Remédio 'natural' esconde substância perigosa

A promessa parece tentadora: fique em forma naturalmente. Na internet, propagandas trazem imagens de pessoas identificadas como farmacêuticas. Também mostram o produto sendo apresentado em eventos científicos.

Vendido como um produto natural, o Divine Shen é encontrado livremente nas farmácias. Segundo as atendentes, hoje ele é um dos mais procurados por quem quer emagrecer.

Para o Ministério Público, os compradores estão sendo enganados e o Divine Shen é uma ameaça à saúde pública.

“O que traz, na verdade, é uma bomba relógio de caráter cardíaco, neurológico, que pode devastar o organismo humano”, diz o promotor de Justiça Jose Reinaldo Carneiro.
É só começar o verão e dobra o movimento nas academias de ginástica. Todo mundo querendo perder aqueles quilinhos a mais. Alguns seguem a regra básica pra isso: alimentação saudável, mais exercício físico, mas muitos preferem mesmo um caminho mais fácil. Acreditar naqueles anúncios que dizem assim: perca peso rapidamente. E você? Que caminho costuma escolher?

E quem autoriza a venda desse tipo de mercadoria, supostamente natural? Como é feita a fiscalização? E será que existe algum produto confiável, que realmente emagrece e não faz mal à saúde?

“Nenhum suplemento, nenhum remédio vendido como natural serve pra acelerar um emagrecimento. Ainda não foi inventado nenhum que realmente funcione”, conta Marcio Mancini, da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia.

Renata: A Bianca vem à academia e malha de segunda a segunda. Está completamente em boa forma, porém basta ela ver na internet ou em alguma revista, um anúncio, o que você faz?

Bianca: Com certeza, eu vou atrás para comprar. Agora, eu estou até pesquisando.

Renata: Pesquisando o quê?

Bianca: Caralluma. Agora é a novidade do momento.

A caralluma é extraída de um cacto supostamente originário da Índia. A promessa é que ela reduz o apetite e a acelera a queima de gordura. Mas não há nenhuma comprovação científica disso.

A caralluma é vendida pela internet e em farmácias de manipulação. O pote com 60 cápsulas custa em média R$ 60.

Procuramos a caralluma em várias farmácias de manipulação. No Rio e em São Paulo, compramos a caralluma sem receita médica.

A Associação das Farmácias de Manipulação justifica: “Os suplementos alimentares entram numa zona cinzenta que ainda não esta bem definida, bem regulada”, diz Maria do Carmo Garcez.

Mas a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) alerta. “Nós não temos nenhum medicamento com essa substância registrado na Anvisa”, explica a gerente de tecnologia farmacêutica, Monica da Luz Soares.

Sem o registro, a caralluma não poderia ser importada nem vendida no Brasil. “A Anvisa não recomenda a utilização de medicamentos que não tiveram a sua eficácia e segurança comprovadas, exatamente por nós. Não sabermos os males que esse medicamento pode trazer”, diz Monica.

Mas o fato é que a importação driblou a fiscalização. E agora a agência diz que está apurando como isso aconteceu, para evitar a entrada no país de mais carregamentos do produto.

“A gente sempre começa com aquela expectativa, tipo: é o remédio do momento”, diz Bianca Matos, produtora de moda.

Renata: Mas você sabe que você está magra?

Bianca: Não magra o suficiente como eu quero estar.

Do Rio, vamos para São Paulo, onde a funcionária publica Izabel Cristina faz parte de um grupo de reeducação alimentar. Ela aprendeu que pode perder peso com uma dieta saudável e exercícios. Mas antes, ela não pensava assim.

“Já tomei alcachofra, já tomei quitosana. Quando começo a tomar esses remédios, parece que eu fico meio mal humorada, irritada. Não durme bem, a gente fica com palpitação. Mas mesmo assim tomava, à espera de um milagre”, contou a funcionária pública Izabel Cristina Joaquim.

Este ano, as autoridades médicas retiraram do mercado três suplementos alimentares à base de quitosana, uma fibra extraída de crustáceos, como lagosta e camarão.

Nesses produtos supostamente naturais, havia sibutramina – uma substância artificial, perigosa, produzida em laboratório. No Brasil, desde março deste ano, só pode ser vendida com receita. Nos Estados Unidos e na Europa, está proibida.

O repórter Maurício Ferraz mostra agora uma denúncia envolvendo outro produto dito natural, mas que também contém a perigosa sibutramina.

