujos familiares não conseguem soterrar a tragédia sofrida e postas, cinicamente, sob mercadejamento.

Em igual diapasão, atuam as tradicionais e emergentes revistas  hebdomadárias, disputando entre si, acirradamente, não só a curiosidade mórbida de milhares ou milhões de telespectadores e leitores, mas também a avidez dos lucros, convergindo a um só tempo para a disseminação massiva e desequilibrada de matéria, sobre a qual, seus editores e apresentadores – “âncoras televisivos” ou “oráculos dos novos tempos”, como também já foram bem batizados – invariavelmente, arriscamos dizer, pouco conhecem ou não conhecem, absolutamente nada, porque duvidoso que tenham se aprofundado no estudo da ciência criminológica, que nem de longe se identificam com a ciência do direito penal, pois este é tão somente punitivo e se exaure em si mesmo, enquanto a criminologia estuda, sob princípios e conhecimentos científicos, o fenômeno, as causas da criminalidade, a personalidade dos criminosos, a conduta delinquencial e a busca da ressocialização, situações que, cediçamente, refogem ao âmbito de mera objetivação da punibilidade, visto que “os crimes não podem ficar impunes”, máxima que preside a função estatal do Ministério Público.

Os chamados órgãos de comunicação de massa passaram, de repente, mas já há muito tempo, a constituir mais uma desordenada instância de controle social não-punitivo, ou seja, de forma anômala, sem a menor neutralidade ou preparo ou mesmo compromisso de bem informar com seriedade, ao contrário, sempre se empenhando em revestir seus noticiários de forte caráter passional, usando e abusando de conceitos autoritários, num país onde o autoritarismo se sobrepõe a qualquer ideal democrático e se acha difuso na maioria de nossas instituições e disperso na rotina do cotidiano. Alguma dúvida? Creio que não! A atual experiência cidadã bem o demonstra, como ainda as experiências antes hauridas, conotando uma história republicana, somente no nome. É só rever suas páginas!

Mais grave de tudo isso, é que as mídias em geral não se detêm nos limites da simples divulgação da informação, mas, invariavelmente, assumem clara posição interventiva, julgando, condenando e linchando suspeitos e supostos infratores e executando a pena, por elas próprias concebida, aviltando moralmente os investigados e não há um advogado criminalista neste país que não extravase esse queixume.

Estaríamos exagerando?

– Cremos que não!

Segundo o saudoso e brilhante advogado e Ministro da Justiça, o Eminente Márcio Thomaz Bastos, no trabalho intitulado “Júri e Mídia” o notável Jurista brasileiro põe-se a examinar essa tormentosa questão sobre a influência da mídia no julgamento popular e chega à conclusão que algo deve ser feito pois o julgamento num foro que não o judiciário não faz bem à Justiça e nem à liberdade.

Saberiam nossos comunicadores distinguir, sequer o conceito de crime?

Para orientá-los, rebuscamos na doutrina o que se diz a respeito do fenômeno criminal.

“O abstracionismo jurídico vê no crime um frio fato típico, adequado à norma, isto é, o pressuposto conceitual da pena”; “para os patologistas sociais, o delito é uma epidemia, uma malignidade”; “ para os teólogos, um castigo do céu”; “para os expertos em estatísticas, uma cifra, um algarismo”; “para a criminologia científica o crime é, antes de tudo, um problema social, um fenômeno massivo, que não circunscreve sua existência a um determinado período temporal ou a uma determinada conjuntura, que produz dor para todos e que é percebido por todos como um fenõmeno aflitivo”. (Antônio Garcia-Pablos de Molina)

Noutra perspectiva, sabe-se que, igualmente, já foram sustentadas as mais contrapostas imagens, bem como os mais distintos estereótipos do infrator.

Como seja: “Para os clássicos, o delinqüente é um pecador que faz mal uso da liberdade; “para o positivismo criminológico, um animal selvagem, fruto de sua herança atávica ou condicionado por fatores sociais;” “o correcionalismo viu no delinqüente um menor ou inválido;” “o marxismo, uma vítima injusta das estruturas sociais;” “para a moderna criminologia o delinquente é um homem de seu tempo, um homem normal; as ciências boiológicas, desde logo, desvirtuaram o dogma clássico da eqüipotencialidade, isto é, a suposição de que todos os seres humanos nascem com um idêntico potencial ou matéria-prima que somente nossa liberdade é capaz de moldar e desenvolver no futuro, pois, cada código genético marca os traços diferenciais e irrepetíveis de cada pessoa; assim, todos nascemos desiguais, distintos, conhecendo a ciência importantes acontecimentos de rebelião contra a própria identidade e mutações genéticas que puderam representar um autêntico desafio às regras da lógica”. Veja-se por igual a excelente, Nathalia Deeke, em “A Influênciada Mídia no Tribunal”.

