Combate à corrupção é usado para defesa de privilégios, diz Gilmar Mendes
Juízes e promotores não são diferentes de todas as outras autoridades e devem responder pelos seus atos. A crítica é do ministro do Supremo Tribunal Federal e presidente do Tribunal Superior Eleitoral, Gilmar Mendes, que diz que juízes e procuradores que atacam a proposta de lei que pune abuso de autoridades “imaginam que devam ter licença para cometer abusos”.
Em entrevista à jornalista Mônica Bergamo, do jornal Folha de S.Paulo, o ministro também fala sobre a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 241, que limita os gastos públicos do país pelos próximos 20 anos, e sobre a busca somente por melhores salários para membros do Ministério Público, delegados e juízes.
Para ele, o combate à corrupção e a operação “lava jato” estão sendo usados “oportunisticamente” para a defesa de privilégios do Judiciário, do Ministério Público e de outras corporações. “O Judiciário estadual tem salários extremamente generosos, mas estrutura mínima. Não tem funcionários, faltam peritos. E a discussão está concentrada no salário dos juízes. Nós não vemos juízes estaduais defendendo a melhoria do Judiciário estadual”, afirma.
Mendes elogia a “lava jato”, afirmando que ela é um marco no combate à corrupção, mas ressalta que nem por isso “práticas ou decisões do juiz Sergio Moro e dos procuradores” devem ser canonizadas.
“É preciso escrutinar as decisões e criticar métodos que levam a abusos. Eu mesmo já votei em favor da concessão de habeas corpus e defendo limites temporais para as prisões preventivas. Da mesma forma, as chamadas dez medidas têm que ser examinadas com escrutínio crítico. Medidas propostas como iniciativa popular não têm que ser necessariamente aprovadas pelo Congresso”, diz o ministro.
Leia a entrevista:
Há também insurgências contra a PEC 241, que limita gastos. Nota da Procuradoria-Geral da República faz criticas a ela. E defende que, se a receita crescer, seja destinada ao “combate à corrupção”, ou seja, ao próprio Ministério Público, entre outros.
A Advocacia-Geral da União, a Receita Federal, a PF também fazem o discurso de que os salários deles têm que ser elevados porque são combatentes da corrupção. Isso se tornou estratégia de grupos corporativos fortes para ter apoio da população.
É uma esperteza midiática. Não tem nada a ver com a realidade. Os juízes todos estão agora engajados no combate à corrupção? São 18 mil Sergios Moros? Sabe? No fundo estão aproveitando-se oportunisticamente da “lava jato”.
Mas não há uma luta legítima pelo fortalecimento do Estado em suas funções essenciais?
A questão do devido aparelhamento dos órgãos vai muito além da questão salarial. O Judiciário estadual tem salários extremamente generosos, mas estrutura mínima. Não tem funcionários, faltam peritos. E a discussão está concentrada no salário dos juízes. Nós não vemos juízes estaduais defendendo a melhoria do Judiciário estadual.
Nós chegamos a discutir no STF portaria [do procurador-geral da República, Rodrigo Janot] que determinava que os procuradores viajassem de classe executiva. Quer dizer, perdemos as medidas! E isso é preciso ser dito para o distinto público, que é quem paga a conta. Se o procurador que vai à Itália fazer um convênio, ou à Suíça obter o retorno de dinheiro, viaja de classe executiva ou de econômica, isso tem a ver com combate à corrupção?
O Judiciário brasileiro é um macrocéfalo com pernas de pau. É o mais caro do mundo. E muito mal estruturado. Há uma distorção completa.
O governador do Maranhão, Flávio Dino, me disse que não há nenhum desembargador ganhando menos do que R$ 55 mil no Estado. O teto nacional é de R$ 33 mil.
Eu estive com o governador Francisco Dornelles, do Rio de Janeiro, que enfrenta situação extremamente difícil. Ele tem receita de R$ 34 bilhões. Gasta R$ 17 bilhões com 220 mil aposentados, muitos do judiciário, do legislativo e do MP.
Ele tem dificuldade de saber quanto ganha um juiz. Um representante do Ministério Público pediu a ele que antecipasse o repasse [ao órgão], num total alheamento da realidade. E nenhuma disposição para participar do sacrifício pedido a todos. É uma loucura que tem método. Chegou-se ao caos porque se escolheu esse caminho. E isto em razão do quê? De governos débeis, às vezes com base ética frágil, que se curvam às imposições.
Com medo do Judiciário?
Com medo do Judiciário. Diante da sugestão de que levasse para a Assembleia Legislativa os cortes necessários e a divisão por todos os partícipes, Dornelles me disse: “Dificilmente a Assembleia aprovaria porque está submetida a constrangimentos impostos pelo MP e pelo Judiciário, decorrentes da Lei da Ficha Limpa”. Foi uma surpresa para mim. Algo que aparentemente veio para o bem empoderou grupos que transformaram isso num instrumento de chantagem.
A PEC dos gastos não pode estender ao país o que ocorre no Rio de Janeiro? Cortes na saúde em benefício de poderes organizados?
Será a grande chance de se trazer todos os poderes para uma realidade institucional, com publicidade de seus gastos na internet para que sejam submetidos a uma supervisão geral.
