Supremo julgará nesta terça-feira se cabe prisão por dívida de ICMS declarado
A 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal julgará, nesta terça-feira (12/2), se o não pagamento de ICMS declarado é crime. A pergunta a ser respondida é se o Direito Penal pode alcançar a inadimplência e considerar crime de apropriação indébita a dívida fiscal de um empresário que reconhece ter um débito, mas não o quitou.
A questão tem potencial de impactar vários setores da atividade econômica e, além disso, preocupa advogados e juristas, tanto criminalistas quanto tributários. O colegiado deve fixar se é aplicável pena àqueles que se encontram nessa situação. Se entender pela tese do Fisco, a corte estaria, segundo especialistas ouvidos pela ConJur, tomando uma decisão desproporcional ao optar pelo Direito Penal como primeira, e não mais a última, solução para os problemas da sociedade.
Em artigo publicado na ConJur, os advogados Igor Mauler Santiago e Pierpaolo Cruz Bottini, que atuam no caso, criticam o uso da persecução penal nas situações em que há apenas uma dívida fiscal a ser paga. Crime há, argumentam, quando o não pagamento vier acompanhado de fraude, sonegação, dissimulação ou omissão dolosa de obrigações acessórias.
“O consumidor não tem nenhuma obrigação tributária (principal ou acessória), não mantendo relação com o Fisco. O que o comerciante lhe cobra é preço, no qual tende a incluir todos os seus custos: insumos, aluguéis, salários etc., inclusive o custo tributário. Ao deixar de pagar algum credor (como o locador do imóvel onde instalado), o empresário não desvia recursos do consumidor nem descumpre as obrigações deste, mas desatende aos seus próprios deveres. Há um problema de ordem civil, e não penal”, explicam.
Recorrer à prisão por dívida de tributos, transformando o Direito Penal em instrumento de política fiscal, é, segundo eles, prática vedada pela Constituição e por tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário, como a Convenção Americana sobre Direitos Humanos. Ou seja, para os casos em que o contribuinte reconhece a dívida, ainda que deixe de pagá-la, a arrecadação tributária deve ser forçada por meio da execução fiscal, não da penal.
Igor Mauler Santiago e Pierpaolo Cruz Bottini citam ainda a Súmula 430 do Superior Tribunal de Justiça, segundo a qual o mero inadimplemento de tributo não é ilícito pessoal apto a atrair a responsabilidade do administrador. “Como pode ser crime o que sequer é ilícito em relação à pessoa (embora o seja, é claro, para a empresa, ensejando a imposição de multa)?”, questionam.
O caso em debate
Em agosto de 2018, por seis votos a três, os ministros da 3ª Seção do STJ negaram Habeas Corpus de empresários que não pagaram valores declarados do tributo, depois de repassá-los aos clientes. Ao seguir o voto do relator, ministro Rogerio Schietti Cruz, a prática foi considerada apropriação indébita tributária, com pena de 6 meses a 2 anos, além de multa.
Até aquele momento, havia divergência entre as turmas da corte. Se, por um lado, os ministros da 5ª Turma consideravam o ato crime, por outro, os da 6ª decidiam em sentido oposto. Agora no STF, o caso está sob relatoria do ministro Luís Roberto Barroso.
O HC foi proposto ao STJ pela Defensoria Pública de Santa Catarina depois de o Tribunal de Justiça do estado afastar sentença com absolvição sumária. No caso, o Fisco constatou que os denunciados apresentaram as declarações fiscais devidas, mas, em alguns meses de 2008, 2009 e 2010, não recolheram os valores apurados aos cofres públicos. O montante foi inscrito em dívida ativa e não foi pago nem parcelado.
A criminalização da inadimplência de ICMS é também criticada pelo tributarista Rafael Pandolfo e pelo criminalista André Callegari. “Em primeiro lugar, o precedente parece ficar adstrito aos casos em que o ICMS foi repassado ao consumidor final e não recolhido pelo contribuinte. O critério utilizado pela decisão não abarcaria as hipóteses em que, por exemplo, a empresa se apropria de um crédito que depois é contestado pelas fazendas estaduais. Nesse caso, a divergência sobre a interpretação da legislação tributária e a controvérsia sobre a existência de débito podem conferir outro contorno ao tema penal”, avaliam.