Não precisa de receita. Qualquer um pode comprar. À base de fibra de laranja importada da China, o Divine Shen tem registro na Anvisa desde 2007.

O preço é alto: em média, R$ 170. A caixa contém 30 cápsulas e a recomendação é que a pessoa tome uma por dia.

Mas um promotor de Justiça recebeu denúncias e pediu ao instituto de criminalística de São Paulo que analisasse três amostras compradas em regiões diferentes da capital paulista.

Os peritos usaram duas metodologias e chegaram a mesma conclusão: “Os resultados são sempre os mesmos: a presença da substância sibutramina. É uma substância sintética desenvolvida pela indústria farmacêutica. Não tem como ela estar presente num produto de origem supostamente natural”, diz o perito criminal Caio Freitas Júnior.

E o mais grave: “A quantidade de sibutramina que nós encontramos foi o dobro do que está presente no medicamento que é vendido legalmente no mercado”, conta Caio.

A sibutramina é usada pra baixar o apetite. Como já dissemos, é proibida em vários países. No Brasil, é medicamento de tarja preta. Só pode ser vendido com receita azul, numerada, e a farmácia não pode devolver a receita. Entre os efeitos da sibutramina estão pressão alta, coração muito acelerado e palpitações.

“Um individuo que inadvertidamente tome sibutramina e seja um individuo cardíaco ou seja um individuo com pressão alta descontrolada, sim, ele corre o risco de ter um acidente vascular cerebral ou de ter um enfarte do miocárdio, dependendo da sua condição de base”, conta Marcio Mancini, da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia.

Quem está comprando esse medicamento está sendo enganado?

“Sem duvida. Está comprando um medicamento indicado como natural, contendo uma droga sintética”, revela Celso Perioli, superintendente do Instituto de Criminalística de São Paulo.

Duas mulheres de Louveira, interior de São Paulo, dizem ser vi timas do Divine Shen, como mostra a repórter Renata Ceribelli.

Renata: Adriana, por que você começou a tomar o Divine Shen?
Adriana Rigorão: eu queria perder uns quilinhos e me ofereceram esse produto.

As consequências foram mediatas. “Eu sentia o coração meio que acelerado”, conta a funcionária pública.

Maria Luiza é diabética e tem pressão alta. Tomou dois comprimidos de Divine Shen e foi parar no hospital.

“Dor de cabeça, dor na nuca, me solta o intestino, quando a minha pressão está mais alterada. Subiu para 15 por 10 e levou quase um mês para voltar ao normal”, conta Maria Luiza Alberti, funcionaria publica.

Diante dessa denúncia, o que vai ser feito? Quinta passada, o Ministério Público de São Paulo enviou um ofício à Anvisa, exigindo a retirada imediata do Divine Shen do mercado.

“Nós vamos fazer a interdição cautelar do produto em todo território nacional, vamos abrir um processo administrativo, fazer uma análise fiscal e, dependendo do resultado, pode ser proibida a importação do produto”, conta Antônia Aquino, gerente de produtos especiais da Anvisa.

Mas como o Divine Shen conseguiu registro? É que não são feitos testes prévios de laboratório. A liberação se baseia somente em documentos.

“Nós avaliamos uma documentação extensa apresentada pela empresa, a lista de ingredientes do produto”, diz Antônia.

Procuramos os donos da Apex – responsável pela importação e distribuição do Divine Shen. Documentos da junta comercial de São Paulo informam que a empresa trabalha com comércio de tecidos. Nenhuma referência a produtos farmacêuticos.

Na quinta, falamos com o farmacêutico da Apex. A equipe de reportagem voltou à sede da empresa no horário marcado: sexta-feira, 13h. O interfone só chamou e ninguém atendeu. A impressão é que não apareceu ninguém pra trabalhar.

Segundo a junta comercial, a Apex ainda tem uma filial em Itajaí, Santa Catarina. Fomos até lá na sexta, mas o local também estava fechado.

Por e-mail, a diretoria do Divine Shen alegou que desconhece os fatos e que ainda não recebeu nenhuma notificação.

O Ministério Público quer que os responsáveis pelo Divine Shen respondam por crime contra a saúde pública. A pena mínima: 10 anos de cadeia.

“É o dobro da pena que a gente aplica pra traficantes de entorpecentes”, revela o promotor de Justiça Jose Reinaldo Carneiro.

“Dá um pouco de revolta de saber que existe tanta enganação”, diz a funcionaria publica Izabel Cristina Joaquim.

Globo.com

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