Na verdade, não contam todas essas correntes de pensamento tanto sobre o crime, quanto sobre o criminoso, com consenso algum no momento em que tentam explicar a gênese do fato criminal ou o perfil psicológico do criminoso e muito menos no desenhar os oportunos programas de prevenção e intervenção em face da macrocriminalidade.

O crime, caríssimos leitores, é tão velho como o homem mesmo. Por vezes, fascina. Que o diga a sétima arte! Com certeza, provoca intenso alarme social e muita dor, não só em quem o padece, nem somente em quem depois sofre as conseqüências de sua penalização, mas, em face de todo o corpo social.

Não se encontrou, em lugar algum, meios completamente idôneos e seguros ou fórmulas infalíveis para extirpá-lo. Com ele convivemos no nosso sistema social permanentemente.

Sua febril produção não estanca nunca, incluindo até mesmo, perante uma ordem social justa e íntegra, em excelente estado de funcionamento, ou mesmo, ante o sistema democrático ou não, de nosso tempo, pluralista e conflitivo.

O certo é que não se entremostra correto atribuir-se o fenômeno criminógeno a patologias, desorganização social, carências ou mesmo vazios normativos, neste último caso, como postulam e têm postulado, equivocadamente, nossos governantes e muitas das camadas sociais, até porque há um conjunto concausal que inclui a genética, o meio ambiente social e familiar e o aleatório.

Em se tratando de controle da criminalidade, é correto afirmar a absoluta impossibilidade de se banir o fenômeno delitivo e aflitivo do meio social e a necessidade de se ponderar sobre os custos sociais que seu eficaz controle   exigem, obrigando-nos a desmitificar o utópico sonho da total eliminação da criminalidade de nosso meio social. Carecem, por isso mesmo, de qualquer justificativa, as proclamações reiteradas de guerra caolha contra os infratores, com que freqüentemente se postam nossas autoridades públicas, pois, atitudes beligerantes e apaixonadas de tal natureza geram políticas criminais de desmedido rigor e totalmente incompatíveis com a serenidade que a análise científica reclama, consoante se vê estampada a profusa legislação criminal periférica, sob as chamadas “leis emergentes, da hediondura ou da ocasião”, que em nada concorreram para a redução das estatísticas criminais ou da crescente população carcerária pelo menosprezo e minusvalia da prevenção geral e mesmo da prevenção especial, esta prejudicada e comprometida pelo caos penitenciário em todo o pais.

Imprensa livre, sem censura, mas sob responsabilidade?

Sim! até porque segundo Karl Marx, imaginem, “A liberdade de Imprensa”, “A Imprensa livre é o espelho intelectual no qual o povo se vê, e a visão de si mesmo é a primeira confissão da sabedoria”.

Liberdade de imprensa, sem peias é um ideal que todos perseguimos, todavia, há-de ser exercida em harmonia com outros direitos fundamentais: presunção de inocência ou de não culpabilidade, devido processo legal, ampla defesa, contraditório, motivação, direito à privacidade, aliás rebaixados do status pétreo para normas subconstitucionais. Uma lástima, que frustra os românticos dos Enunciados iluministas!

Não obstante, como ressaltado ao início, o que se assiste no noticiário televisivo ou mesmo da mídia escrita em todo o território nacional é a disseminação, com rapidez incontrolável e em corres exageradamente matizadas e intensas, de textos e imagens, fotos e vídeos, depoimentos obtidos difusamente, “closes” e “closes”, com que se expõem, ostensivamente, em quaisquer horários, cadáveres tombados por saraivada de balas ou esmagados pelo trânsito alucinante de veículos, mutilados e desfigurados, de par com a divulgação de devassas na esfera privada do cidadão, sem qualquer respeito aos direitos da personalidade e da intimidade, infortúnios, deslizes de toda sorte e na atualidade atos de retaliação política, abusividade, extrapolamento de balizas institucionais, insegurança e medo.

Nada, absolutamente, nada hoje em dia escapa à atividade investigativa de repórteres de jornal, revista, rádio ou televisão, na montagem de reportagens sensacionalistas, mas também, como dissemos, na difusão do medo e da insegurança.

Nem a propósito o saudoso Ministro do STF Evandro Lins e Silva, há muito arrebatado ao nosso convívio dizia que:

“A paranóia, o medo e a sensação de insegurança interessam somente àqueles que exploram o crime, seja de que maneira for, interessam apenas àqueles que não estão interessados em resolver os verdadeiros motivos da violência, aos que usam a desculpa da violência para serem violentos.”