Para além disso, a consequência criminal, considerada severa por eles, não pode ter o condão de reduzir o direito ao contraditório e ao devido processo legal no Direito Tributário. Isso ocorreria porque um julgador que não integra a administração pública faria a primeira análise após o processo administrativo, de modo que o direito de defesa por meio dos embargos à execução não seria apreciado, e as consequências criminais do mero inadimplemento já são deflagradas processualmente.
Por fim, eles defendem a diferenciação dos contribuintes que usam da inadimplência como estratégia concorrencial daqueles que simplesmente não pagaram o débito ou discordam da existência da obrigação tributária e querem discuti-la judicialmente. Para ele, na maior parte dos casos, com exceção à primeira hipótese, não há indicação de elemento subjetivo que denote dolo ou sonegação dos contribuintes.
“O julgamento parece não resistir o sistema axiológico inscrito na Constituição, desde a presunção de inocência até o direito ao contraditório. A desconfortável e ameaçadora condição de réus em ação penal constitui uma clara sanção com viés arrecadatório que, espera-se, seja derrubada pelo STF. O Direito Penal não pode e não deve servir a esses fins”, enfatizam Pandolfo e Callegari.
O advogado José Eduardo Toledo, fundador do escritório Toledo Advogados e professor do Insper, afirma que o julgamento tem especial relevância por representar uma virada de posição do Judiciário em relação ao tema. “A importância do caso é enorme, por ser uma mudança radical de posicionamento do Judiciário e vai deixar vários empresários bastante preocupados. Não aqueles que são sonegadores, porque estes sequer informam o Fisco”, aponta.
Até o momento, o entendimento majoritário era que o ICMS uma vez declarado e não pago não configurava crime por não ter havido dolo, ou seja, não houve sonegação. O valor não foi pago, mas declarado e devidamente escriturado nos documentos legais apropriados.
Trata-se, de acordo com Toledo, de um risco ao próprio contribuinte. Isso porque, a partir do momento que ele assim procede, há a abertura de uma execução fiscal automática. Dessa forma, ele prevê, inclusive, uma mudança de comportamento negativa por parte dos empresários caso o recurso não seja conhecido na 1ª Turma.
“Aquele que efetivamente emitiu nota, cumpriu suas obrigações acessórias, informou o Fisco quanto deve agora vai ser surpreendido, podendo até encaminhar para que o contribuinte pense que é mais fácil sonegar e não informar, do que informar e não ter como pagar, já que, nesse caso, poderá ser preso. Aí ele vai para a sonegação, que é o pior dos mundos, claramente um crime.”
Desencorajamento a empreender
Ao se juntar aos críticos do entendimento que leva ao Direito Penal a dívida fiscal, o tributarista Rafael Figueiredo afirma, ainda, se tratar de um “equívoco completo” que gera insegurança jurídica e afugenta investimentos.
“O crime de apropriação indébita não ocorre no caso, pois para a sua ocorrência é imprescindível que o agente se aproprie de algo que não lhe pertence. O fato de o ICMS ser um tributo indireto que permite a repercussão econômica para o consumidor final, embutido no preço da mercadoria, não transforma o comerciante em detentor de um valor que não lhe pertence”, ressalta.
Segundo ele, quando o comerciante recebe o preço da mercadoria que vendeu, aquele valor é dele por direito. “Note-se que o devedor do ICMS é exclusivamente o comerciante. Não se trata de uma dívida de terceiro que o comerciante irá pagar com recursos de outra pessoa que estão em seu poder, como acontece nos casos de retenção de fonte, onde de fato pode ocorrer apropriação indébita”, aponta o advogado, concordando que a jurisprudência é pacífica no sentido de que o mero inadimplemento não justifica a responsabilização pessoal tributária do sócio da empresa.
“Veja o absurdo: a mera inadimplência de tributo por uma empresa não permite que o Fisco cobre o crédito tributário do patrimônio pessoal do sócio, mas permite que o sócio seja preso por isso”, salienta Figueiredo. Como ele, o advogado Julio Morosky também aponta como um desestímulo econômico a persecução penal nesses casos.
“O maior receio do investidor é aplicar suas economias em uma atividade que se mostre inviável. Tornar-se devedor pelo insucesso da empresa é o principal motivo que desencoraja o potencial empresário. Tornar crime o endividamento afastará ainda mais a ideia de empreender”, compara.
Ele acrescenta ainda que a falta de recolhimento de ICMS declarado pode se dar por inúmeras razões, desde a ingerência do negócio, má formação do preço de venda ou do serviço, instabilidade da economia, até a intenção de não pagar.
Fonte: Revista Conjur