A autonomia administrativa e financeira não dá blindagem para ninguém sair gastando de maneira secreta.
A autonomia, pensada para tirar o Judiciário e o MP da dependência do Executivo, está sendo manipulada, lida como soberania, o direito de fazer qualquer coisa. A Defensoria Pública da União conseguiu autonomia e seu primeiro ato foi se conceder auxílio moradia.
Órgãos que poderiam cumprir função racionalizadora, como o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), acabaram cooptados. O último ato da gestão passada do CNJ foi estender o recesso de 20/12 a 6/1, da Justiça Federal, que deveria ter sido extinto, para a Justiça Estadual. O CNJ se transformou, em certas gestões, num instrumento de corporação.
Quando há alteração de vencimentos na esfera federal, cada legislador estadual teria que deliberar sobre os vencimentos na esfera estadual. O CNJ decidiu que isso seria automático, violando a autonomia dos Estados. Em suma, criamos um monstro.
As autoridades não estariam navegando na “lava jato” também para fortalecer projeto político de avanço de ideias que defendem, como as “10 medidas contra a corrupção”?
Deixa eu dizer logo: a “lava jato” tem sido um grande instrumento de combate à corrupção. Ela colocou as entranhas do sistema político e econômico-financeiro à mostra, tornando imperativas uma série de reformas.
Agora, daí a dizer que nós temos que canonizar todas as práticas ou decisões do juiz Moro e dos procuradores vai uma longa distância.
É preciso escrutinar as decisões e criticar métodos que levam a abusos. Eu mesmo já votei em favor da concessão de habeas corpus e defendo limites temporais para as prisões preventivas. Da mesma forma, as chamadas dez medidas têm que ser examinadas com escrutínio crítico. Medidas propostas como iniciativa popular não têm que ser necessariamente aprovadas pelo Congresso.
O senhor acha que as 2,2 milhões de pessoas que assinaram a proposta das dez medidas leram e entenderam cada uma delas?
Claro que não. E vocês em São Paulo já nos ensinaram que não é tão difícil obter uma massa de assinaturas, desde que se conte com um sindicato competente como o dos camelôs.
Quando pessoas de certa credibilidade [como os procuradores] colocam a pergunta “Você é a favor ou contra o combate à corrupção?”, é claro que muitos firmarão o documento. As pessoas não são do mundo jurídico e não conhecem suas peculiaridades. Mas certamente não concordam que se valide tortura ou prova ilícita nem que se dificulte o habeas corpus.
Cada um tem seu ofício por verdadeiro, e talvez eles [procuradores] estejam traduzindo essa visão. Mas estão usando a Lava Jato para fortalecer a corporação e seus privilégios e, além disso, a visão de mundo deles. Que não é necessariamente a de todos nem coincide, em suas linhas básicas, com o Estado de Direito. O Congresso tem que examinar isso de maneira crítica.
O Congresso tem condições de fazer isso, com o número de parlamentares que estão envolvidos na “lava jato”?
O Congresso é mais do que essas pessoas. Ele representa a sociedade. E não somos uma comunidade de botocudos. Temos analfabetos, mas temos pessoas que sabem ler e escrever. Que não precisam de pacotes de iluminados.
O STF não poderia ser incluído nas críticas que o senhor faz ao Judiciário? Ele não é moroso em casos como o de Eduardo Cunha (PMDB-RJ)?
Cunha foi eleito presidente da Câmara, com uma força e respaldo institucional enormes. Era parlamentar, tinha imunidade, só poderia ser preso em flagrante.
A competência penal do STF foi pensada para casos excepcionais. Não se esperava que a criminalidade na política se instalasse de forma tão ampla. Ele não tem, portanto, a dinâmica de quem se dedica a isso exclusivamente [juízes]. E suas decisões são paradigmáticas, têm efeito irradiador. O Supremo não pode banalizar suas ações.
O senhor jantou com o presidente Michel Temer recentemente. E foi criticado, já que vai julgá-lo numa ação no Tribunal Superior Eleitoral.
Sobre questões ligadas ao processo não se conversa. Nós dois sabemos os limites éticos. Agora, é impossível um presidente do TSE não conversar com o presidente da República. Há questões, por exemplo, orçamentárias que precisam ser discutidas. Quando Lula era presidente da República e eu, do STF, cansei de visitá-lo em sua residência. Jantei com o pessoal do PC do B recentemente, almocei com o José Eduardo Cardozo [ex-ministro da Justiça e advogado de Dilma Rousseff]. Converso com inúmeros políticos. No mais é trololó, é mimimi, tentam na verdade fazer carimbos.
O senhor se expõe mais do que outros ministros. É natural que receba mais críticas.
Convivo com isso com naturalidade. Há uma falta de institucionalidade no país, de pessoas que cumpram a função de fazer as críticas adequadas. Os parlamentares temem criticar juízes porque amanhã estarão submetidos a um deles. Não falam sobre o Ministério Publico nem sobre a Ordem dos Advogados. É razoável que alguém que não tenha que ter esse tipo de reverência possa falar e apontar rumos. Alguém que tenha responsabilidade institucional, que passou pela presidência do Supremo, que não deve ser um idiota e que não tem medo de críticas.
Fonte: Revista Consultor Jurídico