Não iríamos ao extremo de afirmar, como muitos o fazem, de que as mídias incorrem em incitação ao crime, ao dramatizarem a criminalidade, como eventualmente o faz ou fazia certa reportagem semanal, outrora, uma das maiores emissoras mundiais de televisão, com distorções flagrantes da realidade, sobretudo, quanto á percepção do fato noticiado, ou que seus repórteres ao se referirem aos suspeitos de crimes como culpados de fatos consumados, conspiram contra o direito de defesa e as garantias constitucionais ou ainda que os órgãos de comunicação de massa, quando se põem a criar um caudal cultural, que propende ao endurecimento irracional de nosso sistema penal, por bem intencionados que possam estar, mais malefícios nos causam do que medidas de real combate à onda de crimes que nos envolve, quando só necessitamos de singela informação desataviada e não que nos injetem sua própria opinião como massas de manobra do que deveriam pela ética absterem-se.

E não nos abalançamos a assim pensar porque nem a comunicação social se exime do caráter da violência, como um componente inseparável de nossa civilização.

Tal comportamento vem de muito longe! Desde há muito, nossos avós e bisavós nos alertavam quanto à suposta relação cinema x delinqüência e a má influência que o primeiro exercia sobre a juventude. E as histórias em quadrinhos com seu componente deformador de nosso caráter?

Bem, caiamos em reflexão diante desse estado de permanente tensão dialética, em que não podemos amordaçar a imprensa, do mesmo modo que também não nos é lícito proscrever as garantias de ordem constitucional, ou como melhor escreveu o antes precitado saudoso Márcio Thomas Bastos “a liberdade criou a imprensa. E a imprensa não pode se transformar em madrasta da liberdade”.

Em suma, inescondível a realidade chocante com que nos defrontamos em face dessa situação de marcada contradição de valores exponenciais no estágio atual de nossa sociedade, em que se destaca de um lado, não negamos, o desempenho desassombrado de grandes jornalistas autionômicos nos meios de comunicação difusa, em canais do Youtube, em prol da moralidade pública e no combate à criminalidade e de outro o imperativo de se preservar o ambiente de serenidade dos Juizes e dos Tribunais, bem eqüidistantes das paixões humanas, como ensinava o Mestre Rui Barbosa e do clima de falsas expectativas de juízos condenatórios, havendo também quem enxergue nesse posicionamento das mídias uma forma de coação processual. Bom aí, cada juiz tem o direito de estabelecer o contrário,dispensando-nos de tecer considerações a esse respeito para não desertar do tema proposto, mas, como juiz que também fomos, compenetrados estamos de que também não têm os juízes a liberdade plena de sentenciar, segundo o próprio e intimo convencimento, sem restrições legais, sujeição à correta e explícita avaliação das provas e do quadro fático e jurisprudencial, hoje, sob rígida cultura dos precedentes postos sob repercussão geral ou paradigmia de repetitividade, afora verbetes sumulares vinculantes ou não, que refogem à tradição histórico-cultural dos magistrados brasileiros, que outrora sempre tiveram o permissivo para divergirem dos Julgados emanados dos orgãos superiores da hierarquia organizacional dos quadros de nossa antes invejável magistratura.

O Impacto

Um comentário em “REFLEXÕES DE UM VELHO ADVOGADO CRIMINALISTA E JUIZ FEDERAL APOSENTADO  SOBRE CRIMINALIDADE E MÍDIAS NACIONAIS

  • 23 de fevereiro de 2024 em 20:05
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    Parabéns! Um artigo impecável, recomendo a leitura para todos que militam nos meios de comunicação, certamente vai servir de alerta e para que antes do exercício dessa atividade magnífica, que precede o Estado Democrático, respeitem os direitos de pessoas, seja lá qual for o motivo, que por alguma razão perde temporariamente o direto de liberdade. Ao encovalhar alguém, forma juízo de valor sem o minino de conhecimento dos fatos é uma forma de violência e violação dos direitos fundamentais. Isso é recorrente, quando o réu senta no banco, já está previamente condenado pelas mídias sociais, pior que isso é o estrago que atinge, também, toda a família, especialmente os filhos no ambiente escolar, são danos irreparáveis.
    A percepção que tenho como advogado é que essas mídias, ao formularem juízo de valor, de alguma forma,na via transverssa, acabam influenciando magistrados, que acabam, em certas situações, negarem a liberdade, para que não sofram críticas ferrenhas nas redes sociais, esse problema de agravou quando às mídias tradicionais perderam força para às redes sociais.

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